Dona Carlota Joaquina: rainha de Portugal e mestra na arte da intriga

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

Graças à sua ótima educação, D. Carlota Joaquina possuía uma mente inclinada para a política. Com sua elevação ao posto de futura rainha, ela se consumou numa verdadeira mestra na arte da intriga. Uma vez consagrada princesa consorte, D. Carlota tomou para si a função de líder da corte portuguesa, fundando uma ordem de nobreza batizada como “Ordem das Nobres Damas da Rainha Santa Isabel”, distribuída para as mulheres que estavam ao seu serviço e construindo assim um grupo da alta nobreza que comungava dos seus interesses. Na opinião de Juliana Gesuelli Meirelles , essa foi “uma primeira tentativa, embora bastante ingênua, de influenciar a educação dos costumes e subverter a posição submissa das damas da corte lusitana” (2013, p. 24). Além dessa, outra difícil tarefa empreendida pela princesa foi a de ser intermediária numa possível reconciliação entre as coroas ibéricas. Em carta ao pai, então rei Carlos IV, datada de 1798, ela escreveu o seguinte:

Sinto vivamente as ameaças de V.M. contra seus próprios descendentes, e não posso concordar com que não haja meios de compor tudo de madeira que o mundo não seja testemunha de um proceder da parte de V.M. contrário à natureza. Ah, querido papai, e que glória dará à memória de V.M. ser um pai tão sanguinolento com a destruição de sua Casa, dos bens e da vida de seus próprios filhos? E isso para que seria? Para agradar a um governo coberto de sangue da nossa família  (apud AZEVEDO, 2008, p. 74).

Dom João VI e Dona Carlota, por Manuel Dias de Oliveira (c. 1815).

Dom João VI e Dona Carlota, por Manuel Dias de Oliveira (c. 1815).

Para a mãe, a rainha Maria Luisa, ela enviou outra missiva no mesmo tom da anterior, dando a entender que o príncipe regente estava disposto a uma reconciliação, embora não concordasse com os termos de sujeição à França, propostos pela coroa espanhola: “O que posso assegurar a V.M. da parte de meu marido é que ele quer e deseja concluir a paz, porque sabe quanto ela é importante para ambas as monarquias, mas só não pode concordar com que aqueles franceses queiram sujeita-lo, depois de tudo o que pregaram contra este reino, nesta negociação, em termos de pouco caso pelos quais nunca passou ainda nenhum príncipe (apud AZEVEDO, 2008, p. 75-76).

O apelo, entretanto, não surtiu efeito. Durante os anos de 1801 a 1803, Portugal e Espanha travaram um conflito que em sua natureza era mais diplomático do que bélico, conhecido como a “Guerra das Laranjas”. A política expansionista de Napoleão Bonaparte passou cada vez mais a pressionar a corte de Madri a exigir de Portugal, que dependia do comércio inglês, uma definição político-partidária. Diante disso, em 28 de fevereiro de 1801, o rei Carlos IV declarou guerra ao país vizinho. À filha, o monarca espanhol justificou sua decisão da seguinte forma:

Minha querida filha, recebi tua carta de 22 do corrente, em que me manifestas o grande sentimento que te causa ver as dissensões que alteram a boa harmonia que subsistia entre ambas as Cortes, e os vivos desejos que tens de que se encontre um meio de concluí-las. Não é menor o que eu tive ao ver-me obrigado, pelo bem de meus vassalos, por minha dignidade, e por cumprir com minhas convicções, a declarar guerra a esse reino. Nada me restou por fazer para evita-lo com minha mediação e admoestações ainda que em vão, porque esse Governo dominado pela Inglaterra nunca quis dar ouvido a minhas razões; e já não há outro meio de restabelecer a boa harmonia entre ambas as cortes senão o de que o Príncipe teu Esposo adote as bases do acordo que se propuseram. É-me muito doloroso que as coisas tenham chegado a este ponto, mas não sou só Pai, sou Rei e bom aliado, e me encontro quanto a isto obrigado a olhar pelo bem de meus vassalos e a cumprir meus pactos (apud AZEVEDO, 2008, p. 76-77).

Apenas em 1803 foi que o governo espanhol assinou um acordo com o governo português, suspendendo o estado de guerra. Foi nesse mesmo ano em que o partido francês conseguiu se consolidar em Lisboa, através da nomeação de Antônio de Araújo Azevedo para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, uma das pastas mais importantes do governo. Em 1804, o general Junot foi então nomeado como representante de Napoleão Bonaparte na corte bragantina.

Dona Carlota Joaquina, por artista desconhecido.

Dona Carlota Joaquina, por artista desconhecido.

Essas concessões feitas ao governo francês, tanto por parte do marido quanto por parte da família em Madri, feriram bastante o orgulho Bourbon de Carlota Joaquina. A tensão entre a princesa e o príncipe regente aumentava a cada dia, com a consequente revelação dos casos extraconjugais de D. João. O príncipe teve um romance com Eugênia de Meneses, que resultou no nascimento de uma filha bastarda. Tanto a mãe quanto a filha foram enviadas para longe. Apesar disso, as cartas enviadas pela esposa ao seu marido, datadas dessa época, nos dão um testemunho de um lado mais carinhoso de D. Carlota, em harmonia com o espírito romântico do início do século XIX, e até então pouco explorado pelos historiadores que, influenciados por produções modernas, insistem em pintar um retrato da monarca como uma mulher devassa e maquiavélica. Em muitas das correspondências ao príncipe, ela iniciava com “meus amores da minha alma”, ou “meu amor do meu coração”, e demonstrava preocupação com a saúde dele e dos filhos do casal, como podemos ver numa carta datada de 12 de julho de 1804: “o Pedro levantou-se hoje e tem passado bem, graças a Deus. Maria Francisca às 4 horas é que lhe declinou o crescimento; os médicos mandaram que se purgasse” (apud AZEVEDO, 2008, p. 83). Em treze anos, o casal teve 9 filhos (Maria Teresa em 1793, Francisco Antônio em 1795, Maria Isabel em 1797, Pedro I do Brasil e IV de Portugal em 1798, Maria Francisca em 1800, Isabel Maria em 180, Miguel I em 1802, Maria da Assunção em 1805, e Ana de Jesus em 1806), apesar dos inúmeros conflitos travados entre si, decorrentes das diferenças de gênios e opiniões políticas.

O ano de 1806 foi particularmente problemático para o governo português. D. João foi acometido de uma crise de melancolia e se refugiou em Mafra, sem disposição para resolver as questões políticas do reino. Um versinho satírico começou a circular entre os súditos: “Nós temos um rei/ chamado João/ Faz o que lhe mandam/ Como o que lhe dão/ E vai para Mafra/ Cantar cantochão” (apud MEIRELLES, 2013, p. 24). O longo período de afastamento levou as pessoas a conjecturarem se ele não sofria do mesmo problema mental da rainha Maria I, abrindo assim uma brecha para que a oposição, encabeçada pelo conde de Sabugal e pelo marquês de Ponte Lima, conspirasse para a destituição do príncipe, com o objetivo de passar o governo regencial para as mãos de sua esposa. A data do golpe foi marcada para o aniversário de 31 anos de D. Carlota, em 25 de abril. Como esperavam que D. João não compareceria à festa, então aproveitariam a ocasião para declarar abandono de poder e passar as rédeas do governo para a aniversariante. Porém, para decepção dos conspiradores, o príncipe tomou conhecimento do plano por meio dos lábios de uma das camareiras da princesa, D. Mariana, esposa de um dos partidários de D. João e membro de seu séquito, Francisco Rufino de Souza Lobato . Sendo assim, o príncipe regente compareceu à comemoração, onde beijou a mão da esposa e numa só tacada desarticulou toda a conjura. A partir daí a relação entre os cônjuges, que já moravam em palácios separados, se tornaria quase insuportável.

Retrato equestre de Dona Carlota Joaquina, por Domingos Sequeira.

Retrato equestre de Dona Carlota Joaquina, por Domingos Sequeira.

Com efeito, Carlota Joaquina ainda planejava uma forma de assumir a regência do governo. Em carta ao pai, escrita em 16 de agosto de 1806, ela justificava suas ações ao dizer que “é este o único modo de evitar que corra muito sangue neste reino, porque a Corte quer já sacar a espada em meu favor, e também o povo; porque se vê por fatos imensos que [o príncipe regente] está com a cabeça perdida” (apud AZEVEDO, 2008, p. 88). Como podemos observar, a missivista demonstrava certeza quanto à falta de capacidade do marido de governar, assim como fazia uma ideia exagerada do apoio popular à sua causa. Mais uma vez seus planos foram malogrados, pois Carlos IV não estava disposto a apoiar as ambições da filha e seus aliados foram, um a um, afastados para lugares distantes, como a Índia, Almeida e Algarve, deixando a princesa praticamente sem apoio. As tentativas de D. Carlota de usurpar o poder do marido deixaram em D. João um profundo ressentimento para com a esposa. Pressionado tanto pela França quanto pela Inglaterra, o príncipe se sentia cada vez mais acuado e o destino do império português dançava em sua frente. Em 1807, por sugestão do governo inglês, representado na pessoa do embaixador Lord Strangford, D. João começou a estudar a possibilidade da realização de um plano antigo da coroa portuguesa: a transferência da corte para a sua colônia na América do Sul, o Brasil.

Referências Bibliográficas:

AZEVEDO, Francisca L. Nogueira de. Carlota Joaquina na corte do Brasil.  – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

_. Carlota Joaquina: cartas inéditas. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2008.

MEIRELLES, Juliana Gesuelli. Desunião Ibérica. – Revista de História da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, p. 22-25, setembro de 2013.

PEREIRA, Sara Marques. D. Carlota Joaquina e os espelhos de Clio. – Lisboa: Livros Horizonte, 1999.

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