As portas do grande hall se abrem. Com uma convicção firme e ar imperioso, a favorita do rei avança. Ela usa um vestido roxo, a cor da realeza. Para os bons entendedores, o recado estava dado: em breve ela seria um membro da família real. Contudo, muitos ainda duvidavam de que isso pudesse acontecer, pois seu rei era uma pessoa instável e em breve poderia se cansar da moça e descarta-la, como havia feito com outras. Portanto, a dama precisava de novos artifícios para manter a atenção do monarca concentrada em si. Ela já tinha dado tudo o que podia a ele, exceto uma coisa: a sua virtude! Mas seria Ana Bolena capaz de cometer tal sacrifício? Para aquilo que mais desejamos, existe sempre um preço a pagar, e ela já tinha ido longe demais para voltar atrás.
O último capítulo da primeira temporada de “The Tudors” é o mais importante de todos os que já foram até aqui analisados. Com um roteiro bem adaptado, o episódio é marcado por um conflito entre religião e os desejos da carne. Após tantos anos de espera, Henrique VIII (Jonathan Rhys Meyers) está cada vez mais impaciente para possuir a sua amada. Aqueles que havia escolhido para substituir o Cardeal Wolsey (Sam Neil, cuja atuação ao longo do capítulo foi mais do que brilhante) nos negócios de Estado pouco fizeram para agilizar o processo de anulação do seu casamento com Catarina de Aragão (Maria Doyle Kennedy). Sentindo-se cercado por incompetentes, Henrique chega até mesmo a cogitar a possibilidade de trazer Wolsey de volta. Caso isso acontecesse, todos aqueles que trabalharam para a queda do Cardeal teriam motivos para temer a sua vingança, especialmente Ana Bolena (Natalie Dormer), cuja influência na corte inglesa estava crescendo de forma meteórica. Apesar de ser uma mulher esperta, ela sabia que o ex-chanceler, embora caído em desgraça, ainda constituía um inimigo em potencial. Nesse caso, era preciso destruí-lo de uma vez por todas e o quanto antes, melhor.

Catarina de Aragão (Maria Doyle Kennedy) pede ao embaixador Chapuys (Anthony Brophy) para que o Imperador são use força conta a Inglaterra.
O possível retorno de Wolsey à corte é apenas um dos problemas que guiam as ações de Ana Bolena neste capítulo. O outro consiste na questão religiosa. Diferentemente dos episódios anteriores, aqui Michael Hirst abriu espaço no roteiro para incluir uma Ana mais voltada para a reforma e decidida a convencer o rei de seu poder sobre a Igreja na Inglaterra. O roteirista incluiu nas falas das personagens muitos diálogos que, por sua vez, constam nos registros históricos, como, por exemplo, na cena em que Ana, usando um vestido roxo, para em frente às damas da rainha e diz que às vezes “gostaria que todos os espanhóis estivessem no fundo mar”, afirmando também que preferia ver Catarina enforcada “a reconhece-la como sua senhora”. Se a real Ana Bolena disse ou não exatamente essas palavras isso é assunto de conjecturas, mas o fato é que muitos romancistas já exploraram frases como essa para exagerar na rivalidade entre a favorita do rei e a rainha, como fez o próprio Hirst em “The Tudors”. Como em 1530 a anulação do casamento real ainda não era algo concreto, então proferir esse discurso diante de vários cortesãos seria uma atitude muito arriscada, pois Catarina poderia ser restaurada no seu antigo poder.
Decidida a mostrar que Henrique era senhor soberano no país, inclusive nos assuntos religiosos, Ana apresenta para ele o livro “A obediência do homem cristão”, de William Tyndale, que condenava o abuso da Igreja e sua pretensão em estar acima dos reis. A reação do soberano face à leitura da obra também condiz com os registros históricos. Maravilhado com as palavras de Tyndale, Henrique responde a Ana que “esse livro deve ser lido por mim e por todos os reis”. Essa foi a brecha perfeita para a personagem de Natalie Dormer introduzir seu real amante na ideologia protestante, afastando-o gradativamente de Roma. Quem não gostou muito disso, ao que parece, foi o novo chanceler, Thomas More (Jeremy Northam). Nesse episódio, o célebre autor de Utopia é representado não como um erudito, e sim como um fanático religioso, decidido a usar seu novo poder para queimar protestantes como Simon Fish. O Thomas More de “The Tudors”, aos poucos, vai se distanciando de sua imagem como advogado e filósofo para abraçar a imagem de um homem extremamente devoto ao catolicismo. Hilary Matel, no seu romance Wolf Hall (2009) também abordou esta personagem da mesma forma, descontruindo assim a imagem de More como mártir católico, que foi alimentada ao longo dos séculos.

Henrique VIII (Jonathan Rhys Meyers) e Ana Bolena (Natalie Dormer) finalmente se entregam ao amor.
Na outra esfera, o poder dos Bolena cresce cada vez mais. O chefe da família, Thomas (Nick Dunning), foi condecorado pelo rei com novos títulos e funções administrativas na corte. Para os bons entendedores, que observaram o declínio de Wolsey através dos 9 capítulos anteriores e além de tudo conhecem a história, ficou claro que Thomas Bolena descarta a possibilidade de que o mesmo possa acontecer com ele. Se um homem como o Cardeal, de origens humildes, ascendeu e caiu na hierarquia social de forma tão rápida, como que impediria Henrique de fazer o mesmo com quem lhe desagradasse? Como o próprio Thomas More salientou no capítulo, “uma vez que o leão conheça seu poder, ninguém conseguirá doma-lo”. Os Bolena estão brincando com fogo e parece que não estão com medo de se queimar. A principal de todas é Ana. Ela acha que tem o rei em suas mãos para dispor dele a qualquer momento. Mas será que o interesse de Henrique continuaria tão aceso após ela finalmente se entregar para ele? É um risco que a jovem precisa correr, caso queria um dia se tornar rainha da Inglaterra. Em meio à floresta, os dois se entregam ao amor e, antes do rei ejacular dentro da jovem, ela o afasta de si. Essa prática, muito comum na época, é conhecida como coito interrompido e prevenia uma gravidez não desejada. Afinal, Ana não queria ser mãe de mais um bastardo real.
A cena que acaba de ser descrita acima fecha o décimo capítulo desta temporada de “The Tudors”, mas está longe de ser a mais significativa do episódio. Dois outros momentos merecem ser aqui tratados com atenção: a morte do Cardeal Wolsey e a situação de Catarina de Aragão. Para encontrar suporte para sua causa, o rei ordena que Thomas Cromwell (James Frain) consulte os teólogos de todas as universidades da Europa. Os resultados, porém, não são tão satisfatórios. Ao tomar conhecimento da atitude de Henrique, Catarina o confronta com a verdade. Diz ela que “para cada acadêmico que vote por você, eu encontrarei mil que vote por fim”. Essa frase, assim como outras que eu mencionei nos parágrafos anteriores, consta nos registros históricos. Entre os católicos, “o grande caso do rei”, como foi chamado, não encontrava muitos adeptos. Mais do que isso: conforme ficou explícito na fala de Catarina ao embaixador Chapuys (Anthony Brophy), ela não desejava que o imperador Carlos V invadisse a Inglaterra e derramasse o sangue dos ingleses. Em seu íntimo, a rainha sabia que se houvesse guerra, o povo pegaria em armas contra seu legítimo soberano e o forçaria a abandonar qualquer ideia de anulação do casamento real. Diante disso, resta na mente do telespectador a pergunta: Quem será que detém realmente as rédeas poder: Catarina ou Henrique?

O Cardeal Wolsey (Sam Neil) tira sua própria vida.
O Cardeal Wolsey, por sua vez, percebeu a resposta para essa pergunta. Depois de ter seu pedido de ajuda negado por Ana Bolena, ele se volta para a rainha, na esperança de reconquistar seu antigo poder. É preciso ter cuidado na análise dessa parte de enredo, porque diferentemente das outras, ela não consta nos registros históricos. Em nenhum momento o verdadeiro Wolsey se ofereceu para trabalhar pela causa de Catarina, e muito menos foi condenado por esse motivo. Na realidade, o Cardeal foi acusado de praemunire, ou seja, manter outra jurisdição (a do Papa) dentro da Inglaterra, em detrimento da do rei. Aos 57 anos, o prelado foi conduzido de sua residência em Yorkshire com destino à Torre de Londres, para ser julgado, vindo a falecer ao longo da viagem. Na série, porém, um novo desfecho foi dado à personagem: em vez de padecer de uma enfermidade, Wolsey tirou sua própria vida. Enquanto isso, na corte, uma peça patrocinada pelos Bolena era encenada, na qual o ex-chanceler era conduzido ao inferno. Um final indigno, na minha opinião, para alguém que já foi um dos homens mais poderosos do reino. Assim, “The Tudors” se despede de Sam Neil, intérprete que soube como poucos dar vida ao Cardeal. Com efeito, tanto o Wolsey da história quanto o Wolsey da ficção comprovaram que estavam certos quando afirmaram: “se tivesse servido a Deus como servi ao rei, ele não me teria deixado morrer dessa forma”.
Renato Drummond Tapioca Neto
Graduado em História – UESC
Mestrando em Memória: Linguagem e Sociedade – UESB
Análise muito boa, como sempre!! Obrigada por retornar com elas.
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Adoro suas análises e espero que possa voltar com elas em breve. Tenho uma fascinação por Ana Bolena e acho que em The Tudors conseguimos capturar melhor a essência dela e de Henrique. Mesmo tendo erros históricos acredito que The Tudors foi a adaptação áudio-visual que mais se aproximou da realidade e que conseguiu os melhores intérpretes para Ana, Henrique, Catarina e Wolsey.
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Fiquei decepcionada com o episódio 3, onde há erros crassos sobre o que se passou na época. Em Portugal nunca existiu nenhum Rei com o nome e as características apresentadas, o rei que governava na altura era jovem. É uma pena que o realizador não tenha estudado melhor a história do que realmente se passou. Pessoalmente gosto do elenco, fazem um ótimo trabalho. É pena a realidade estar tão adulterada, facto que me tirou o entusiasmo para continuar a ver a série.
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