Irmãs e rainhas: as filhas de Isabel I de Castela – Parte V: o legado de Isabel

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

Isabel I de Castela é considerada uma das soberanas mais poderosas de seu tempo e também umas das precursoras da chamada monarquia de gênero na Europa. Seu vasto legado foi passado adiante pela linhagem feminina e desta para os quatro cantos do mundo. Após o seu falecimento, em 26 de novembro de 1504, observamos um número cada vez maior de mulheres assumindo posições de poder, na qualidade de rainhas reinantes ou rainhas regentes. O sucesso do reinado de Isabel contribuiu assim para diminuir o receio que muitos reinos tinham de passar a coroa para as mãos de uma princesa, supostamente sujeita às vontades do marido. A despeito das muitas teorias que consideravam a mulher e a política como esferas incompatíveis, o século XVI foi quase todo dominado pelo governo feminino, seja na Inglaterra, com Maria I e Elizabeth I; na Escócia, com Mary I Stuart; na França, com Catarina de Médici; ou até mesmo nos Países Baixos, com a arquiduquesa Margarida de Habsburgo. A lenda de Isabel I de Castela atravessou os últimos cinco séculos da história da Europa e da América com uma força bastante singular. Seu trabalho, empreendido ao lado do rei Fernando II de Aragão, dentro de uma Espanha caótica e com características medievais, perdura até os dias de hoje

Isabel de Aragão, rainha de Portugal

Entretanto, quase nenhuma atenção tem sido dada àquelas que deram continuidade ao legado da primeira rainha reinante de Castela, suas filhas Isabel, Joana, Maria e Catarina. Embora Joana e Catarina costumem receber uma atenção maior por parte dos biógrafos, mais por conta dos dramas que vivenciaram na vida privada do que por sua inteligência e desenvoltura, pouco tem sido dito sobre seus papeis enquanto governantes e rainhas. Ao longo de quatro textos, enfatizei como Isabel de Castela se dedicou com afinco à educação de suas filhas, para que se tornassem as princesas mais bem preparadas de seu tempo. Educação essa que ia muito além dos rudimentos necessários para a formação de uma futura esposa dinástica. Isabel também não hesitou em leva-las consigo em campanhas militares. A visão de sua mãe acompanhado exércitos rumo a batalha, vestida em armadura e montada num cavalo de guerra, algo bastante incomum para uma rainha cristã até aquele período, certamente causou forte impacto naquelas quatro jovens. A participação da soberana junto às tropas ia muito além de organizar posições e arranjar suprimentos, ou de recrutar trabalhadores para construção de equipamentos. Ela exercia também uma função quase mística, já que muitos soldados acreditavam que a rainha e suas orações lhes traziam sorte na batalha. Muitos deles até imploravam pela presença do “rei” Isabel.

Só podemos conjecturar o quanto que essa infância permeada por guerras, com a rainha migrando de um cerco militar para outro, contribuiu para a formação do caráter das infantas. As batalhas e os problemas difíceis, porém, não foram entrave para que Isabel cumprisse as suas obrigações enquanto mãe. Conforme ressalta Luiz Amador Sanchez:

A direção da vida doméstica, incluindo a educação dos príncipes, ocorreu sempre a cargo de D. Isabel. Na ordem dos assuntos do governo, a rainha, por sua parte, soube conservar um sadio equilíbrio, e quanto aos assuntos políticos, nunca se produziram mal entendidos que perturbassem a harmonia do lar. D. Fernando nunca teve ocasião de lamentar-se dos castelhanos, como rei consorte de D. Isabel, e em Aragão a rainha soube conquistar para si o mesmo respeito e admiração que entre seus súditos de Castela (1945, p. 290).

Embora a suposta harmonia que existia entre os reis católicos tivesse sido perturbada em alguns momentos devido a certos escândalos extraconjugais envolvendo D. Fernando, quando o assunto era a educação dos filhos e/ou questões de Estado, é possível dizer que os dois quase sempre estavam em comum acordo. Juntos, realizariam uma profunda transformação no ambiente social espanhol, da mesma forma como fizeram com as fronteiras do país, convidando artistas e pensadores com a missão de trazer a erudição do renascimento italiano a uma Espanha recém-saída da Idade Média.

Joana de Aragão, rainha de Castela.

Um dos maiores empenhos da política externa da rainha Isabel foi a união da Espanha com Portugal, através do matrimônio de duas de suas filhas: primeiro Isabel, que faleceu em 1498, e depois Maria, que se casou com o viúvo de sua irmã mais velha, em 1500. As lutas pela sucessão castelhana, anos antes, deixaram as relações entre as duas coroas bastante desgastadas. O casamento das infantas com o rei D. Manuel I, por sua vez, trouxe consigo um período de relativa paz e concórdia entre os dois reinos, algo que se estenderia ainda por muitos anos, graças as uniões subsequentes envolvendo os membros das duas famílias reais. Não obstante, o duplo casamento com os Habsburgo da Áustria, da infanta Joana com o arquiduque Felipe e do príncipe das Astúrias com a arquiduquesa Margarida, trouxe o Sacro Império para o círculo dos mais importantes aliados dos Reis Católicos. Por fim, a junção entre a infanta Catarina e o príncipe de Gales só fez reforçar os laços sanguíneos que já existiam com a coroa inglesa. Assim, cada uma das princesas foi enviada a um diferente trono, para dar cabo da missão que desde cedo estavam preparadas para executar. Elas levaram consigo a experiência aliada a uma ótima disciplina e, em maior ou menor grau, contribuíram para a transformação sociocultural dos reinos estrangeiros nos quais se instalaram.

Com efeito, é importante ressaltar que o legado de Isabel não foi passado adiante por seu filho, Juan, príncipe das Astúrias, que morreu na idade prematura de 19 anos, e sim através da linhagem feminina. Joana de Aragão assumiu o governo de Castela após a morte de sua mãe, em 1504. Embora tenha permanecido no poder por pouco tempo, seus filhos e netos ocuparam posições sociais importantes. Muito já se falou, por exemplo, do imperador Carlos V, mas e suas irmãs? Leonor da Áustria foi esposa dos reis de Portugal e da França, enquanto Isabel foi rainha consorte nos reinos da Dinamarca, Noruega e Suécia. Maria de Habsburgo, por sua vez, casou-se com Luís II da Boêmia e da Hungria, sendo também regente dos Países Baixos em nome de Carlos V. Dentre elas, porém, a que exerceu maior poder foi Catarina da Áustria. Nascida em 1507, depois da morte de seu pai, o arquiduque Felipe, por anos ela permaneceu recluída com sua mãe, em Tordesilhas, até ser dada em casamento ao rei D. João III de Portugal. Depois da morte do marido, entre os anos de 1557 e 1562, Dona Catarina assumiu o comando do vasto império ultramarino português, na qualidade de regente, durante a minoridade de seu neto, D. Sebastião. Nesse sentido, pode ser considerada a primeira mulher que governou uma das mais prósperas colônias de Portugal, o Brasil.

Maria de Aragão, rainha de Portugal.

Das filhas de Maria de Aragão, sem dúvidas a mais conhecida foi Isabel, esposa de Carlos V e, portanto, imperatriz do Sacro Império Romano-Germânico. O belo retrato que Ticiano lhe pintou traduz para o observador a imagem serena de uma mulher que foi em seu tempo a primeira dama da Europa. Perto dela, sua irmã, Beatriz, duquesa de Saboia, permanece bastante eclipsada. A rainha Maria, porém, cuidou para que a educação das duas fosse tão boa quanto a que recebera na Espanha. As princesas portuguesas e suas primas no continente deram continuidade à política matrimonial estabelecida por sua avó, levando assim o sangue dos reis católicos a quase todas as casas reinantes da Europa e além. Segundo Kirstin Downey: “as famílias reinantes da Espanha, Bélgica, Luxemburgo, dos Países Baixos, do Reino Unido, Dinamarca, Noruega, Suécia e Mônaco todas compartilham como ancestral comum a rainha Isabel e o rei Fernando (2015, p 434). Os descendentes de Isabel e Fernando cruzaram o Atlântico e se estabeleceram abaixo dos trópicos, nas várias colônias espanholas e no Brasil. Dois deles, o príncipe D. Pedro de Portugal e sua esposa, a arquiduquesa Leopoldina de Habsburgo, fundaram na América do Sul a primeira monarquia do continente, que duraria de 1822 a 1889. Os membros atuais da família imperial brasileira também carregam nas veias o sangue dos Reis Católicos.

Entretanto, nenhuma das netas de Isabel de Castela foi tão poderosa quanto Maria Tudor, primeira rainha reinante da Inglaterra. Tal como sua avó fizera na Espanha, Maria liderou exércitos e brigou pela coroa, quando forças antagônicas buscavam destitui-la de sua herança. As experiências difíceis pelas quais passou na infância, como o afastamento forçado da mãe, o exílio da corte e o medo que sentia do pai, preparam Maria para o importante papel que a aguardava. Tampouco a rainha Catarina descuidou de sua educação, buscando o que de melhor existia para a instrução de sua filha. Embora tenha reinado por pouco tempo e num período politicamente instável, o plano de governo de Maria foi reaproveitado por sua sucessora, Elizabeth I, que deu prosseguimento a muitas das metas estabelecidas por sua meia-irmã. Tanto Maria I quanto Elizabeth I da Inglaterra são expoentes da chamada monarquia de gênero, cujas bases modernas foram definidas pela rainha de Castela no século XV. Ambas podem ser consideradas responsáveis pela perpetuação do legado de Isabel no Reino Unido, que ainda assistiria a ascensão de mais quatro soberanas. Curiosamente (ou não), a atual Elizabeth II também descende da primeira rainha reinante de Castela.

Catarina de Aragão, rainha da Inglaterra.

Antes de subir ao trono, Isabel era apenas a terceira na linha sucessória, atrás de seus dois irmãos. Sua tarefa, assim como a de outras princesas europeias, era se casar em alguma corte estrangeira e selar uma importante aliança política. Quis o destino que o curso dos acontecimentos tomasse outra direção. Uma vez no poder, ela brigou pelo trono contra sua sobrinha, Joana, cognominada a “Beltraneja”, que era apoiada por Portugal. Ao lado do marido, Fernando, Isabel não só afastou a ameaça da outra herdeira, como também lutou contra uma nobreza insubmissa e fortificou o poder da coroa, graças às importantes alianças dinásticas com outras casas reinantes da Europa. Mesmo doente, acamada e às vésperas da morte, em 1504, continuava trabalhando, para que os negócios do reino permanecessem estabilizados. Seguindo os preceitos estabelecidos por Maquiavel, é possível dizer, sem medo de incorrer em engano, que o monarca mais estrategista do período foi na verdade uma mulher, que possuía muitas das qualidades que o autor de O Príncipe tanto prezava num governante. Não foi à toa que, quando chegou a Medina del Campo, o italiano Prospero Colonna pediu categoricamente para ser levado aos aposentos de Isabel, dizendo que queria “ver a mulher que governava o mundo deitada em sua cama”.

Referências Bibliográficas:

DOWNEY, Kirstin. Isabella: The Warrior Queen. New York: Anchor Books, 2014.

FRASER, Antonia. The Warrior Queens: Boadicea’s Chariot. UK: Arrow Books, 1999.

GRISTWOOD, Sarah. Game of Queens: the women who made sixteenth-century Europe. Nova York: Basic Books, 2016.

SANCHEZ, Luiz Amador. Isabel, A Católica. Tradução de Mário Donato. – Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1945.

STEVENS, Paul. Fernando e Isabel. Tradução de Edi Gonçalves de Oliveira. – São Paulo: Nova Cultural, 1988.

VILLANUEVA, Fernando Díaz. Isabel La Católica. – Madrid: Edimat Libros, 2007.

5 comentários sobre “Irmãs e rainhas: as filhas de Isabel I de Castela – Parte V: o legado de Isabel

  1. Amo história! Principalmente tudo que diz respeito à monarquias! Gostaria de saber se existe algum livro a respeito da história da monarquia mundial…
    Amo esse blog!

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  2. Isabel foi uma mulher impressionante… conheci sua historia recentemente assistindo a série Isabel,Rainha de Castela e fiquei apaixonada por sua coragem e determinação.

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  3. Fiquei impressionada com a determinação e coragem de Isabel, numa época em que não era tão fácil para uma mulher se destacar e se impor. Sua determinação é impressionante. Estou revendo a série Isabel, a rainha de Castela e cada vez mais fico encantada com sua determinação.

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