Por: Renato Drummond Tapioca Neto
Entre os anos de 1589 e 1830, a França foi governada por uma das famílias mais poderosas da Europa, cujas ramificações se estenderam até o reino da Espanha e os reinos ao sul da Itália. Durante esse período, o governo absolutista atingiu a sua expressão máxima, personificada pela imagem de Luís XIV, mais conhecido como o Rei Sol. A ideia da grandeza de um soberano estava intimamente associada à de conquistas militares e alianças com outras potências estrangeiras através do chamada casamento dinástico. Ao longo dos séculos, as princesas foram educadas para cumprir o seu papel dentro desse acordo e fornecer à Coroa uma prole considerável de herdeiros, preferencialmente masculinos. Embora limitadas pela Lei Sálica (que impedia as mulheres na França de herdarem o trono), as rainhas Bourbon ultrapassaram o estereótipo da consorte recata baseada no modelo da virgem Maria, e se tornaram verdadeiras participantes no jogo diplomático da Europa Moderna. Soberanas como Margarida de Valois, Maria de Médici, Ana de Áustria, Maria Teresa da Espanha, Maria Leszczyńska e Maria Antonieta lançaram mão de diferente artifícios para proteger a Coroa e sua posição daqueles que queriam derrubar a dinastia do poder.

Margarida de Valois, segundo esboço de François Clouet.
Em 1589, o rei Henrique III da França foi assassinando, colocando assim um fim à dinastia dos Valois, que governava a França desde 1328. Seu sucessor foi Henrique de Navarra, casado com a princesa Margarida de Valois. A união entre uma católica e um príncipe protestante desencadeou um dos eventos mais sangrentos da história francesa: a noite de São Bartolomeu, em 24 de agosto de 1572, quando milhares de huguenotes foram assassinados por soldados da Coroa. Para herdar o trono, Henrique precisava renegar sua fé e aderir ao catolicismo. Quando questionado se pretendia tomar essa atitude, o novo monarca responder que “a Coroa da França vale bem uma missa”. Aos 36 anos ele se tornou Henrique IV, fazendo de Margarida, por um período de dez anos, rainha consorte. Mulher de atitudes irreverentes, a famosa Margot, a quem já foi dedicado tantos livros e filmes, não se encaixava no ideal de retidão esperado de uma soberana francesa. Vivendo no exílio e sem filhos do rei, ela concordou com a anulação do casamento em 1599. Foi uma figura frequente na corte até a sua morte, em 1615. Como recompensa, Margot recebeu o tratamento de rainha de jure, passando a gozar do respeito e estima do seu ex-marido e da nova soberana, Maria de Médici.
Nascida em 26 de abril de 1575, no Palazzo Pitti, em Florença, Maria pertencia a uma das famílias italianas mais importantes do Renascimento. Foi a sexta filha de Francisco I de Médici, grão-duque da Toscana, com Joana de Habsburgo, o que fazia daquela garotinha neta do imperador Fernando I do Sacro Império Romano-Germânico. Ao longo das gerações, os Médici melhoraram suas conexões com as casas reinantes da Europa por meio de sua política matrimonial. No ano em que Maria nasceu, por exemplo, sua prima Catarina ocupava o posto de rainha-viúva e regente da França. Um destino não muito diferente aguardava aquela criança de 1575. Para se tornar um bom partido, ela precisou aprender História, Matemática, Desenho, Escultura e Música. Aos 22 anos, em 1597, era uma jovem de feições agradáveis e um bom partido para o jogo de alianças dinásticas do continente. Foi assim que o seu tio, o grão-duque Fernando I, negociou o casamento da sobrinha com o rei Henrique IV da França. Mais uma vez, uma rainha Médici pisava em território francês e a jovem possuía um caráter tão resoluto quanto o de sua antecessora.

Maria de Médici, por Rubens.
Com efeito, o casamento Médici interessava bastante a Henrique IV, já que a família italiana era considerada uma das mais ricas da época. Com Henrique, Maria teria 6 filhos, entre eles Luís XIII da França e duas filhas que se tornaram rainha pelo casamento: Isabel na Espanha e Henriqueta na Inglaterra. Entretanto, não foi uma união feliz. Henrique possuía várias amantes e muitos filhos bastardos. Além disso, não confiava na esposa em assuntos políticos, o que fez crescer a antipatia entre o casal. Um dia após Maria ser coroada rainha consorte da França, em Saint-Denis, no dia 13 de maio de 1610, o rei foi assassinado. Após a morte do marido, a soberana foi nomeada regente durante a menoridade de seu filho. Suas políticas, porém, desagradaram a muitos súditos, principalmente os huguenotes, que não viam com bons olhos a aproximação do governo com o reino da Espanha, culminando com o casamento de Luís XIII com a filha do rei Felipe III. As péssimas relações entre a soberana e o seu filho resultaram no afastamento de Maria de Médici da regência. Em seguida, ela foi exilada pelo rei e se juntou ao coro dos revoltosos. Ela morreu em 3 de julho de 1642, deixando para trás uma considerável fortuna em joias e obras de arte, assinadas pelo gênio Peter Paul Rubens.
A sucessora de Maria de Médici como rainha consorte foi Ana de Áustria. Nascida no ano de 1601 em Valladolid, Ana era filha do rei Felipe III da Espanha (o “de Áustria” faz referência à origem da casa real espanhola, os Habsburgo). Aos 14 anos, ela se casou por procuração com o rei Luís XIII da França, enquanto a irmã deste, Isabel, se casou com o herdeiro do trono espanhol. Este duplo matrimônio entre os Bourbon e os Habsburgo tinha por função selar uma amizade entre as duas dinastias, algo que não perdurou por muitos anos. Ana era considerada uma jovem culta, bem formada de corpo e com mãos encantadoras. Tanto que Rubens deu especial atenção a essa parte do seu corpo, conforme podemos ver na tela abaixo. As primeiras décadas de Ana de Áustria na França foram bem difíceis, devido à ausência de herdeiros. Ela tinha problemas com sua sogra, Maria de Médici e precisava lidar constantemente com a apatia do marido. Apenas em 1638, após alguns abortos, ela deu à luz ao futuro Luís XIV. Dois anos depois, nasceu Felipe, duque de Orléans. O parto tardio de dois garotos gerou rumores de que o rei talvez não fosse o pai dos meninos. Porém, Luís XIII nunca questionou a paternidade das crianças.

Ana de Áustria, por Rubens.
Em 1643, Luís XIII morreu, passando a coroa para a cabeça do seu filho de 5 anos. A rainha foi então nomeada regente, seguindo assim os passos de suas antecessoras, Maria de Médici e Catarina de Médici. Ao lado do cardeal Mazarin, Ana governou a França durante uma das fases mais instáveis do longo reinado de seu filho, marcada pela guerra com a Espanha e contra os príncipes de sangue, que se levantaram contra o rei menino (as chamadas Frondas, lideradas pelos príncipes de Condé e Conti). Como regente, a soberana conseguiu proteger o trono de seus rivais e negociou o casamento de sua sobrinha, Maria Teresa (filha do rei Felipe IV) com o primo, para selar a paz com o reino vizinho. Quando assumiu as rédeas de seu governo pessoal, uma das primeiras medidas de Luís foi afastar a mãe do governo e assegurar que qualquer outra rainha não tivesse mais participação ativa na política do país. Apesar do respeito que sempre demontrou para com a mãe, o monarca deu vazão às suas concepções misóginas, de que o sexo feminino e a esfera pública eram polos opostos. Ana de Áustria faleceu em 20 de janeiro de 1666, aos 65 anos.
Com o falecimento da rainha-mãe, sua sobrinha e nora, Maria Teresa da Espanha, ficou em uma posição bastante difícil. Sua figura permanece praticamente eclipsada pela imagem projetada de Luís XIV na historiografia. Nascida em 10 de setembro de 1638, Maria Teresa era filha do rei Felipe IV da Espanha com sua primeira consorte, Isabel de França. Através do Tratado dos Pirenéus, ela se casou com seu primo carnal, Luís XIV, colocando assim um breve fim nas guerras entre os dois reinos. A nova rainha foi recebida no novo país com grande pompa e júbilo. Os dois se casaram na Igreja de São João Batista, em Saint-Jean de Luz (França), em 9 de junho de 1660. Uma placa em francês diz que, após a cerimônia, o monarca ordenou que a porta fosse selada, para que nenhum outro casal passasse por ela. Até hoje acontecem muitos batizados, casamentos e festas religiosas no local, mas se a porta continuou fechada durante esses 356 anos, não é possível provar. Ao todo, Maria Teresa teria 6 filhos do marido, embora apenas o mais velho sobrevivesse à infância. Provavelmente, aquele casamento em primeiro grau de afinidade foi a razão das mortes dos pequenos infantes. Sua descendência, porém, se espalhou entre quase todas as atuais casas reinantes da Europa, incluindo o Brasil na América do Sul.

Maria Teresa da Espanha, por Jean Nocret.
Com efeito, Luís e Maria Teresa eram primos tanto por via materna, quanto por via paterna (Ana de Áustria, mãe de Luís XIV, era irmã de Felipe IV da Espanha, enquanto Isabel de França era irmã de Luís XIII). Maria Teresa viveu isolada a maior parte do tempo na corte de França, tendo como principal companhia a sua tia e sogra, Ana de Áustria. Sua união com o rei francês havia sido motivada por fins políticos e Luís XIV passava a maior parte do tempo na companhia das amantes. Luís XIV havia lhe feito algumas promessas quando se casaram. Uma delas foi a de que compartilhariam o mesmo leito todas as noites, o que ele cumpriu; a outra seria mantida após o seu aniversário de 30, quando o monarca lhe seria completamente fiel. Essa última, porém, que Luís XIV não cumpriu. Uma das amantes do Rei Sol, Louise de La Vallière, chegou a pedir desculpas à rainha por todo o sofrimento que seu caso com o soberano pudesse lhe ter causado. Com efeito, Maria Teresa chegou a ser regente da França em três ocasiões, quando o marido estava fora em campanhas estrangeiras. Mas sua nacionalidade espanhola, porém, foi um fator determinante para que o soberano a mantivesse afastada dos negócios de Estado. A rainha faleceu em 30 de julho de 1683, no Palácio de Versalhes, em decorrência de um tumor embaixo do braço. “Esse foi o único aborrecimento que ela me causou”, disse Luís XIV sobre o falecimento da consorte. Demoraria 42 anos até que a França tivesse outra soberana: Maria Leszczyńska, a relegada esposa de Luís XV.
Segunda filha do rei Estanislau I da Polônia com Catarina Opalińska, Maria Karolina Zofia Felicja Leszczyńska nasceu em Trzebnica, na Polônia, em 23 de junho de 1703, dois anos antes de seu pai ter sido eleito rei pela Dieta, em 1705. Vivendo às custas da caridade da Coroa Sueca, Maria foi aos poucos se educando na língua e na cultura local, o que lhe permitiria, anos mais tarde, receber tranquilamente os embaixadores suecos na França. Em 1725, Estanislau I e sua família já viviam há dezesseis anos no exílio, quando um pedido inusitado da Coroa Francesa chegou às suas mãos: o rei Luís XV, de apenas quinze anos, desejava desposar a jovem Maria, de vinte e um. O pedido deixou a todos os Leszczyński bastante espantados. Eles não pertenciam à grande aristocracia e sequer tinham um tostão para o dote da noiva, exceto um capital de desventuras acumuladas ao longo dos anos. Com efeito, Maria Leszczyńska não ignorava a difícil tarefa que havia caído nas suas mãos. Em Wissembourg tinha ouvido falar do caráter sombrio e fechado de Luís XV. Para além de um marido retraído e pouco afável, que tinha pouquíssima experiência com as mulheres, a futura rainha teria de aprender a lidar com todo um universo de regras de etiqueta e protocolos que moviam a corte de Versalhes.

Maria Leszczyńska, por Jean-Marc Nattier.
A união foi consumada logo após o banquete. Dentro de um espaço de seis meses, conforme ressaltou o advogado parisiense Edmond-Jean-François, Maria Maria Leszczyńska “passou da mais triste e mais desventurada condição ao primeiro trono do mundo”. Entretanto, apesar de ter sido alçada ao trono mais desejado do continente europeu, Maria Leszczyńska possuía uma margem de ação política bastante limitada, uma vez que suas obrigações não compreendiam assuntos de Estado. Estes ficavam ao encargo do rei e do autoritário cardeal Fleury, o ex-preceptor de Luís XV. Aos poucos, o príncipe de contos de fadas, por quem Maria havia se apaixonado, se mostrou um homem distante e, às vezes, impiedoso. Sua solicitude dera lugar a um profundo despeito e sua presença passara a provocar-lhe verdadeiro temor. Com poucos meses de casada, Maria Leszczyńska falhara terrivelmente em conquistar a confiança do seu marido. Por outro lado, o mesmo não poderia ser dito quanto às obrigações conjugais do rei, que frequentava o leito da rainha com frequência. Entre agosto de 1727 e julho de 1737, Maria deu à luz oito meninas e dois meninos, um número muito expressivo, embora nem todos tenham sobrevivido à primeira infância. No ano em que completou 20 anos, Luís XV já era pai de cinco filhos e aos 31, já era avô.
Após a morte da rainha Maria Leszczyńska, em 1768, passaram-se 6 anos até que outra mulher assumisse seu lugar como consorte real: Maria Antonieta de Habsburgo-Lorena, filha da imperatriz Maria Teresa da Áustria. Famosa por seu vestuário extravagante e gostos expansivos, Maria Antonieta (arquiduquesa da Áustria e rainha da França entre os anos de 1774 e 1792), até hoje permanece como um ícone da moda para a cultura ocidental. Decapitada em 16 de outubro de 1793, sua cabeça ostentou em vida algumas das mais belas joias já fabricadas no continente europeu. Quando jovem, seu amor pelas belas roupas e adereços ostensivos acabou por lhe criar uma péssima reputação, numa época em que a França passava por grave crise financeira. A imagem da soberana gastadeira, que escarnecia da fome e da miséria dos súditos foi bastante veiculada pela imprensa, especialmente após o embuste envolvendo seu nome e a aquisição de um gigantesco colar de diamantes, avaliado atualmente em 14 milhões de dólares. Anualmente, biografias e livros recém-publicados enchem as prateleiras de livrarias ao redor do mundo, provando que ainda existe muito para ser explorado na história da icônica soberana, morta em meio ao Terror de Robespierre.

Maria Antonieta, por Mme. Vigée Le Brun
Ao subir ao trono da França, em 1814, Luís XVIII, irmão de Luís XVI, começou a coletar memórias e depoimentos da antiga criadagem de Versalhes, sobre os principais acontecimentos da corte durante o período pré-revolução, especialmente entre aqueles que eram próximos aos soberanos. Deste período, surgem os relatos de Madame Campan, camareira-mor de Maria Antonieta, e as memórias da duquesa de Tourzel, preceptora dos príncipes da França. A partir de então, começou-se a cultuar na Europa o mito da rainha mártir, injustiçada pelos revolucionários, incompreendida pelo povo e abandonada à sua própria sorte. Hoje em dia, essa imagem santificada da rainha convive lado a lado com outra, bem menos enaltecedora: a de Maria Antonieta enquanto pessoa irresponsável, leviana e gastadeira; a mulher que, ao saber da fome do povo, teria escarnecido de sua miséria com a frase “que comam brioches”. Esse contraste de posições, por sua vez, transforma-a em uma personagem bastante controversa. De um lado, aqueles que são indulgentes aos seus caprichos: do outro, os que enxergam sua postura com agressividade. Maria Antonieta ainda hoje sofre com o poder dessa propaganda negativa. Ela foi, em muitos sentidos, um produto da corte, que tanto a ergueu ao posto de musa, quanto a derrubou de seu pedestal no momento mais oportuno.
Em 1791, quando os títulos de rei e rainha da França foram extintos, o país nunca mais veria uma soberana da envergadura de Maria de Médici ou Ana de Áustria. Durante o Primeiro e o Segundo Império, mulheres como Joséphine de Beauharnais e Eugénia de Montijo tentaram restaurar um pouco do esplendor de suas antecessoras, mas não com o mesmo êxito. A Revolução Francesa mudou para sempre a forma como a população enxergava a realeza. Em vez de semideuses, que viviam esbanjando o dinheiro público com festas e frivolidades, eles deveriam prestar contas de suas ações e estar submetidos às leis constitucionais que passaram a reger o destino da humanidade a partir de então. Por outro lado, é inegável o papel que essas mulheres tiveram na história do país. Seja atuando diretamente no jogo político ou no campo das representações culturais, elas provaram que eram mais do que um útero contratado por casamento para procriar. Suas ações tiveram consequências importantes no futuro da dinastia, fossem elas boas ou más. É por isso que até hoje seus nomes são lembrados, ora com admiração, ora com desprezo. Contudo, o simples fato de se comentar tanto sobre tais personagens, faz de cada uma delas mais vivas e verdadeiras do que os perfis austeros nos quadros empoeirados, fixados nas paredes de algum museu.
Referências Bibliográficas:
CRAVERI, Benedetta. Amantes e rainhas: o poder das mulheres. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
FRASER, Antonia. Maria Antonieta. Tradução de Maria Beatriz de Medina. 4ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2009.
GOLDSTONE, Nancy. The Rival Queens. Nova Iorque: Back Bay Books, 2015.
_. O amor e Luís XIV: as mulheres na vida do Rei Sol. Tradução de Heloísa Mourão. Rio de Janeiro: Record, 2009.
PRICE, Munro. A queda da monarquia francesa. Rio de Janeiro: Record, 2007.
Parabéns, Renato. Um jovem pesquisador que nos traz excelentes históricos. Gosto muitíssimo de “passear” por suas ricas histografias. Muito obrigada.
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