José de Alencar e a mulher economicamente emancipada em “Senhora” (1875).

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

A partir de 1808, com a chegada da família real portuguesa ao Brasil, a cidade do Rio de Janeiro passou por profundas transformações de ordem social, econômica e política. Os modos de viver importados da Europa se adaptaram à realidade dos trópicos, servindo como parâmetro divisor de classes na sociedade de então. Os produtos industrializados ingleses eram largamente consumidos pela população do período, mas era da França que vinham as últimas tendências da moda, enchendo as vitrines da Rua do Ouvidor de artigos de luxo para o consumo de homens e mulheres. Na opinião de Luiz Felipe de Alencastro, “o estabelecimento do Segundo Império na França (1852-70) dá ao Segundo Reinado um novo tom de modernidade e confirma o francesismo da elite brasileira” (2011, p. 43). Francesismo esse que invadia os salões de festas e entrava no próprio ambiente familiar através dos muitos manuais de etiqueta que ditavam o bom tom entre a elite política e econômica oitocentista. Inclusive na literatura o gosto por romancistas franceses era grande, especialmente por parte do público feminino.

José de Alencar

José de Alencar

Não foram poucos os escritores de nossa terra que se basearam nos modelos franceses para compor seus romances, como é o caso de José de Alencar. Com seus chamados “perfis de mulher”, ele utilizou a voz feminina para debochar dos costumes da sociedade burguesa no Segundo Reinado e da hipocrisia pertencente àquele grupo social. Entre suas principais críticas, estava o casamento arranjado, pensado como uma espécie de contrato social entre as elites brancas para elevação ou manutenção do status econômico entre as famílias. Através da personagem Aurélia Camargo em Senhora (1875), Alencar satiriza tais acordos matrimoniais ao criar um enredo onde a menina rica compra com um dote de cem contos o homem que lhe desprezou quando era uma moça pobre. Publicado pela primeira vez no ano de 1875, Senhora é definido por Antônio Cândido como uma das principais obras para se entender o pensamento de José de Alencar. Divido em quatro partes (intituladas, respectivamente: O Preço; Quitação; Posse; e Resgate), a obra traça com precisão um painel dos costumes da elite carioca nas décadas de 1860 e 1870. Conforme cita Mary Del Priore, “por ser rica, muito rica, herdeira de mil contos de réis, Aurélia impõe-se a um mundo que só se move nas malhas do dinheiro acumulado na mais burguesa das atividades – o comércio” (2005, p. 156).

Não obstante, em algumas ocasiões os matrimônios eram arranjados pelos pais dos nubentes, sem que estes tivessem se conhecido; em outras, o primeiro encontro acontecia justamente no dia do casamento. Em 1887, Maurício Lamberg notou que as regras de noivado no Brasil se baseavam numa espécie de puritanismo como ele jamais tinha visto: antes do casamento, ”a nenhuma moça é permitido caminhar na rua sem ir acompanhada de um parente muito próximo”, muito menos acompanhada do noivo, “que, aliás não se atreve a tomar com a noiva nenhuma das acostumadas familiaridades ou carinhos” (apud LEITE, 1993, p. 39). Contrastando o Brasil com a Alemanha, Lamberg afirmou que, diferente dos países anglo-saxônicos, aqui os noivados eram bem curtos e o que ele definia como amor, não vinha da alma, e sim do sangue, chegando por vezes “às raias da loucura”. O cronista atribuiu esse comportamento às chamadas raças latinas, em geral, “e para isso influi, não pouco, o clima, particularmente no Brasil” (ibidem).

Condessa de Barral

Condessa de Barral

Com efeito, José de Alencar não deixou de abordar tais práticas matrimonias do Brasil oitocentista em Senhora. Na obra, o autor oferece ao público um enredo no qual o casamento é visto como uma forma lícita para a ascenção política e econômica do noivo, através do dote concedido pela noiva: uma vez casados, a personagem Aurélia expõe ao marido na noite de núpcias a farsa que aquela união, promovida por meio de negociações envolvendo terceiros, representava. Embora essa prática de casamentos arranjados fosse costumeira entre as elites do período, Alencar, no seu romance de 1875 a concebe como uma coisa banal e contrária ao ideal do amor romântico, entendido como um estado de alma e difundido por ele em outros livros, como Lucíola (1862) e Diva (1864). Porém, Senhora não se caracteriza apenas como um romance romântico. É preciso considerar também as suas características realistas, especialmente no que concerne ao casamento e à formação da família nuclear, de modelo tipicamente burguês. Os personagens Aurélia e Fernando podiam viver momentos de tensões na vida íntima, mas para a alta sociedade procuravam manter as aparências de um casal feliz e em conforme com as regras sociais de então.

Sendo assim, há em Senhora a delimitação de dois espaços: um público, onde a farsa do casal feliz é mantida; e o privado, onde se desenrola os conflitos psicológicos entre os protagonistas. Neste último, é a mulher quem manda e o homem quem obedece, a despeito da sociedade patriarcal na qual estavam inseridos. Graças à fortuna herdada do avô, Aurélia se torna economicamente emancipada e, portanto, com mais liberdade de movimentos do que outras mulheres de sua classe. No Brasil da segunda metade do século XIX, outras figuras femininas também se destacaram através de uma situação semelhante à da personagem em questão, como a baiana Luísa Margarida Portugal e Barros (1816-1891). A conhecida condessa de Barral se constitui num exemplo ímpar entre outras mulheres do período, por ter se casado com o homem de sua escolha, rejeitando o pretendente oferecido por seu pai, e ao mesmo tempo recusando o papel de esposa submissa que a sociedade lhe reservou.

Eufrásia Teixeira Leite.

Eufrásia Teixeira Leite.

Assim como a condessa, podemos citar o caso de Eufrásia Teixeira Leite (1850-1930), uma rica investidora proveniente da cidade de Vassouras (RJ), que preferiu permanecer solteira, administrando seus bens por conta própria. A personagem Aurélia, por ser uma mulher de avantajada fortuna e apresentar modos e atitudes independentes, poderia se enquadrar nos dois perfis de mulher que acabam de ser citados, não fosse o desfecho que José de Alencar lhe deu na obra. Ao final da trama, depois do marido ter quitado sua dívida para com ela e recobrado sua autonomia, Aurélia se colocou aos pés do mesmo, assumindo o papel de esposa submissa e consentido na consumação do matrimônio. O desfecho convida o leitor a uma releitura do livro, analisando os personagens sob um novo ângulo. A partir daí o que parece ficar evidente é que o autor, ao criar no romance um perfil de mulher emancipada e usar da voz desta para criticar os costumes da elite de seu tempo, promoveu um regaste dos valores corrompidos por parte de Fernando Seixas para que no momento final ele recuperasse seus direitos como homem da casa, devolvendo a esposa, mulher inicialmente de atitudes independentes, ao lugar de submissão que a sociedade brasileira de então lhe reservava.

Dessa forma, cabe aqui nos questionar: em vez de Senhora ser considerado um perfil de mulher, não seria também um perfil de homem? Em tese, Aurélia jamais havia deixado de ser submissa à imagem do marido que ela internalizara, esperando apenas que o homem idealizado e o homem real se fundissem num só, para então se entregar ao mesmo. Seguindo a linha de pensamento de Luís Felipe Ribeiro, é possível que José de Alencar, um moralista convicto, tenha defendido em seus romances urbanos um modelo de família nuclear tipicamente burguês, para o qual mulheres emancipadas, ou mesmo prostitutas, como a personagem Lúcia do romance Lucíola (1862), poderiam constituir uma ameaça. Sendo assim, torna-se pertinente revisitar Senhora, no intuito de compreender as críticas que seu autor faz à sociedade de seu tempo, repensando a representação do casamento e da família brasileira na segunda metade do século XIX, bem como as questões de gênero envolvendo os personagens da trama.

Referências Bibliográficas:

ALENCASTRO, Luiz Felipe de. História da Vida Privada no Brasil. – São Paulo: Companhia das Letras, 1997, v. 2.

D’INCAO, Maria Angela (org.). Amor e família no Brasil – São Paulo: Contexto, 1989.

DEL PRIORE, Mary. Condessa de Barral: a paixão do imperador. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.

_. História do amor no Brasil. – São Paulo: Contexto, 2012.

FALCI, Miridran Britto; MELO, Hildete Pereira de. A sinhazinha emancipada: a paixão e os negócios na vida de uma ousada mulher no século XIX: Eufrásia Teixeira Leite (1850-1930) – Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2012.

RIBEIRO, Luis Felipe. Mulheres de papel: um estudo do imaginário em José de Alencar e Machado de Assis. – 2ª edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s