Irmãs e rainhas: as filhas de Isabel I de Castela – Parte II: Joana de Trastâmara, a rainha louca?

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

Das filhas de Isabel, a Católica, certamente a mais controversa foi Joana, que sucedeu sua mãe no trono de Castela e passou para a posteridade como uma mulher desequilibrada emocionalmente, ou mesmo louca, como ficaria mais conhecida (Juana La Loca). A historiografia costuma ser bastante cruel para com a figura de Dona Joana I de Castela, definindo-a como incapaz de governar um grande reino. Porém, pesquisas recentes vieram ao auxílio desta personalidade, para demonstrar uma nova faceta da soberana, incompreendida por muitos e reverenciada por poucos. Sua história possui elementos de uma autêntica tragédia grega: viúva aos 26 anos e mãe de seis filhos, dos quais foi separada desde muito cedo (exceto a mais nova, a infanta Catarina), Joana foi uma vítima do poder, um joguete nas mãos de homens ambiciosos, como seu marido, Felipe de Habsburgo, seu pai, Fernando II de Aragão, e mesmo de seu filho, o imperador Carlos V de Alemanha e I de Espanha. Ela permaneceria a maior parte de sua vida recluída na fortaleza de Tordesilhas, onde veio a falecer no dia 12 de abril de 1555, aos 75 anos. Mas como uma mulher, bastante educada, escorregou para um destino tão diferente daquele para o qual havia sido preparada? É o que pretende-se discutir no texto a seguir.

Arquiduquesa Joana, por Juan de Flandes.

Com efeito, não procuramos refazer aqui a biografia da rainha Joana. O leitor e a leitora poderá acompanhar toda a saga desta soberana, clicando aqui. Preocupo-me antes de mais nada em fazer um balanço de sua trajetória, na expectativa de lançar um pouco mais de luz ao assunto. Joana nasceu no inverno de 1479, em 6 de novembro, e foi batizada em homenagem ao santo padroeiro de sua família, assim como o infante Juan, príncipe das Astúrias, nascido um ano antes. A rainha Isabel envolvera-se pessoalmente na educação de suas filhas, preocupada como estava em que elas recebessem um ensino superior ao que lhe fora passado quando criança. A soberana de Castela criou espaço para o desenvolvimento do humanismo renascentista em sua corte. Embora não fosse uma mulher de grande erudição, possuía paixão pelo conhecimento e sensibilidade pela cultura, sendo proprietária de uma das coleções de arte mais importantes de seu tempo, além de dispor de uma excelente biblioteca. Foi nesse ambiente que Joana cresceu, cercada por artistas e pensadores, patrocinados por seus pais. A infanta, por sua vez, era considerada uma excelente dançarina e tocava o clavicórdio como poucos. Entretanto, o que diferia Joana de suas irmãs era o seu temperamento.

Joana possuía um caráter um tanto quanto insubmisso, o que contrariava o ideal cristão de retidão feminina. Embora  a rainha Isabel recomendasse a suas filhas paciência e probidade, o exemplo oferecido pela rainha de Castela, mulher de fibra e governante implacável, certamente teve mais impacto em Joana do que as palavras que saiam da boca de sua mãe. Esse temperamento seria a origem de todos os seus problemas com o marido que lhe foi escolhido, o arquiduque Felipe de Habsburgo, conhecido como o Belo. Eles se casaram em 1496, quando Joana tinha 16 anos. Nas palavras de Michael Prawdin:

Não era nada além de um casamento político, um de tantos outros em que as casas reinantes buscavam aumentar o prestígio de suas dinastias e acrescentar sua influência sobre as cortes estrangeiras e países remotos. Uniam-se tronos e reinos, brigava-se pela sucessão, e o poder era acrescentado graças a uma hábil política familiar. […] Não fazia ainda trinta anos que Isabel, herdeira do trono de Castela, havia se casado com Fernando, sucessor do trono de Aragão, juntando com esse matrimônio os dois reinos mais poderosos da península Ibérica. Unidas assim suas forças, os jovens soberanos haviam incorporado a Castela, depois de uma guerra de dez anos, o reino de Granada, último reduto mouro que restava em solo europeu (1953, p. 9).

Felipe “o Belo”, e Juana I de Castela, por Master of the life of Joseph.

Essa política matrimonial entre as casas reinantes da Europa levaria os reis católicos a organizar um duplo casamento com o Sacro Império, na expectativa de isolar a França: ao príncipe das Astúrias seria dada como esposa a arquiduquesa Margarida, enquanto Joana se casaria com o herdeiro do imperador Maximiliano I, Felipe, um homem tão ambicioso quanto seu pai. O direito de Joana aos tronos de Aragão e Castela, certamente foi um grande incentivo para que o imperador acordasse aquele casamento com os reis católicos. Quando da morte de seus irmãos mais velhos, Juan, em 1497, Isabel, em 1498, e do infante Miguel da Paz, Joana se tornou a presuntiva herdeira de seus pais.

Assim sendo, a rainha de Castela estava numa posição bastante complicada. Ela não ignorava as ambições de Felipe de Habsburgo e a possibilidade de este transformar Castela numa estado satélite do Sacro Império, arruinando assim a unificação do território espanhol pela qual ela e Fernando tanto lutaram. Do outro lado, haviam as ambições do próprio Fernando II de Aragão em usurpar o direito de seus filhos com Isabel ao trono castelhano. Como Joana, casada com um príncipe estrangeiro, e uma mulher bastante obcecada pelo marido, era um candidata pouco confiável, Isabel determinou que, no caso de sua filha ser considerada inapta para governar, Fernando assumiria o governo de Castela na qualidade de regente. Rumores de que a princesa estava começando a enlouquecer começaram a circular pela Europa no início dos anos 1500, para grande preocupação de seus pais. É preciso dizer que muitos desses boatos foram alimentados pelo próprio Felipe, dado o grande ciúme que ela sentia por ele, a ponto de perseguir suas amantes. No imaginário de muitos, Joana havia herdado a mesma insanidade de sua avó, a rainha Isabel de Portugal. Sua mãe procurou influencia-la como pode, mas o fato é que Joana não tinha o mesmo interesse que Isabel pelos assuntos de estado. Para Prawdin:

Incapaz de sacrificar sua felicidade de mulher a seu destino de rainha, [Joana} renunciou a tudo para salvar seu amor, e o perde no final. Traída, seu ódio chegou a ser tão violento como havia sido seu amor. Vendo que seu esposo queria nada além de sua coroa, [ela] defendeu desesperadamente, a despeito de sua liberdade e de sua vida, o mesmo poder real que não queria possuir contra o homem que para ela era tudo. E, no entanto, quando o destino derruba esse homem odiado, ela esquece seu ódio e se oferece novamente em sacrifício para lhe salvar sua vida (1953, p. 7).

Juana I de Castela, com seus filhos, por Nicolaus Alexander Mair von Landshut.

Contrariando a natureza do casamento dinástico, a princesa se apaixonou por seu marido, um homem indigno do sentimento que ela nutria por ele e que não hesitou em confirmar a insanidade de sua esposa. Mas o que era ser louco no período do Renascimento? Com o declínio da epidemia da peste negra, o tema da loucura passou a ganhar maior atenção por parte das autoridades públicas. Acusar alguém de louco era sem dúvida também estar fazendo uma crítica a essa pessoa e aos seus costumes e ideias. Por não se comportar como se esperava de uma mulher cristã, Joana então se tornou um alvo para a língua de homens ambiciosos, como Felipe “o Belo”. Os dados de que dispomos não são suficientes para esboçar um quadro clínico preciso da condição mental de Joana. Poderia ela sofrer de alguma psicose, ou simplesmente ser dotada de um comportamento histérico, que na época foi tratado como loucura, um argumento muito conveniente para as pessoas que se beneficiaram da suposta incapacidade de Joana para governar.

Assim que se tornou herdeira do trono de Castela, Joana se tornou uma cativa do poder. Em vez de se tornar uma rainha tão poderosa como sua mãe o fora, terminou seus dias como Juana La Loca, la prisionera de Tordesillas. Traída primeiro por seu marido, Felipe, depois por seu pai, Fernando, e em último lugar por seu filho, Carlos V, Joana foi transformada numa espécie de rainha de papel, uma figura representativa entre os muitos símbolos da monarquia ibérica. Um rosto sem voz. De fato, ela conheceu um destino bastante infeliz. Era uma princesa amada pelo povo de Castela. Ao contrário do que o arquiduque Felipe e o rei Fernando afirmavam, o equilíbrio mental de Joana foi testemunhado por outras pessoas que conviveram com ela, entre elas sua irmã mais nova, Catarina, que em 1506 teve a oportunidade de comprovar que a nova rainha de Castela era uma mulher em posse de suas faculdades mentais. Mas nesse campo podemos apenas conjecturar. Não dispomos de escritos do próprio punho de Dona Joana sobre sua própria saúde mental, apenas o que escreverem sobre isso em seu tempo de vida e depois que ela morreu. A lenda da rainha enlouquecida por amor ganhou contornos além do imaginário ao longo dos séculos, especialmente a partir da Era romântica, nos anos 1800, quando a história da rainha que costumava visitar o cadáver do seu marido fascinava a muitos pintores e romancistas.

A lenda da rainha enlouquecida por amor ganhou contornos além do imaginário ao longo dos séculos, especialmente a partir da Era romântica, nos anos 1800, quando a história da rainha que costumava visitar o cadáver do seu marido fascinava a muitos pintores e romancistas. (Doña Juana la Loca, em procissão à Granada com o corpo de Felipe, por Francisco Pradilla Ortiz).

Tendo vivido por 75 anos, Joana deu à luz seis filhos, numa época em que a mortalidade infantil era muito alta. Todos eles atingiram a maioridade e foram coroados: Carlos V e Ferdinando I, ambos imperadores do Sacro Império; suas quatro filhas se tornaram rainhas: Eleonor, rainha da França, Isabel, rainha da Dinamarca, Maria, rainha da Hungria, e Catarina, nascida depois da morte de seu pai, rainha de Portugal. Em virtude dos diversos casamentos dinásticos que ocorreram nos anos seguintes, pelo menos doze reis da cristandade descendiam de Dona Joana. Era ela louca? Certamente não. Mas talvez possamos dizer que ser rainha da Espanha no século XVI seria um peso muito grande para ela, visto que sua autoridade não se limitaria apenas ao território nacional, convergindo para além-mar, nas colônias no chamado Novo Mundo. Entre as ilustres personalidades que viveram em seu tempo, ela ainda permanece envolta em sombras. A historiografia espanhola ainda possui uma dívida muito grande para com a segunda rainha reinante de Castela. Seu verdadeiro papel nos acontecimentos que marcaram o século XVI ainda está por ser esclarecido. Graças a ela e sua irmã, Maria, rainha de Portugal, o sangue dos reis católicos se difundiu em todas as casas reais da Europa.

Referências Bibliográficas:

ALTAYÓ, Isabel; NOGUÉS, Paloma. Juana I: La Reina Cautiva. España, 1985.

ÁLVAREZ, Manuel Fernández. Juana La Loca: La Cautiva de Tordesillas. Barcelona: Espasa Calpe, 2007.

DOWNEY, Kirstin. Isabella: The Warrior Queen. New York: Anchor Books, 2014.

PRAWDIN, Michael. Juana La Loca. Barcelona: Editorial Juventud, 1953.

SANCHEZ, Luiz Amador. Isabel, A Católica. Tradução de Mário Donato. – Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1945.

STEVENS, Paul. Fernando e Isabel. Tradução de Edi Gonçalves de Oliveira. – São Paulo: Nova Cultural, 1988.

TAPIOCA NETO, Renato Drummond. Rainhas Trágicas: quinze mulheres que moldaram o destino da Europa. Amadora, Portugal: Vogais, 2016.

VILLANUEVA, Fernando Díaz. Isabel La Católica. – Madrid: Edimat Libros, 2007.

7 comentários sobre “Irmãs e rainhas: as filhas de Isabel I de Castela – Parte II: Joana de Trastâmara, a rainha louca?

  1. Muito bom este breve resumo sobre Joana I de Castela. Ela e sua irmã Catarina de Aragão são umas das monarcas que mais admiro. Gostaria muito que não a tivessem como louca. Parece-me mais uma mulher apaixonada que foi injustamente traída por quem ela mais amou. Talvez os momentos de insanidade se instalaram pela trama maléfica dos outros gananciosos. Vocês recomendam a biografia romanceada sobre Joana I de Castela escrita por Linda Carlino?

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