A imperatriz da independência – resenha de “D. Leopoldina: a história não contada”, de Paulo Rezzutti

REZZUTTI, Paulo. D. Leopoldina: a história não contada: a mulher que arquitetou a independência do Brasil. Rio de Janeiro: LeYa, 2017.

Em 5 de novembro de 1817, uma arquiduquesa austríaca chegava ao seu destino: Rio de Janeiro. Ali, ela esperava se reunir ao príncipe seu marido e à nova família, bem como ser uma boa esposa e cumprir com um dos deveres primordiais de uma princesa consorte: gerar herdeiros para o trono. O que aquela jovem de 20 anos talvez não imaginasse, contudo, era que seu destino também estaria intimamente ligado ao futuro político daquele reino tropical. 200 anos se passaram, e a figura desta princesa permanece um pouco distante da maioria dos descentes de um povo que, durante os nove anos em que ela viveu nestas terras, não cansou de lhe prestar sincera homenagem. Daí a necessidade constante de se lhe dedicar monumentos, biografias, eventos, exposições, filmes e novelas. A preocupação, nesse caso, é fazer com que os brasileiros se lembrem daquela de quem eles não devem esquecer. Leopoldina de Habsburgo-Lorena é uma das personalidades mais ilustres do panteão de heróis e heroínas nacionais, embora pouco citada pela maioria dos pesquisadores, que a consideram uma mulher irrelevante, graças à imagem da princesa triste, gorda e feia, maldosamente sistematizada por alguns. Muito se tem feito na tentativa de desconstruir esse estereótipo e desvelar a face política de uma soberana inteligente, conforme podemos observar no seu novo estudo biográfico, desenvolvido pelo escritor Paulo Rezzutti.

Paulo Rezzutti é arquiteto e pesquisador em História do Brasil, membro titular do IHGSP.

Já tendo se destacado na publicação de três livros anteriores sobre o primeiro reinado, “Titília e o Demonão: cartas inéditas de D. Pedro à marquesa de Santos” (2011), “Domitila: a verdadeira história da marquesa de Santos” (2013) e “D. Pedro: a história não contada” (2015), que lhe rendeu o prêmio Jabuti na categoria Biografia, Rezzutti agora fecha com chave de ouro um ciclo iniciado em 2011, dedicando à primeira imperatriz consorte do Brasil uma obra à altura da biografada. Com uma escrita leve, em tom quase romanesco e desprovida dos academicismos que tornam a leitura pesada, “D. Leopoldina: a história não contada” (2017) surpreende o leitor em vários momentos. O autor convida-nos a uma viagem, que se inicia em Viena, na Áustria, no inverno de 22 de janeiro de 1797, e termina tragicamente no verão carioca, em 11 de dezembro de 1826. Nesse trajeto, observamos a construção do caráter de uma princesa impulsiva, preparada desde cedo para o casamento dinástico, de modo a desempenhar um papel de destaque ao lado do futuro marido, e como essa mesma princesa colocou em prática tais ensinamentos, sacrificando-se em prol da felicidade de um povo que desde o princípio lhe deu grandes demonstrações de respeito, carinho e afeto, associando-a ao papel de mãe do nascente império do Brasil.

A obra é dividida em 3 partes, 12 capítulos, mais posfácio assinado pelas pesquisadoras Claudia Witte e Viviane Tessitore, distribuídos ao longo de 431 páginas e um riquíssimo caderno ilustrado. Paulo Rezzutti realizou uma pesquisa de fôlego, em arquivos tanto brasileiros quanto europeus, onde conseguiu identificar fontes até então praticamente desconhecidas pelos demais biógrafos da imperatriz, como as cartas e o diário da condessa Maria Ana von Künburg, que acompanhou D. Leopoldina em sua viagem de Viena ao Rio de Janeiro, e as aquarelas que Franz Joseph Frühbeck, auxiliar de bibliotecário, fez da travessia, legando-nos assim uma visão mais intimista do dia-a-dia da nau D. João VI. Não obstante, o livro traz consigo relatos do mercenário alemão Julius Mansfeldt, publicados pela primeira vez em português, que oferecem uma contribuição a mais para o estudo do perfil da imperatriz. Esses detalhes são apresentados ao leitor numa curta introdução, que pouco nos diz sobre os motivos que teriam levado Rezzutti a revisitar a biografia de Leopoldina, para além da desconstrução de certos estereótipos, já desenvolvida por biógrafos anteriores. A elucidação dessa questão, contudo, é-nos dada ao longo da leitura, por meio de uma interpretação inovadora que o autor faz acerca dos fatos que, em muitos aspectos, difere da versão convencional, o que explica o subtítulo da obra: “a história não contada”.

A primeira parte do livro é dedicada à infância de Leopoldina e à história de sua família, os Habsburgo, que desde o século XIII produziram uma linha quase ininterrupta de imperadores do Sacro-Império Romano-Germânico, dissolvido em 6 de agosto de 1806, sob o governo de Francisco II, que depois disso se tornou Francisco I da Áustria. Aqui o autor explora como era a educação do príncipes da casa d’Áustria no século XIX, em especial a de sua biografada, e a política matrimonial estabelecida pela família imperial para selar alianças políticas com reinos estrangeiros, que conheceu um dos seus momentos de ápice sob o governo de Maria Teresa, a Grande, bisavó de Leopoldina. Em 1770, a mais famosa das filhas dessa imperatriz se casou com o delfim da França, Luís Augusto, mais tarde Luís XVI. Seguindo um costume de biógrafos anteriores, como Carlos H. Oberacker Jr. e Marsilio Cassotti, Rezzutti não resiste em traçar, em alguns momentos do livro, um paralelo entre Leopoldina e sua tia-avó, Maria Antonieta, cuja morte sanguinária em 1793 assombraria muitas princesas austríacas de gerações futuras. Porém, senti nesse momento a ausência da consulta de pelo menos uma biografia da rainha da França, como a do Stefan Zweig ou da Antonia Fraser, o que ajudaria a preencher certas lacunas do texto, principalmente no que se refere à situação das arquiduquesas austríacas dentro dos chamados casamentos dinásticos.

Leopoldina aos 18 anos, por artista desconhecido.

Uma princesa que se casava num reino estrangeiro poderia ser considerada uma espécie de refém, mas também uma embaixadora, servindo aos interesses de suas pátrias de origem e de adoção. Isabel de Parma, por exemplo, assim definiria o papel de uma princesa consorte: “o que deveria esperar a filha de um grande príncipe? (…) Nascida escrava dos preconceitos dos outros, vê-se sujeita ao peso das honras, essa etiqueta interminável presa à grandeza (…) um sacrifício para o suposto bem público”. Com efeito, essa frase faz eco a um trecho da correspondência de Leopoldina a sua irmã, Maria Luísa, na qual diz que “nós princesa somos como dados que se jogam, e cuja sorte ou azar depende do resultado”. Nessas circunstâncias, não é de se surpreender que muitas mulheres de casas reais nutrissem fortes sentimentos de sua terra natal, da qual tiveram de ser arrancadas em prol do “suposto bem público”. Nesse quadro, Leopoldina não diferia de outras princesas europeias, que passaram por muitas situações desagradáveis no casamento e na sua pátria de adoção. Muito embora um dos deveres primordiais dessas consortes era prover a coroa de herdeiros, é preciso desconsiderar a expressão grosseira de Napoleão, que ao contrair matrimônio com a irmã de Leopoldina, em 1810, disse que “estou me casando com um útero”. Uma arquiduquesa da Áustria era muito mais que isso, como Rezzutti demonstra em seu livro.

Entretanto, discordo da afirmação do autor de que ter uma arquiduquesa austríaca como esposa “era como possuir um artigo de Luxo” (2017, p. 23), pois passa uma ideia de objetificação e frivolidade que não era próprio do preparo dessas princesas. Aliás, o próprio autor coloca de maneira contraditória na mesma linha que elas eram mulheres “com instrução suficiente para ser uma estadista”. Se eram artigos de Luxo, como poderiam exercer qualquer participação no governo? Acredito que esse tenha sido o ponto falho da primeira parte da obra, o que de forma alguma compromete a sua totalidade. A segunda parte, por sua vez, é dedicada às tratativas de casamento de Leopoldina com o príncipe D. Pedro e à travessia em direção ao Brasil. É sem dúvida um dos momentos mais deleitosos da leitura, pois aqui Rezzutti trabalha concisamente com as fontes iconográficas de Frühbeck, exploradas com mais ênfase no posfácio de Claudia Witte. Aliado à análise iconográfica, os relatos de Ana von Künburg, dando detalhes do temperamento impaciente da princesa durante a travessia, seu primeiro encontro com o príncipe e os primeiros dias no Brasil, oferecem uma imagem mais enérgica da jovem arquiduquesa, bastante diferente da figura de mulher passiva e subordinada, que muitos insistem em ressaltar.

Com efeito, a parte mais interessante da biografia pode ser considerada a terceira, onde Paulo Rezzutti desvela a face política da soberana, que atuou diretamente no movimento de emancipação política do país e conquistou a estima dos brasileiros. A critério de sugestão, penso que o autor poderia ter feito uma análise de Leopoldina dentro de uma tradição de arquiduquesas regentes da casa d’Áustria, que governaram possessões do império Habsburgo ao longo de séculos. Como a própria Viviane Tessitore afirma no seu brilhante posfácio à obra de Rezzutti, por mais que Leopoldina se queixasse do trabalho de governar durante a ausência do marido, sua educação a preparou para situações como essa. Cabe lembrar aqui de sua avó, Maria Carolina, rainha de Nápoles, considerada em seu tempo como “encrenqueira” por tomar decisões em nome de seu marido, Fernando I das Duas-Sicílias, e participar da política.  Dona Leopoldina descende assim dessa tradição de mulheres que exerceram o poder, direta ou indiretamente, passada pelo sangue de sua bisavó, de sua avó e de sua mãe. Porém, é preciso se desfazer da visão romântica da princesa assinando uma fictícia declaração de independência no dia 2 de setembro de 1822, algo que o Rezzutti explica muito bem. Esse documento, se existiu, não sobreviveu à posteridade.

Capa do livro “D. Leopoldina: a história não contada”, publicado em março de 2017 pela LeYa.

Uma outra sugestão, a meu ver, seria incluir pelo menos um capítulo dedicado à biografia intelectual da imperatriz, feita a partir da leitura e análise das listas de livros que ela encomendava na Europa. Maria Pallares Burke fez algo parecido em sua biografia do Gilberto Freyre, “Um Vitoriano nos trópicos”, ao observar de que forma as leituras do sociólogo contribuíram para a escrita da obra que marcou sua carreira, “Casa-Grande e Senzala”. Essas são apenas sugestões, que, acredito, se levadas a cabo, poderiam dar ainda mais brilho a uma obra que desde a sua publicação em março deste ano pode já ser considerada uma das mais completas e bem pesquisadas sobre Dona Leopoldina. Outro ponto favorável do livro é a forma como o autor, baseado em farta documentação, demonstra que a imperatriz não foi indiferente ao caso extraconjugal de D. Pedro com a marquesa de Santos, apesar de seu comportamento público demonstrar o contrário. Em cartas a seus credores, Flach e Schäffer, Leopoldina se refere a Domitila de Castro como “bruxa”, e a compara a outras famosas amantes titulares de reis da França, como Madame de Maintenon e Madame de Pompadour, embora colocasse a marquesa em nível inferior às duas citadas, já que Domitila não teria a mesma educação de Maintenon e Pompadour, consideradas mulheres muito inteligentes.

Rezzutti finaliza sua obra com uma análise da suposta carta final de Leopoldina, escrita poucos dias antes de sua morte, em 11 de dezembro de 1826 e endereçada a sua irmã, Maria Luísa. Como já havia feito em suas obras passadas, o autor levanta com mais ênfase alguns pontos que permanecem confusos na missiva, de forma a sugerir que o texto possa ter sido adulterado ou mesmo forjado pelos credores da imperatriz. Essa é única de uma série de biografias de Leopoldina que de fato questionou a autenticidade de tal documento, acatado quase às cegas por muitos historiadores, interessados em vituperar a imagem de D. Pedro I. A conclusão do livro fica por conta dos textos assinados por Claudia Witte e Viviane Tessitore, especialmente o desta última, que analisa com maestria e conhecimento de causa a figura da imperatriz, fazendo um balanço historiográfico de sua importância para o Brasil. “D. Leopoldina: a história não contada”, como até aqui tenho ressaltado, é uma obra de fôlego, que merece ser lida não só pelos pesquisadores e entusiastas do primeiro reinado, como por todos aqueles interessados numa outra versão da história oficial do país, naquilo que foi silenciado e “não dito”, que explora os bastidores dos grandes eventos que mudaram o rumo do futuro da nossa Nação.

Renato Drummond Tapioca Neto

Licenciado em História – UESC

Mestre em Memória: Linguagem e Sociedade – UESB

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