Por: Renato Drummond Tapioca Neto
No dia 29 de novembro de 1826, o “Diário Fluminense” noticiava a todos os habitantes da corte do Rio de Janeiro acerca do grave estado de saúde da imperatriz dona Leopoldina. Em consequência, avisava também sobre o cancelamento de suas aparições públicas na cerimônia do beija-mão, na celebração do “quarto aniversário de Coroação e Sagração de Sua Majestade, o Imperador”, bem como no aniversário de um ano do herdeiro do trono, Pedro II. Leopoldina apresentava um quadro de febre, com “evacuações biliosas, abundantes e numerosas” e uma “tosse gutural”, acompanhada de “sono pouco e não suficiente”. Nos dias seguintes, a constituição física da soberana foi piorando de forma gradativa, principalmente após ela ter expelido um feto de dois a três meses do sexo masculino, em 2 de dezembro. Nas igrejas, praças e ruas da capital, a população estava em polvorosa, rogando a Deus pela conservação da saúde da monarca. Leopoldina era acometida regularmente por delírios, que cessavam momentaneamente apenas quando sua atenção era desviada para algum tema especifico. Preocupava-se principalmente com questões espirituais e com os filhos, que constantemente eram colocados diante de sua presença para acalmá-la. No dia 4, encontrou forças suficientes para se confessar e receber o Santo Sacramento.

Arquiduquesa Leopoldina, por Josef Kreutzinger.
Naquele mesmo dia, a imperatriz reservou uma palavra gentil para cada um dos criados do Paço, pedindo-lhes perdão por quaisquer ofensas que pudesse ter cometido. Não obstante, a atenção que Leopoldina demonstrava para com os serviçais evidencia preocupação da enferma com a passagem de sua alma para o pós-vida. Na tradição católica-romana, na qual ela fora criada, gestos de caridade, humildade e atos de contrição eram atitudes que supostamente recomendavam o moribundo aos olhos de Deus. De acordo com o “Diário Fluminense”, atendiam-na “o Excelentíssimo Mordomo-Mor, a Excelentíssima Camareira-Mor, o Excelentíssimo Bispo Coadjutor do Capelão-Mor, o Barão de Marechal (sic), os Titulares e as pessoas mais distintas e qualificadas”, com exceção da marquesa de Santos, cuja entrada no quarto de Leopoldina fora barrada. Assim, os últimos dias de vida da soberana, quando a doença tomava conta de seu corpo, oferecem subsídios importantes não apenas para se estudar os ritos preparatórios que garantiam a passagem da alma do enfermo para o além, como também exemplificam o costume seguido pelas rainhas no momento de sua morte. Um elemento importante nessa jornada era a escrita de um testamento, ou, na ausência deste, uma carta endereçada para algum parente, onde se deixavam explicitas suas últimas vontades.
No 10° boletim médico, emitido pelas nove horas da manhã do dia 8 de dezembro, estava escrito que “Sua Majestade a Imperatriz passou mal a noite. Logo que acabou a curta remissão do crescimento da tarde de ontem, começou outra pelas nove horas e dez minutos, que durou com pouca remissão até as quatro horas e um quarto da madrugada de hoje”, quando sua saúde então voltou a piorar. Teria sido nesse ínterim, em que a enfermidade apresentou “pouca remissão” até às quatro da manhã, que a esposa de D. Pedro I supostamente ditou para a marquesa de Aguiar aquela que seria sua última carta, endereçada à irmã, Maria Luísa, duquesa de Parma. O documento original, contudo, até hoje não foi localizado em qualquer arquivo brasileiro ou estrangeiro. Uma transcrição dele se encontra hoje no Arquivo Histórico do Museu Imperial e começa assim:
Minha Adorada Mana!
Reduzida ao mais deplorável estado de saúde, e chegada ao último ponto de minha vida no meio dos maiores sofrimentos, terei também a desgraça de não poder eu mesma explicar-vos todos aqueles sentimentos que há tanto tempo existiam impressos na minha alma. Minha Mana! Não vos tornarei a ver! Não poderei outra vez repetir que Vos amava, que Vos adorava [grifo meu]. Pois, já que não posso ter esta tão inocente satisfação igual a outras muitas que permitidas me não são, ouve o grito d’uma vítima que vos reclama – não vingança – mas piedade e socorro do fraternal afeto para inocentes filhos que órfãos vão ficar, em poder de si mesmos ou de pessoas que foram autores das minhas desgraças, reduzindo-me ao estado em que me acho de ser obrigada a servir-me de interpretes para fazer chegar até vós os últimos rogos da minha aflita alma. A Marquesa de Aguiar de quem vós bem conheceis o zelo e o amor verdadeiro que por mim tem como repetidas vezes vos escrevi. Essa única amiga que tenho é quem vos escreve em meu lugar (apud REZZUTTI, 2017, p. 329).
Alguns pontos da linguagem utilizada no texto, porém, merecem consideração. Paulo Rezzutti (2017), autor da mais recente biografia sobre a primeira imperatriz consorte do Brasil, chama a atenção do leitor para o fato de que o boletim referente ao dia 8 de dezembro não faz qualquer menção a uma carta ditada pela soberana, o que deixa dúvidas sobre o momento exato em que ela teria sido escrita (se é que o foi em algum momento). Outro ponto chave é o tratamento que a missivista emprega à destinatária da carta, usando a segunda pessoa do plural “vós”, em vez do “tu” informal e mais adequado em uma carta trocada entre irmãs. Apenas quando Maria Luísa se tornou Imperatriz do Franceses em 1810, por exemplo, Leopoldina empregou o termo formal “Sua Majestade, a Imperatriz da França”, mas nas outras era sempre o tu ou tua. Além disso, em nenhum outro documento ela chama Luísa de “Minha Adorada Mana”, mas sempre “Queridíssima Luísa” (maio de 1810), “Amada Luísa” (12 de novembro de 1812), “Amada, caríssima Luísa” (março de 1816), ou “Boa Luísa” (26 de abril de 1818). Para tentar entender esse questão, recorri a outros documentos escritos por soberanas consortes nas mesmas circunstâncias em que Leopoldina teria ditado a sua, à beira da morte, tais como Catarina de Aragão (1536), Mary Stuart (1587) e Maria Antonieta (1793). A análise comparativa dessas cartas, por sua vez, pode oferecer subsídios interessantes sobre a tipologia do documento levantado em questão.
Na ausência de um Testamento formal, cartas contendo as últimas vontades e pensamentos do enfermo eram de suma importância, uma vez que elas eram consideradas como uma espécie de “salvo-conduto” para o céu. Talvez tenha sido por esse motivo que as rainhas mencionadas no parágrafo anterior tenham solicitado papel e tinta para ditar suas últimas disposições, geralmente endereçadas a algum parente. Tais documentos, por sua vez, representavam um dos últimos atos que ligavam o/a doente à sua família e aos bens materiais, para em seguida pudessem se preparar para outra dimensão escatológica. Em primeiro lugar, chama a atenção a forma de tratamento concedido pelas rainhas aos destinatários de suas cartas. Catarina de Aragão começa a sua com “My most dear lord, king and husband” (Meu queridíssimo senhor, rei e marido); Mary Stuart inicia a sua missiva para o cunhado, o rei Henrique III da França, com “Monssieur mon beau frere” (Meu Senhor e bom cunhad); quanto a Maria Antonieta, ela escreve à cunhada, Madame Isabel, iniciando com “C’est à vous, ma soeur, que j’écris pour la dernière fois” (É a vós, minha irmã, que escrevo pela última vez). Como podemos observar, as três soberanas enfatizaram a princípio sua relação de parentesco com o destinatário e não fazem uso do nome próprio do/a mesmo/a

D. Pedro I do Brasil, por Benedito Calixto. .
Uma carta como a que Leopoldina supostamente escreveu, onde estavam expressas suas últimas vontades, não tinha assim um caráter exclusivamente privado, visto que suas disposições deveriam ser executadas pelo destinatário, o que implicava na exibição da mesma a outras pessoas qualificadas para tanto. Uma outra possibilidade, conforme ressalta Rezzutti (2017, p. 332), é que o documento original tenha sido escrito em francês e a cópia preservada nos arquivos do Museu Imperial se trate na verdade de uma tradução. Nesse caso, se dona Leopoldina tivesse ditado algo como “La marquise d’Aguiar dont vous connaissez bien le zèle el l’amour véritable pour moi comme je vous ai écrit encore et encore” (A Marquesa de Aguiar de quem vós bem conhecei o zelo e o amor verdadeiro que por mim tem como repetidas vezes vos escrevi), o “vous” poderia ter sido traduzido em sua forma literal como “vós”, e não “tu”. O mesmo acontece nas transcrições feitas para o português e o inglês da última carta de Maria Antonieta, quando o “C’est à vous, ma soeur” é traduzido tanto como “É a vós, minha irmã”, quanto “É a ti, minha irmã”. Assim sendo, Leopoldina poderia ter iniciado a sua missiva com “Ma chère soeur”, que foi traduzida para a sua forma correspondente no português-luso do início do século XIX: “Minha Adorada Mana”.
Por outro lado, como a carta original (se é que ela existe) ainda não foi descoberta, o que podemos fazer são apenas conjecturas com base em análises comparadas com outros documentos. Em se tratando de Dona Leopoldina, cabe-nos questionar: como uma missivista que enviava regularmente notícias para a família (existem mais de 800 cartas dela em arquivos), que reuniu forças suficientes para se confessar no dia 4 de dezembro (e logo depois se despedindo de sua criadagem), não teria também escrito uma carta para a irmã, dando-lhe o conhecimento de seu estado de saúde? Além disso, a utilização da marquesa de Aguiar como intérprete também é outro ponto que gera controvérsia. Apesar de não ser mencionada em nenhuma das outras cartas conhecidas de Leopoldina, Maria Francisca de Portugal e Castro, a marquesa de Aguiar, era, conforme esclarece Carlos H. Oberacker Jr. (1973, p. 434), uma das mulheres mais cultas do Brasil e exercia a função de camareira-mor, o que dava a ela jurisdição sobre os oficiais da câmara da imperatriz. Durante a noite, ela geralmente precedia o mordomo-mor nas suas funções para com a soberana, o que nos dá uma pista sobre o horário em que a imperatriz teria lhe ditado o documento.
Não obstante, em outras passagens da carta, Leopoldina reafirma seu amor e adoração por Maria Luísa (“Não poderei outra vez repetir que Vos amava, que Vos adorava”), como se pode observar em muitas outras missivas dirigidas à duquesa, assim como sua preocupação constante com os filhos. Esse elemento que também aparece nas cartas de Maria Antonieta, Catarina de Aragão e Mary Stuart, “revestido de um significado e sentido específicos, para além do alívio da consciência, da remissão dos pecados ou do investimento simbólico religioso na salvação pessoal”, conforme esclarece Maria Lourenço (2012, p. 156). Em seguida, a imperatriz fazia as seguintes acusações:
Há quase quatro anos, minha adorada mana, como vos tenho escrito que por amor de um monstro sedutor me vejo reduzida ao estado da maior escravidão e totalmente esquecida do meu adorado Pedro. Ultimamente, acabou de dar-me a última prova de seu total esquecimento a meu respeito maltratando-me na presença daquela mesma que é a causa das minhas desgraças. Muito e muito tinha a dizer-vos mas falta-me as forças para me lembrar de tão horroroso atentado que será sem dúvida a causa da minha morte. Cadolino que por vós me foi recomendado, e que me tem dado as provas da maior subordinação e fidelidade, é que fica encarregado de vos entregar a presente e declarar-vos o que por muitos motivos não posso confiar a este papel, bem tendo ele todas as informações que são precisas sobre este artigo, nada mais tenho a acrescentar confiada inteiramente na sua probidade, honra e fidelidade (apud REZZUTTI, 2017, p. 329).
Nesse parágrafo, a imperatriz parece fazer referência a uma suposta altercação que ela teve com o marido no dia 20 de novembro de 1826, véspera da viagem marcada do imperador para o Rio Grande do Sul. Leopoldina se recusou a participar da cerimônia do beija-mão com Pedro, na companhia de Domitila de Castro, “o monstro sedutor” a que ela se refere na carta. O soberano teria então levado a esposa, já com sinais de doença, contra a sua vontade até o salão. Todavia, muitos interpretaram essa passagem como um testemunho de agressão física, quando ela certamente faz referência àquela situação humilhante transcorrida na presença da marquesa de Santos. Não existe qualquer testemunho contemporâneo de que Pedro teria batido na esposa, mas, nos últimos meses, desentendimentos e discussões entre os dois ficaram mais frequentes, o que acendeu a centelha da dúvida para aqueles que acreditam na história de que o monarca havia dado um chute no ventre da imperatriz, que estava grávida na ocasião. Essas histórias de violência são apócrifas e não merecem crédito. O mais plausível é que Leopoldina estivesse se referindo a um desfeita de ordem moral, como aliás ela reitera em inúmeras outras cartas, nas quais chama Domitila de “bruxa” e a compara a mulheres como Pompadour e Maintenon “e ainda pior, visto que não têm educação alguma” (8/10/1826).

Domitila de Castro, marquesa de Santos.
Todavia, em nenhuma missiva conhecida da soberana para Maria Luísa ela faz referência à Domitila de Castro, o que não quer dizer que a duquesa não soubesse do caso extraconjugal de seu cunhado, ou que a própria Leopoldina não tenha dado um jeito de lhe informar sobre o que realmente se passava na corte. Em 2 de janeiro de 1819, ela dizia que via “tantas atitudes contraditórias que não consigo dormir direito, e não sei se tenho um amigo em meu esposo e se sou realmente amada”. A mesma queixa aparece numa carta de 24 maio de 1821: “Começo a crer que se é muito mais feliz quando solteiro, pois agora só tenho preocupação e dissabores, que engulo em segredo, pois reclamar é ainda pior; infelizmente vejo que não sou amada, meu esposo e meu dever me exigem que eu suporte até o último instante”. Já em 10 de setembro de 1824, quando o caso de D. Pedro e Domitila já era conhecido, a imperatriz escreveu para a irmã que não podia confiar no seu esposo “porque, para meu grande sofrimento, não me inspira mais respeito”. No dia 30 do mesmo mês, ela também disse que tinha “visto acontecerem tantas coisas nunca esperadas pelo pensamento humano”. Essas reticências nas cartas de Leopoldina eram justificadas pelo fato de que ela, sempre que podia, servia-se de um portador de confiança para transmitir maiores detalhes de sua vida, uma vez que temia que sua correspondência fosse interceptada por terceiros.
Um desses portadores seria Cadolino, a quem ela faz referência na sua última carta. Em 8 de outubro de 1826, ela escreveu à irmã dizendo que “o Cadolino me disse que há um portador confiável para a Itália; aproveito-o com muita alegria para te assegurar meu eterno e profundo amor e amizade…”. Além disso, Oberacker (1973, p. 430) cita uma carta de Maria Luísa para Leopoldina, datada de 1 janeiro de 1826, na qual a duquesa diz que Cadolino “era o filho de minha boa e velha camareira-mor que segue por motivos de negócios comerciais ao Rio de Janeiro”. Luísa assim solicitava à imperatriz que desse proteção ao enviado durante sua estadia no Brasil. O rapaz então se tornou um intermediário das correspondências trocadas pelas irmãs. É possível também que ele se tratasse do mesmo “jovem Cremonense”, que fora recomendado a Leopoldina por sua irmã em 18 de junho de 1823 e que se encarregava de enviar documentos e objetos de Parma para o Brasil. Conforme ressalta a missivista, Cadolino ficaria então incubido de levar mais esta carta para a Itália, bem como de informar a Maria Luísa sobre “o que por muitos motivos não posso confiar a este papel”. Seria essa uma referência ao “horroroso atentado que será sem dúvida a causa da minha morte”?
Com efeito, Leopoldina cresceu numa corte embalada pelas palavras das obras de Goethe, tais como “Os sofrimentos do jovem Werther” (1774), onde a ideia da morte e da perda eram tingidas pelos pincéis da escola romântica. Isso se pode observar nas muitas cartas que a imperatriz escreveu a amigos e parentes, onde ela costuma abusar de termos como “amada”, “queridíssima”, “adorada” ou “eu te abraço com todo o meu coração”, esboçadas ao lado de pensamentos melancólicos sobre a solidão e a tristeza. No último parágrafo da carta, ela diz o seguinte:
Faltaria ao meu dever se além de ter declarado ao Mareschal e ao Cadolino que tenho dívidas contratadas para sustentar os pobres, que de mim reclamam algum socorro e para as minhas despesas particulares não vos dissesse que o Flach de quem vos tenho muitas vezes escrito é digno de toda a consideração vossa e de Meu Augusto Pae a quem vos peço remeter a inclusa. Este virtuoso amigo, além de ter se sacrificado e comprometido a si mesmo e seus negócios para me servir não desprezou meio algum para me procurar socorros. Vos peço por quanto tendes de sagrado de lhe prestardes todo o auxílio, de modo que ele possa satisfazer aquelas dívidas que por mim tem contraído. Recomendo este exemplo da mais virtuosa amizade. Cadolino vos dirá qual foi o procedimento do Mareschal comigo. A Marquesa de Aguiar fica encarregada de vos dar os mais miúdos detalhes sobre quanto diz respeito às minhas queridas filhas. Ah, minhas filhas! que será de vós depois minha morte! A ela é que eu entregarei a sua educação até que o meu Pedro, o meu querido Pedro [grifo meu], não disponha o contrário. Adeus minha adorada mana. Permita o Ente Supremo que eu possa escrever-vos ainda outra vez pois que será o final do meu restabelecimento (apud REZZUTTI, 2018, p. 229-30).
A carta foi datada do dia 8 de dezembro de 1826, às 4 horas da manhã e a cópia que serve de fonte para essa análise foi autenticada no dia 5 de agosto de 1834 (portanto, quase 8 anos depois da morte da imperatriz). A inscrição em francês no final do texto: “Conform a l’original dejá expedú la 12 Decembre de 1826”, pode ser uma forte indicação do idioma original em que o documento foi escrito. Reconheceram sua autenticidade Cesar Cadolino e J.M. Flach, que são mencionados no texto, como também L. Buvelot e Carlos Hindrichs. Apesar de o diplomata austríaco, o barão de Mareschal, não reportar para Viena a existência de um Testamento e tampouco os boletins e notícias publicadas em jornal fazerem referência a qualquer carta, é de se estranhar que uma mulher profundamente católica como Leopoldina não tenha deixado qualquer documento acerca de suas disposições finais, com o reconhecimento público de suas dívidas. Segundo João José Reis, acreditava-se que “o morto não descansaria enquanto não visse paga suas dívidas comerciais com os vivos” (2011, p. 102). Havia, inclusive, manuais, como o do padre Queirós, que recomendavam ao moribundo devolver qualquer coisa que não fosse sua, ou do contrário este não entraria no reino dos céus. Uma análise de cartas testamentárias emitidas no Brasil no início século XIX demonstram a preocupação do defunto com o pagamento dos seus credores.

A Imperatriz D. Leopoldina e seus filhos, por Domenico Failutti.
Nesse caso, o que causa estranhamento no texto do documento, conforme ressalta Rezzutti (2017, p. 333), é a referência apenas a dois credores de Leopoldina e não aos demais. Entretanto, é preciso levar em consideração também o estado de saúde da imperatriz quando supostamente ditou essa carta, designando para terceiros a tarefa de dar maiores detalhes sobre suas disposições. A mesma preocupação pode ser verificada no que eu chamo de “cartas de disposições finais”, escritas tanto por Mary Stuart quanto por Catarina de Aragão. Antes de morrer, em 7 de janeiro de 1536, Catarina pediu a Henrique VIII que “respeitai as minhas donzelas, e lhes deis maridos, o que não é muito, porque não passam de três; e a todos os outros meus servidores dê, além do que lhes é devido, um ano de salário, pois senão se achariam em necessidade” (apud LICENCE, 2016, p. 495). Já Mary Stuart pedia a Henrique III, “meu bom cunhado”, para que “pague aos meus infelizes servos os salários que lhes são devidos – este é um fardo da minha consciência que só vós poderá aliviar: além disso, que orações sejam oferecidas a Deus por uma rainha que carregou o título de a Mais Cristã, e que morre como uma católica, despojada de todos os seus bens” (apud FRASER, 2001, p. 549).
Não obstante, há nas últimas cartas de Catarina, Mary, Antonieta e Leopoldina (soberanas separadas pelo tempo e pelo espaço), uma grande preocupação com as crianças que ficavam órfãs de mãe. Catarina de Aragão recomendava ao rei sua filha, Maria, “suplicando-vos que sejais para ela um bom pai, como eu até aqui tenho desejado”, enquanto Mary Stuart pedia a Henrique III que “quanto ao meu filho, eu recomendo-o a vós na medida em que ele merece, pois não posso responder por ele”. Já Maria Antonieta, tia-avó de Leopoldina e, assim como ela, uma arquiduquesa austríaca, disse à sua “boa irmã”, madame Isabel, que sentia “uma dor profunda, de abandonar meus pobres filhos. Você sabe que eu não existia senão para eles e para você, minha boa e terna irmã. A você que, por amizade, tem sacrificado tudo para ficar conosco, em que situação a deixo!” (apud ZWEIG, 1981, p, 428). Leopoldina, por sua vez, escreveu a Maria Luísa: “A Marquesa de Aguiar fica encarregada de vos dar os mais miúdos detalhes sobre quanto diz respeito às minhas queridas filhas. Ah, minhas filhas! que será de vós depois minha morte!”. Assim sendo, podemos encontrar alguns pontos em comum que permeiam as cartas destas soberanas:
1) Eles eram endereçadas a parentes próximos, fossem irmãos, maridos ou cunhados.
2) As missivistas não se dirigiam ao destinatário pelo nome próprio e sim pela relação de parentesco.
3) A preocupação com os filhos que ficavam órfãos.
4) O reconhecimento público de dívidas e a recomendação para que fossem pagas.
5) O uso de uma linguagem mais formal.
6) A confissão das aflições que preocuparam o/a doente nos últimos tempos.
Esse último tópico, com efeito, merece uma atenção especial. Na sua última carta a Henrique III, Mary Stuart diz: “tendo a vontade de Deus, pelos meus pecados eu penso, me jogado para o poder da rainha minha prima, em cujas mãos eu sofri muito por quase vinte anos, finalmente fui condenada à morte por ela e seus ministros” (apud FRASER, 2001, p. 549). Já Maria Antonieta afirma: “Meu filho não deverá nunca esquecer as últimas palavras de seu pai, que lhe repito expressamente: Não procure nunca vingar a nossa morte.” e que “não tendo nenhuma consolação espiritual a esperar, ignorando se aqui ainda existem padres dessa religião, mas sabendo que, mesmo que existam, o lugar em que me acho exporia a grandes perigos àquele que aqui entrasse” (apud ZWEIG, 1981, p, 429). Não seria de estranhar, portanto, que Leopoldina confessasse à irmã que se achava “reduzida ao estado da maior escravidão e totalmente esquecida do meu adorado Pedro. Ultimamente, acabou de dar-me a última prova de seu total esquecimento a meu respeito maltratando-me na presença daquela mesma que é a causa das minhas desgraças”. Apesar dessas palavras, no final ela reafirmava a sua devoção ao “meu Pedro, o meu querido Pedro”, e abraçava as seguintes esperanças: “Permita o Ente Supremo que eu possa escrever-vos ainda outra vez pois que será o final do meu restabelecimento”.

Leopoldina, pintada por Jean-Baptiste Isabey.
A última frase da carta, por sua vez, indica que a missivista estava lúcida no momento de sua redação. Sou da opinião de que o documento tenha sido escrito na verdade no dia 4 de dezembro, quando ela tomou o Santo Sacramento e recebeu os criados do Paço, e não no dia 8. Afinal, confusões como essa, envolvendo datas de documentos escritos por ou para Leopoldina, não são incomuns. Paulo Rezzutti (2017, p. 333) sugere que a carta poderia ter sido forjada pelos credores da imperatriz em 1834 para minar a reputação de D. Pedro, uma vez que havia entre os deputados do país o medo de que ele, comandando um exército mercenário, invadisse o Brasil. Essa hipótese me parece um pouco débil, em comparação com acontecimentos politicamente mais relevantes, como a Confederação do Equador (1824), a perda da Cisplatina (1828) e as recentes disputas entre portugueses e brasileiros, que culminaram com a abdicação do imperador em 1831. Nesse contexto, poderia a carta acusatória de uma consorte falecida há 8 anos, por mais popular que Leopoldina fosse entre o povo, desmoralizar ainda mais a imagem de Pedro? Basta levar em consideração que ele ainda reinou por mais de quatro anos após a morte da esposa, em 11 de dezembro de 1826.
Não obstante, o texto do documento combina com o estado de espirito demonstrado pela enferma nos seus últimos dias, conforme reportou Maria Graham (que não estava presente no momento da morte de Leopoldina, diga-se de passagem), segundo o relato que lhe foi passado pelo barão:
Naqueles momentos, no delírio da febre, rebentaram as expressões que provaram que sua calma e brandura anteriores não tinham origem na insensibilidade e verificou-se que seus sentimentos em relação a Madame de Santos, a nomeação desta para a Primeira Dama da corte e sua escolha para companhia de viagem à Bahia, haviam sido as circunstâncias que haviam ferido profunda e fatalmente a Imperatriz (GRAHAM, 2010, p. 232).
Destarte, o cronista Mello Moraes, citado por Oberacker (1973, p. 435), disse que a imperatriz, em seus “delírios de febre ardente”, clamava “contra a marquesa de Santos, dizendo que morria enfeitiçada” e pedia para que se livrassem dela e da pequena duquesa de Goiás. É possível que a maior parte desses depoimentos contivessem certa dose de exagero por parte dos cronistas, no intuito de responsabilizar diretamente Domitila pela morte de Leopoldina. A última carta dela foi vista por muitos biógrafos, a exemplo do próprio Oberacker, como a comprovação disso. No entanto, em outros textos a soberana dava conhecimento ao seu interlocutor de suas angústias com relação ao casamento e à vida que levava no Rio de Janeiro, bem como sua opinião sobre a marquesa de Santos.
Em última análise, considero precipitado dizer que a carta de Leopoldina se trate de um documento forjado, apesar dos indícios que apontam para essa direção: ela só chegou ao conhecimento público cem anos depois de sua morte, publicada no livro “Textos e Pretextos” de Alberto Rangel, que teve acesso a ela nos arquivos da Casa Imperial Brasileira, quando estes eram mantidos no Castelo d’Eu, na França. Na outra mão, o estudo comparativo do documento com outros textos escritos de próprio punho pela soberana, assim como com as últimas cartas de Catarina de Aragão, Mary Stuart e Maria Antonieta, demonstram similaridades que não podem ser ignoradas. As quatro eram mulheres católicas devotadas e certamente acreditavam que um documento como esse garantira a passagem segura de sua alma para o pós-vida. É possível também, e aqui me arrisco novamente no campo das conjecturas, que o texto original possa ter sido adulterado na transcrição para o português, por pessoas que tinham conhecimento do teor das outras cartas escritas pela imperatriz para sua irmã, para fins de natureza particular. Mas, o fato de os parentes de Leopoldina na Europa terem feito de tudo para arruinar a reputação de D. Pedro, durante suas negociações para contratar um segundo casamento, pode ser tomado como um indício de que a carta realmente chegou às mãos de Maria Luísa e desta passou para as de seu pai, o imperador Francisco I da Áustria. Qualquer que seja a verdade, a menos que a missiva original seja encontrada, permaneceremos eternamente fadados ao perigoso campo das especulações.
Referências Bibliográficas:
FRANÇA, Mario Ferreira. A doença que vitimou Dona Leopoldina. In: D. Pedro I e Dona Leopoldina perante a história: vultos e fatos da Independência. – São Paulo: Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, 1972, p. 279-314.
FRASER, Antonia. Mary queen of Scots. New York: Delta, 2001.
GRAHAM, Maria. Escorço biográfico de Dom Pedro I. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2010.
KANN, Bettina; LIMA, Patrícia Souza. D. Leopoldina: cartas de uma imperatriz. – São Paulo: Estação Liberdade, 2006.
LICENCE, Amy. Catherine of Aragon: an intimate life of Henry VIII’s true wife. Gloucestershire: Amberley Publishing, 2016.
LOURENÇO, Maria Paula Marçal. Rainhas no Portugal Moderno: casa, corte e património. Lisboa, Portugal: Edições Colibri, 2012.
OBERACKER Jr., Carlos H. A imperatriz Leopoldina, sua vida e época: ensaio de uma biografia. – Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1973.
REIS, João José. O cotidiano da morte no Brasil oitocentista. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de (Org.). História da vida privada no Brasil: Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, pp. 95-141.
REZZUTTI, Paulo. D. Leopoldina: a história não contada: a mulher que arquitetou a independência do Brasil. Rio de Janeiro: LeYa, 2017.
ZWEIG, Stefan. Maria Antonieta. Tradução de Medeiros e Albuquerque. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.