Emancipação feminina na imprensa: as jornalistas brasileiras do século XIX!

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

A conquista do espaço público, por parte do público feminino, não se deu sem muita luta e perseverança. Até a primeira metade do século passado, mulheres que pretendessem seguir uma vida fora do domínio da esfera privada eram geralmente malvistas pela sociedade masculina, que relegava o “belo sexo” a um lugar de submissão e passividade às vontades do homem. Revoltadas com essa situação, que lhes restringia o acesso ao ensino superior e ao mercado de trabalho especializado, muitas mulheres se agruparam em determinados núcleos para fazerem frente à condição de suposta inferioridade feminina. Elas brigaram pelo direito ao voto, por salários iguais, por uma educação melhor. Com isso, a luta pela emancipação do gênero foi ganhando mais corpo e se alastrando por diversas partes do globo, como no Brasil, habitado ainda hoje por uma população bastante conservadora. Aqui, as raízes do feminismo demoraram a encontrar terreno fértil, pois só a partir da década de 1960 é que veremos esse movimento ganhar mais destaque dentro de determinados seguimentos sociais. Contudo, antes disso, muitas mulheres já militavam arduamente na causa, usando de todos os meios que dispunham para se fazerem ouvir. É esse, por exemplo, o caso das jornalistas e fundadoras de periódicos no Brasil da segunda metade do século XIX.

jornal-senhorasA sociedade brasileira oitocentista era, em sua maioria, composta de analfabetos. O acesso à educação estava mais concentrado nas capitais e os centros especializados na instrução feminina eram bastante limitados. Nestas instituições, as mulheres aprendiam a bordar, desenhar, entre outras habilidades que eram esperadas de uma dona de casa. O ensino de algumas disciplinas, por sua vez, lhes era reduzido por se considerar que o intelecto feminino não foi feito para as ciências. “A mulher que estuda, que pensa, que sente os eflúvios do benéfico influxo da ciência, é objeto de críticas e censuras à própria dignidade”, disse a pernambucana Maria Amélia de Queiroz, em artigo ao jornal A Família, de 27 de novembro de 1890. Essa jornalista fazia parte de um grupo de senhoras letradas, indignadas com a condição servil feminina imposta pelo patriarcalismo, e que usaram da imprensa para circularem suas opiniões e exporem seus planos de emancipação da mulher pela educação. Devido ao grande índice de analfabetismo, seus argumentos talvez não tenham sido apreciados por um considerável público de leitoras. Entretanto, nos servem para demonstrar como as pioneiras na luta pela igualdade de gêneros aqui no Brasil pensavam e agiam frente às imposições da sociedade. A seguir, prestemos então um pouco mais de atenção aos apelos delas.

Por ser o centro do império, a corte do Rio de Janeiro foi o lugar mais favorecido para a publicação de obras literárias e veiculação de jornais e revistas. O primeiro periódico escrito por e para as mulheres no Brasil foi o Jornal das Senhoras, fundado em 1852 por Joana Paulo Manso de Noronha. Em sua primeira edição, datada em 1 de janeiro, a fundadora deixava já explícitos os seus objetivos, concentrados em “propagar a ilustração e cooperar com todas as suas forças para o melhoramento social e para a emancipação moral da mulher”, e convidava as suas leitoras a enviarem artigos, respeitando-se o anonimato. Depois de ter passado pela administração de mais duas redatoras (Violante Atabalipa Ximenes de Bivar e Vellasco e Gervásia Nunésia Pires dos Santos Neves, respectivamente), o Jornal das Senhoras encerrou suas atividades em 1855. Nesse período, considerado como a primeira fase da imprensa brasileira, a manutenção de um jornal era bastante custoso, ainda mais para uma mulher, cujas possibilidades de ganhar dinheiro a partir do próprio trabalho eram muito poucas. Porém, esse fato nos serve para demonstrar como as ações femininas no jornalismo permitiram a conquista de um novo ambiente social para a mulher.

A iniciativa de Joana Paulo abriu, assim, as portas para que outros periódicos escritos por e para as mulheres fossem publicados no Rio de Janeiro e em outros estados brasileiros. Escrevendo na edição de 17 de outubro de 1852 do Jornal das Senhoras, Violante Atabalista disse que,

Nós fomos as primeiras senhoras que não trepidamos em nos apresentar em público para darmos vida e animação intelectual ao gênio fértil, à imaginação viva e ardente do nosso sexo, até então destinado a abafar no peito ou confiar às tiras de papel trancadas em seu gabinete o sentimento das mais belas inspirações de literaturas (p. 120-1).

Eram, entretanto, mulheres que faziam parte de uma elite feminina culturalmente diversificada, mas que mantinham relações com representantes de outras áreas intelectuais e artísticas. Depois do Jornal das Senhoras, ainda surgiriam periódicos como Bello Sexo, A Mulher e O Sexo Feminino, que, com o advento da república, seria rebatizado de O Quinze de Novembro do Sexo Feminino, entre outros.

Frontispício da primeira edição de "O Sexo Feminino" (1875).

Frontispício da primeira edição de “O Sexo Feminino” (1875).

O surgimento de tais periódicos aqui no país, porém, aconteceu com certa demora, se comparado à Europa e aos Estados Unidos. Na primeira edição de O Jornal das Senhoras, por exemplo, Joana Paulo deixava claro seu descontentamento pelo atraso brasileiro nesse sentido, uma vez que as ideias de emancipação feminina pela educação já eram amplamente difundidas nos países ditos de primeiro mundo. Em artigo ao jornal O Sexo Feminino, publicado em 18 de agosto de 1889, a professora mineira Francisca Senhorinha da Motta Diniz afirmava que “no século das luzes, século em que, como fiz Flammarion, temos de ver que a verdadeira liberdade consiste na soberania da inteligência, não é mais permitida a escravidão da mulher” (p. 1). Por outro lado, “o triste preconceito que infelizmente predomina em muitos espíritos antagonistas do nosso desenvolvimento físico, intelectual e moral, conserva-nos ainda comprimidas nos acanhados moldes de educação que nos legou a idade média”, dizia outra redatora, a paulista Anália Franco, na edição de 25 de maio do mesmo ano de A Família. Como parece ficar evidente, a solução apresentada por estas duas escritoras para superação da condição servil da mulher só se daria por meio do estudo.

Através de textos como “A racional emancipação da mulher”, “A nossa educação”, ou “Ligeiras considerações sobre a educação feminil”, as redatoras dos jornais aqui citados se recusavam a ocupar o lugar de ignorância relegado a elas pela sociedade e instavam outras leitoras a fazerem o mesmo.  Em “Notas sobre a educação feminina”, Anália Franco afirmava:

Desprovidas de experiência, estioladas por uma educação deplorável e fútil, combatidas nas fontes nervosas de energia, incapazes de luta no conflito da existência, é evidente que prefiram a sujeição, o servilismo, a doce placidez da obediência automática, à preocupação constante, ao trabalho assíduo de fortalecerem-se para as provas da liberdade e para os combates da vida (A Família, 27 de novembro de 1890, p. 1).

No trecho que acaba de ser citado, a autora fazia uma queixa aberta às mulheres que se acomodaram nos seus papeis de esposas e donas de casa, por medo de perderem aquele estado de proteção ao qual foram habituadas a aceitar e condenavam a ação daquelas que buscavam melhorias sociais para o gênero. “Em lugar de rebaixar e desilustrar aquelas que se salientam”, dizia a jornalista Luiza Thienpont, “deveriam as outras senhoras imita-las nas suas peregrinações no mundo intelectual, nas suas propagandas, e emancipar-se também pelo poderoso auxílio duma forte e sólida instrução” (A Família, 19 de julho de 1890, p. 2).

Josefina Álvares de Azevedo, fundadora do jornal "A Família".

Josefina Álvares de Azevedo, fundadora do jornal “A Família”.

Não obstante, uma das críticas mais ferrenhas feitas aos argumentos defendidos pelas jornalistas consistia no suposto abandono das atividades domésticas em prol do estudo. A esse respeito, a fundadora do A Família, Josefina Álvares de Azevedo, respondeu que as mães e esposas podiam “perfeitamente educar os filhos e desempenhar deveres cívicos, da mesma forma que um homem pode cuidar dos deveres da família e dos seus deveres de cidadão”. Sendo assim, ela deixava expressa sua opinião de que não eram apenas as mulheres que tinham obrigações para com o lar, mas os maridos também deveriam desempenhar suas tarefas domésticas. O discurso religioso também vai estar, nesse período, avesso às ideias de emancipação do sexo feminino. Respondendo às advertências deixadas por uma devota senhora, que foi orientada por seu confessor, Luiza Thienpont disse que “se não adoto os vossos concelhos é porque acho-os incompatíveis com o progresso, e o progresso não quer a mulher fanática porque o fanatismo tem deixado o seu rastro fatal nas páginas da história”. Em seguida, ela reafirmava que “queremos a emancipação da mulher pelo poderoso auxílio d’uma educação bem dirigida, educação que sem ser fanática e funesta, é religiosa na religião de Cristo e nas suas doutrinas: ‘não façais aos outros o que não quereis que vos façam” (A Família, 24 de maio de 1890, p. 2).

De acordo com BERNARDES (1989, p. 133), emancipar-se, para aquelas mulheres, significava se libertar de uma condição de submissão em relação ao homem, através da conquista de direitos iguais. As reivindicações por uma melhor educação, espaço no mercado de trabalho, problemas matrimoniais e de ordem política, tinham por finalidade estabelecer um equilíbrio entre os gêneros. Numa das denúncias publicadas em A Família, uma jornalista protestava o seguinte:

As relações sociais que existem entre os dois sexos, um dos quais subjuga o outro, em nome da lei, são más em si mesmas, e constituem um dos principais obstáculos que se opõem ao progresso da humanidade.

Sejam, porém, quais forem os verdadeiros motivos desse injusto cativeiro, o certo é que restringe o papel da mulher ao de dona de casa e mãe de família, reclusa no estreito círculo dos interesses e deveres domésticos, com absoluta proibição de ultrapassar as raias de tão mesquinho domínio.

Mulher, enquanto solteira sujeita à perpétua tutela do pai, depois de casada, inteiramente submetida ao homem, a cujo destino se uniu, nesse ou noutro estado representando a incapacidade, a inexperiência, a fraqueza, a abdicação de toda vontade e de todos os direitos nas mãos do homem, por esta ou por aquela teoria, eis a sorte que lhe foi reservada na terra, a missão em que se concentra a atividade intelectual e moral com que a dotou a natureza!

Protestamos por meio de nossos escritos contra a nossa humilhante posição atual. E nem é cedo para reagirmos contra esse crime secular. (MYRTIS, 21 de agosto de 1890, p. 1)

Com base no artigo que acabou de ser exposto, percebe-se o grau de insatisfação da autora com relação à posição social da mulher brasileira no final do século XIX, quando os protestos das jornalistas haviam extrapolado o âmbito educacional e atingido outras áreas, como a das profissões, uma vez que “nem sempre o trabalho do homem é suficiente para proporcionar à sua família todas aquelas comodidades, todo aquele conforto”. Para tanto, era “indispensável ensinar à mulher profissões práticas e verdadeiras, que lhes possam ser úteis na vida, não se exigindo nem baixeza, nem capacidades excepcionais, nem pretensões especiais”. Queriam o exercício exclusivo do magistério (quando os educandos fossem crianças), e da medicina para pacientes do mesmo sexo. Não só isso! Ambicionavam também o direito de eleger e serem eleitas. Em artigo ao jornal O Quinze de novembro do Sexo Feminino, Francisca da Motta Diniz pedia para os legisladores “lembrarem-se que a mulher deve subir à tribuna para advogar sua causa, isso é, a causa do direito, da justiça e da humanidade” (6 de abril de 1890, p. 2). Por fim, “no fim do grande século das reivindicações sociais não se poderá impunimente negar à mulher um dos mais sagrados direitos individuais”: o voto, completava Josefina Álvares de Azevedo.

Francisca Senhorinha da Motta Diniz, redatora de "O Sexo Feminino".

Francisca Senhorinha da Motta Diniz, redatora de “O Sexo Feminino”.

Diante do que foi até aqui exposto, cabe-nos questionar: eram as mulheres oitocentistas tão submissas quanto costumamos imaginar? Os depoimentos deixados pelas jornalistas do Brasil da segunda metade do século XIX nos permitem ter uma noção clara do quão inconformadas elas estavam com a condição social do sexo feminino, exigindo primeiramente a emancipação do gênero pela educação para então conquistar o domínio público, antes vedado às senhoras. Todavia, é importante ressaltar mais uma vez que essa eram as vozes das mulheres de classe econômica mais abastada. As de menor poder aquisitivo gozavam de maior liberdade de movimentos, especialmente no mercado de trabalho informal, pois tinham que ajudar no sustento da casa e na criação dos filhos. Muitas delas, inclusive, eram chefes de família, vivendo de forma apartada da figura masculina. Na virada do século, a luta pela igualdade de direitos vai se intensificar cada vez mais. Mais periódicos surgiram e uma nova geração de jornalistas vão abraçar a causa de suas mães e avós, instando suas contemporâneas a estudar para melhor defenderem suas ideias e a se especializarem numa profissão. Com efeito, a luta destas pioneiras encontra eco ainda nos dias de hoje, fazendo delas mais próximas de nós do que possamos imaginar!

Referências Bibliográficas:

BERNARDES, Maria Thereza Caiuby Crescenti. Mulheres de Ontem?, Rio de Janeiro, século XIX. – São Paulo: T. A. Queiroz, 1988.

DEL PRIORE, Mary (org.). História das Mulheres no Brasil. – São Paulo: Contexto, 2012.

PERROT, Michelle. Mulheres públicas. – São Paulo: UNESP, 1998.

VERONA, Elisa Maria. Da feminilidade oitocentista. – São Paulo: Unesp, 2013.

Periódicos:

A Família: jornal dedicado à educação da mãe de família. Rio de Janeiro, 1889-1890.

Jornal das Senhoras: modas, literatura, belas artes, teatro e crítica. Rio de Janeiro, 1852-55.

O Quinze de Novembro do Sexo Feminino: revista quinzenal, literária, recreativa, noticiosa e política, especialmente dedicada aos interesses da mulher. Rio de Janeiro, 1890.

O Sexo Feminino: semanário literário, recreativo e noticioso especialmente dedicado aos interesses da mulher. Rio de Janeiro, 1875-1890.

2 comentários sobre “Emancipação feminina na imprensa: as jornalistas brasileiras do século XIX!

  1. No Canadá, até pouco tempo atrás, uma mulher direita e de boa família, não devia escrever nem uma carta. As poucas mulheres escritoras do Canadá, especialmente as poetisas, eram vistas como prostitutas. Não só no Canadá, mas nos Estados Unidos também. Foram as próprias mulheres que inventaram esse sistema.

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    • Tomando de empréstimo as palavras de Anália Franco, muitas mulheres preferem “a sujeição, o servilismo, a doce placidez da obediência automática, à preocupação constante, ao trabalho assíduo de fortalecerem-se para as provas da liberdade e para os combates da vida”. Aquelas que se recusam a permanecer nessa condição de subserviência e lutam contra ela, eram malvistas por algumas. Mas dizer que as próprias mulheres inventaram esse sistema é bastante equívoco, na minha opinião. Antes disso, esse sistema lhes foi imposto pela sociedade conservadora, que distribui papes distintos aos dois gêneros e confina o sexo feminino ao ambiente privado, enquanto o masculino ao público.

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