Por: Renato Drummond Tapioca Neto
Em um belo retrato exposto no palácio de Schönbrunn, antiga residência da família imperial austríaca, podemos ver uma jovem entre 12 e 16 anos, vestida de acordo com a moda francesa de meados do século XVIII: cabelos empoados, ruge sobre as bochechas, lábios pintados de carmim, vestido de seda azul com detalhes em musselina branca, apertado por um corpete que realçava a beleza do colo. Ela olha diretamente para o observador como se estivesse o seduzindo, convidando-o a permanecer mais tempo ali parado em frente à tela. O autor deste belo trabalho é Martin van Meytens, retratista oficial da imperatriz Maria Teresa da Áustria e autor de muitas pinturas dessa época. Ele foi o responsável pela execução de alguns dos retratos das arquiduquesas Habsburgo, como Maria Amália, Maria Elisabeth, e, talvez, Maria Antonieta. Por muito tempo, a garota no quadro em questão, datado de 1767, foi reconhecida como a filha mais jovem de Maria Teresa, pintada aos 12 anos de idade. Porém, recentemente a curadoria do palácio de Schönbrunn surpreendeu o visitante ao recatalogar a pintura. Na legenda, onde antes havia o nome de Antonieta, agora consta o de Maria Josefa, sua irmã mais velha.

Retrato da arquiduquesa Maria Josefa da Áustria, pintado por Francesco Liani (c. 1767).
A nova identificação do retrato chocou muitos dos admiradores de Maria Antonieta, uma vez que esta é uma das imagens mais famosas da rainha quando era uma arquiduquesa austríaca, já tendo sido reproduzida em diversos livros e propagandas. Não obstante, a legenda chamou a atenção para aquela irmã até então pouco conhecida, que faleceu ainda muito jovem, aos 16 anos. Maria Josefa de Habsburgo-Lorena foi a 12ª filha do casal de soberanos do Sacro Império Romano-Germânico, nascida em 1751. Assim que atingiu a idade casadoura, ela foi prometida ao herdeiro do trono de Nápoles. Esta aliança fazia parte da política matrimonial desenvolvida pela imperatriz Maria Teresa para espalhar a influência austríaca em outros reinos da Europa, conforme pregava o lema dos Habsburgos: “que os outros façam guerra, mas tu, feliz Áustria, casa-te”. As atenções da imperatriz então se concentraram naquela jovem, no intuito de prepara-la para o seu futuro destino. Tudo corria de acordo com os planos de Maria Teresa, não fosse a doença que ela e sua filha contraíram: varíola, responsável pela morte de muitas pessoas naquela época. A soberana, por sua vez, resistiu, mas não Maria Josefa.
O acontecimento deixou a corte muito triste, mas a aliança com o reino de Nápoles ainda precisava ser cimentada pelo casamento. Sendo assim, para substituir Maria Josefa foi escolhida a arquiduquesa Maria Carolina, de 14 anos. Ela se casou em 1768 com o rei Fernando IV de Nápoles. Permaneceu em Viena apenas mais uma princesa para ser usada pela mãe como peão no tabuleiro político europeu: Maria Antonia. Porém, a expectativa de Maria Teresa para com esta criança, que ela até então havia dado pouca atenção, não era das melhores. Assim que recebeu uma resposta positiva de Luís XV, rei da França, a imperatriz não teve escolha a não ser oferecer em casamento ao Delfim Luís Augusto sua filha mais jovem. Rebatizada de Maria Antonieta (no francês Antoinette), a arquiduquesa precisou passar por um processo de “afrancesamento”, segundo exigência da etiqueta da corte francesa, tendo que aprender a língua, a história, os modos e os costumes do país onde ela um dia seria rainha. Para convencer Luís XV, retratos da jovem foram pintados. É nesse contexto que o quadro de Martin von Meytens teria sido feito.

Quadro comparativo entre o retrato de Maria Josefa, pintado por Anton Rapahel Mengs (1767), e o possível retrato de Maria Antonieta, pintado por Meytens. Ambas estão usando os mesmos adereços: as mangas do vestido, os brincos, a gargantinha e as joias no cabelo.
Todavia, no palácio de Caserta (Itália), um outro retrato de uma arquiduquesa se encontra exposto. Pintado por Francesco Liani, a tela poderia se tratar de uma duplicata do quadro de Martin van Meytens, não fosse pelo fato de que a jovem retratada não é Maria Antonieta e sim sua irmã mais velha, Maria Josefa. A evidência dessa pintura gerou bastante controvérsia entre a equipe do palácio de Schönbrunn, onde a tela de van Meytens está exposta. Convencidos de que o retrato não pertencia à última rainha da França, a peça foi recatalogada e hoje consta na sua legenda o nome de Josefa. Por outro lado, uma série de outros fatores contribuem para que esta questão ainda não esteja plenamente solucionada. Em primeiro lugar, é preciso que tenhamos claro o fato de que a etiquetagem de certos retratos do século XVIII nem sempre foi precisa. Isso já aconteceu antes com Maria Antonieta, por exemplo, cujo suposto retrato pintado enquanto delfina da França por Louis Périn-Salbreux (atualmente exposto no Museu de Belas Artes, em Reims), representava na verdade a sua tia pelo casamento, Madame Sofia.
Sendo assim, tais erros de identificação não são excepcionais. É perfeitamente possível que o quadro executado por Martin van Meytens represente Maria Josefa, que era parecida com Maria Antonieta. No seu retrato mais conhecido, também de 1767, pintado por Anton Rapahel Mengs (atualmente exposto no Museu Nacional do Prado), ela está usando os mesmos adereços da tela de van Meytens, conforme podemos observar na imagem comparativa acima: as mangas do vestido, os brincos, a gargantilha e as joias no cabelo. Estes itens podem ser um indicativo favorável na identificação do segundo retrato, exceto pelo fato de que, apesar de parecidas, as dessemelhanças nos traços do rosto também são visíveis, especialmente nos olhos. Enquanto na tela de Francesco Liani podemos observar uma expressão facial idêntica à de Rapahel Mengs, o mesmo não pode ser dito sobre o quadro de van Martin van Meytens. Partindo do pressuposto de que o retrato de Maria Josefa, pintado por Liani, é uma duplicata do de van Meytens, ou vice-versa, porque então a diferença nas expressões faciais? Para esclarecer um pouco mais essa questão, é preciso procurar elementos externos às pinturas.

As oito filhas da Imperatriz Maria Teresa da Áustria, que sobreviveram à infância. Da esquerda para a direita, de cima para baixo: Maria Ana, Maria Cristina, Maria Elisabete, Maria Amália, Maria Joana, Maria Josefa, Maria Carolina e (possivelmente) Maria Antonieta.
Das oito filhas de Maria Teresa, que sobreviveram à infância, todas elas tiveram seus retratos oficiais pintados. Nestas obras, encontramos muitos elementos análogos, tanto no vestuário, quanto nas poses das modelos. Era comum reaproveitar os traços corporais de uma retratada para outra, alterando-se apenas o rosto, o que evitava horas e horas de exposição aos olhos do artista. Esse aspecto é ainda mais evidente no retrato de Maria Carolina, de pintor desconhecido. Na tela, a arquiduquesa segura um retrato do seu pai, o imperador Francisco I, e usa exatamente o mesmo vestido de seda azul e detalhes em musselina branca que Maria Josefa usa no retrato pintado por Francesco Liani. É possível que o traje tenha passado de uma irmã para a outra, já que Carolina sucedeu Josefa como noiva de Fernando IV de Nápoles, após a morte desta última. Sendo assim, não seria surpresa se o vestido também tivesse sido usado por Maria Antonieta. Como havia uma espécie de padrão nos retratos das arquiduquesas, então era comum que certos adereços encontrados em uma tela também estivessem presentes em outras, especialmente as joias de família.

Arquiduquesa Maria Carolina, por artista desconhecido (c. 1765-7). No retrato, ela usa o mesmo vestido de sua irmã, Maria Josefa.
Além desse aspecto, é preciso perguntar: se a tela em questão, pintada por Martin van Meytens, representa Maria Josefa, por que Maria Antonieta também não teve um retrato oficial pintado nessa época, como suas outras irmãs? Apesar de reconhecer a possibilidade de que a nova etiquetagem feita pela equipe do palácio de Schönbrunn esteja correta, penso que a obra de van Meytens ainda continue sendo um retrato da arquiduquesa Maria Antonia, devido às semelhanças faciais entre a modelo com outras imagens posteriores da futura rainha. Ela foi descrita em sua juventude como uma garota muito impaciente, de modo que ficar em exposição por um longo período de tempo para um retratista poderia ser algo muito torturante para ela. Dessa forma, acredito que o retrato de Maria Josefa, pintado por Francesco Liani, tenha sido usado como base por Martin para executar o outro quadro, alterando-se apenas o rosto da retratada. Não obstante, a ocasião para a encomenda da tela pode ser outro ponto à favor, já que naquele período Maria Antonieta despontava como presumível escolha de sua mãe para se casar com o Delfim da França. Esperamos, então, que novos fatos venham à tona para elucidar esse assunto.
Bibliografia Consultada:
FRASER, Antonia. Maria Antonieta. Tradução de Maria Beatriz de Medina. 4ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2009.
LEVER, Evelyne. Maria Antonieta: A última rainha da França. Tradução de S. Duarte. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.
WEBER, Caroline. Rainha da Moda: como Maria Antonieta se vestiu para a Revolução. Tradução de Maria Luiza X. De A. Borges. – Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
ZWEIG, Stefan. Maria Antonieta. Tradução de Medeiros e Albuquerque. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
Sites:
A mistaken portrait? – Acesso em 22 de novembro de 2015
Maria Josepha d’Asburgo Lorena – Acesso em 22 de novembro de 2015