Por: Renato Drummond Tapioca Neto
Palácio de Aranjuez, 25 de abril de 1775: após 10 anos de casamento, a princesa Maria Luisa de Parma, esposa do príncipe das Astúrias, Carlos, filho do rei Carlos III, dava à luz ao primeiro filho do casal que sobreviveu à infância. As expectativas para que fossem um garoto eram muito grandes, mas veio ao mundo uma pequena infanta, batizada de Carlota, em homenagem ao pai e ao avô. Embora as mulheres não estivessem excluídas da linha de sucessão ao trono espanhol, o nascimento de uma garota antes de um herdeiro varão sempre constituía alguma frustração para os pais da criança. Mas quem poderia imaginar que a princesa Carlota Joaquina Teresa Caetana de Bourbon e Bourbon iria demonstrar futuramente todas as qualidades intelectuais esperadas de um representante do sexo masculino? Porém, destino da infanta estava estritamente ligado à sua condição biológica. Quando o tempo chegasse, ela seria dada em casamento a algum príncipe estrangeiro para selar uma aliança política favorável ao reino da Espanha. Sendo assim, sua educação deveria ser esmerada nas regras de etiqueta cortesã, tendo em vista os ideais propostos pelo iluminismo, dos quais as cortes europeias estavam impregnadas na segunda metade do século XVIII.

Retrato da Infanta Carlota Joaquina, quando bebê, por Anton Raphael Mengs.
Por outro lado, como diz Francisca L. Nogueira de Azevedo, “o temperamento fechado e austero da monarquia impunha à família e à toda Corte rígidas normas de comportamento e etiqueta”. O rei, Carlos III, era um homem de comportamento reservado, que dedicava mais tempo à família do que pelas animações da vida cortesã, que ficavam ao cargo de seu filho Carlos e sua nora, Maria Luisa. A mãe de Carlota Joaquina era neta do rei Luís XV da França, que contratou seu casamento com o filho do rei da Espanha. Uma vez casada, Maria Luisa logo assumiu a organização dos entretenimentos na corte, com festas luxuosas, no melhor estilo de Versalhes, onde a moral era facilmente esquecida. Logo, sua imagem estaria ligada à de uma mulher promíscua, que traia o marido com outros homens. Entre eles, possivelmente, estava o primeiro-ministro Manuel Godoy, cuja suposta ligação amorosa foi bastante explorada pela imprensa da época. Nem mesmo as gestações sucessivas e o nascimento de um herdeiro para o trono em 1784 livraram Maria Luisa do desprezo da população. Ela passaria à história como uma das rainhas mais impopulares da Espanha e sua má fama atingiu inclusive seus filhos, especialmente a primogênita.
Carlota Joaquina era a neta predileta de Carlos III e convivia bastante com o rei, recebendo dele valores monarquistas que ela jamais abandonaria ao longo de sua vida. Junto com os rudimentos da educação, a infanta concluiu que a mulher se tronava digna mediante seu acesso à cultura e à educação. Seu aprendizado seria posto à prova quando foi submetida a uma série de exames públicos diante da corte espanhola e dos embaixadores portugueses, enviados em nome da rainha Maria I para avaliar os dotes da princesa, destinada a casar-se com o infante D. João de Portugal. Em outubro de 1785, a Gazeta de Lisboa publicava um relato dos testes:
Tudo satisfez tão completamente que não se pode expressar a admiração que deve causar uma instrução tão vasta em uma idade tão tenra: mas […] o decidido talento com que Deus dotou esta sereníssima Senhora, a sua prodigiosa memória, compreensão e desembaraço, mostrarão que tudo é possível, principalmente com o desvelo e capacidade com que o sobredito mestre lhe promove tão úteis e gloriosas aplicações (apud PEREIRA, 1999, p. 26).

Rei Carlos III da Espanha, por Anton Raphael Mengs.
Comprovado o talento da noiva, não havia, portanto, qualquer impedimento para o consórcio com o príncipe português. Ela e sua comitiva partiram para Lisboa no dia 11 de maio de 1785. Viajavam com a infanta o padre Felipe Scio, famoso teólogo espanhol e erudito, d. Emília O’Dempsy, a açafata, e d. Anna Miquelina, criada particular da princesa. As bodas entre D. João e D. Carlota Joaquina foram oficialmente realizadas no dia 9 de junho. Ela tinha tão somente 11 anos, enquanto ele 18. A pouca idade da noiva, por sua vez, era um empecilho para a consumação da união, de modo que a jovem deveria esperar algum tempo para que então se tornasse apta a conceber e gerar filhos saudáveis.
Não obstante, o clima na corte dos Bragança diferenciava em muitos aspectos do da alegre corte espanhola. “Enquanto em outras partes do mundo ocidental, especialmente Paris, o século XVIII representa o marco de uma nova sociabilidade, em Portugal a Igreja impõe normas proibindo todo tipo de divertimento” (AZEVEDO, 2008, p. 30). Eram vetadas a dramatização de comédias, inclusive a realização de bailes e festas. O reinado de D. Maria I foi marcado pela ascensão de um grupo conservador da nobreza e do clero de Portugal. Criados no meio desse ambiente de “tédio”, como definiu D. Mariana Victoria, mulher de d. José, muitos viajantes portugueses se assustavam com as liberdades concedidas às mulheres nobres da corte francesa, que gozavam de certos direitos negados às suas colegas do sudoeste da península Ibérica. Desse modo, a infanta Carlota se viu no meio de um ambiente bastante religioso e austero, em contraste com a extravagância e o fausto a que estava acostumada. Apesar disso, sua relação com a sogra era muito terna, como nos mostram as cartas trocadas entre ambas. “A alegria e a vivacidade de Carlota Joaquina eram as responsáveis pelas raras horas de descontração da rainha” (AZEVEDO, 2008, p. 30).
Aliado a uma espontaneidade que encantava a família real portuguesa, D. Carlota também possuía um temperamento bastante autoritário, oscilando entre ataques de raiva e atitudes generosas, que se intensificou com o passar dos anos. O bibliotecário da Biblioteca Real, Luiz Joaquim dos Santos Marrocos, relata uma passagem muito interessante da vida de D. Carlota e que nos ajuda a contradizer sua má fama. De acordo com ele, uma mulher de um funcionário da Biblioteca Real foi acusada de adultério e abandonada pelo marido. Ao saber disso, a princesa levou-a para o Palácio, deu-lhe roupas e atendimento médico. Além disso, “sabendo ao depois que ela tinha duas filhas pequenas e em desamparo, mandou logo busca-las, vestiu-as nobre e magnificamente com primoroso enxoval, e pô-las a educar e aprender em um colégio de meninas, pagando mensalmente por sua educação”.

A família de Carlos IV em 1800 por Francisco de Goya. Da esquerda para a direita: o infante Carlos o Príncipe das Astúrias e a Princesa de Astúrias; as infantas Maria Josefa e Maria Isabel, a rainha Maria Luísa de Parma o infante Francisco de Paula, o rei Carlos IV e o infante António Pascoal; as infantas Carlota Joaquina e Maria Luísa, o rei da Etrúria, Luís I e o príncipe herdeiro da Etrúria Carlos.
Seus hábitos e costumes mais liberais diferenciavam em muitos aspectos do de outras mulheres da corte. Bastante tradicionais com relação ao comportamento feminino, os homens portugueses desaprovavam “a desenvoltura com que [D. Carlota] transitava no espaço público, sua atuação no campo político e seu destempero no cotidiano familiar”. Uma vez que a maioria das mulheres portuguesas eram privadas do convívio social, o comportamento transgressor de Carlota Joaquina deu margem para que certos boatos maliciosos a seu respeito fossem levantados pelos fofoqueiros de plantão. Alguns deles chegavam a ser preconceituosos, como o da duquesa de Abrantes, mulher do general francês que mais tarde invadiria Portugal, Junot. Durante o período em que esteve em Lisboa, a duquesa descreveu os membros da família Bragança como “um concurso monstro de fealdades em que cabiam os primeiros prêmios ao príncipe regente e a Dona Carlota”. Madame Junot ridicularizava a esposa de D. João tanto por sua maneira de agir quando pela sua forma de se vestir, e a escrachava como uma mulher extremamente feia.

Dona Carlota Joaquina de Bourbon, já como esposa do infante D. João, em 1787, por
Giuseppe Troni.
De acordo com a biógrafa de Carlota Joaquina, Francisca L. Nogueira de Azevedo (2008, p. 30), três acontecimentos fizeram com que a princesa se tornasse uma das protagonistas no cenário político português do final do século XVIII. O primeiro deles foi um evento internacional, a Revolução Francesa (1789), que ceifou as vidas de Luís XVI e Maria Antonieta, provando assim que o corpo político da monarquia não era inviolável, como a teoria do direito divino fazia crer. Além disso, o evento alterou radicalmente o quadro político europeu, abalando o pacto existente entre as dinastias reinantes em Espanha e Portugal. O segundo acontecimento foi a morte do herdeiro do trono, D. José, em 1788, fazendo de D. João o sucessor direto da coroa e de D. Carlota a princesa consorte. O último elemento nessa equação foi o agravamento da insanidade mental da rainha Maria I, em 1792, impossibilitando-a a de exercer seus poderes régios. Em 1799, D. João se tornou oficialmente o príncipe regente, no mesmo ano em que Napoleão Bonaparte ascendeu ao poder na França através do golpe do 18 Brumário. Essa oportunidade certamente foi vista por Carlota Joaquina como um meio de interferir nos assuntos do governo, através do seu marido. Mas, como a história irá mostrar, as coisas dificilmente saiam em conformidade com os desejos da princesa.
Referências Bibliográficas:
AZEVEDO, Francisca L. Nogueira de. Carlota Joaquina: cartas inéditas. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2008.
_. Forte, teimosa e voluntariosa. – Revista de História da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, setembro de 2013.
PEREIRA, Sara Marques. D. Carlota Joaquina e os espelhos de Clio. – Lisboa: Livros Horizonte, 1999.
Boa tarde
Venho por este meio dizer que adoro o vosso blog e se seria possivel publicarem o meu que se trata da mesma tematica nos vossos parceiros.
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Atentamente
Joao Viegas
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Abraços!
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