Duas irmãs, um rei: uma análise do filme “The Other Boleyn Girl” (2008)

A Dinastia Tudor da monarquia inglesa (1485-1603) foi um dos períodos mais interessantes da história ocidental, principalmente pela riqueza de personagens e dramas que ela oferece. Quem, hoje em dia, ao ouvir falar o nome de Henrique VIII automaticamente não se lembra de suas 6 esposas e dos destinos trágicos que elas tiveram? Ou da rainha Maria I, conhecida pelo epíteto de “a sanguinária”, e sua meia-irmã, Elizabeth I, chamada de “a rainha virgem”? O que não faltam são personalidades para fazer ferver o imaginário popular. Da literatura ao cinema, os acontecimentos que marcaram a Dinastia Tudor se tornaram mais acessíveis ao grande público, especialmente por filmes como Henry VIII and his six wives (1972), Mary Queen of Scots (1971), entre outros. Recentemente, um dos que vem alcançando mais polêmica entre os espectadores é The Other Boleyn Girl (2008), adaptação do best-seller da romancista inglesa, Philippa Gregory.

Natalie Portman, como Ana Bolena, e Scarlett Johansson como, Maria Bolena.

Natalie Portman, como Ana Bolena, e Scarlett Johansson como, Maria Bolena.

No caso do Brasil, é possível que muitas pessoas (e eu me incluo nesse rol) tenham começado a se interessar pela vida de personagens como Ana e Maria Bolena a partir do primeiro contato com esse filme. E o que é mais irresistível do que uma trama onde duas irmãs, uma loira e outra morena, disputam a atenção de um rei, tendo como pano de fundo uma época remota? Isso sem contar nos atores que interpretam os papéis principais: Natalie Portman, Scarlett Johansson e Eric Bana. Um elenco de primeira linha para dar vida a personalidades marcantes. Nesse panorama, a veracidade dos fatos históricos pode ficar de lado, pois o que o público deseja consumir é um enredo recheado de paixões, intrigas e morte, mascarado por um cenário com castelos medievais (a exemplo da Torre de Londres), e figurantes vestidos em trajes característicos do período. Assim é The Other Boleyn Girl: um filme feito para marcar gerações e também enganá-las por meio de uma megaprodução.

Ao final do longa-metragem, quem não tem interesse em investigar a história por trás do enredo, certamente dirá ao ouvir novamente o nome de seus personagens: “Ana Bolena era malvada. Roubou o rei da irmã e teve o fim que mereceu”. Mas ainda bem que existem aquelas almas inquietas, que não se contentam simplesmente com o que está na tela. Longe de ser uma decepção, as histórias que compõem o reinado de Henrique VIIIsão tão ou até mais apaixonantes do que suas representações modernas, e dariam um grande filme sem nem precisar de qualquer interferência de roteiristas e diretores, mais interessados em vender um produto do que em reproduzir uma trama mais “verídica”. Coloco a palavra “verídica” entre aspas, pois a ideia de representação não precisa ser necessariamente fiel à versão original. Sendo assim, aquele que procura em um romance ou filme a comprovação daquilo que é transmitido, está a fazer um exercício infrutífero.

Jim Sturgess como George Bolena.De acordo com Roger Chartier (1991, p. 184), o conceito de representação pode ser entendido como “a relação entre uma imagem presente e um objeto ausente, uma valendo pelo outra porque lhe é homóloga”. Nesse caso, voltemos nosso foco para uma análise comparativa entre história x filme, na intenção de compreender um pouco melhor algumas das passagens de The Other Boleyn Girl através dessa relação homóloga entre objeto passado e sua imagem construída no século XXI. Vamos começar pela personagem que, acredito, foi a mais vilipendiada pelo roteiro: Ana Bolena. Através da brilhante atuação de Natalie Portman, observamos o desespero de uma mulher para conquistar aquilo que queria. Ao desafiar as regras da sociedade patriarcal inglesa, Ana conquistou para si o rei e a posição de rainha consorte, mas a que custo? Não conseguindo dar um filho varão para a coroa, ela chegou a recorrer a medidas desesperadas para alcançar este fim, como implorar para que seu próprio irmão, George (interpretado por Jim Sturgess), se deitasse com ela.

Tirando a parte do quase incesto, a construção da imagem de Ana Bolena como uma mulher vil não é tão recente como imaginamos. Encontramo-la descrita de maneira semelhante nos despachos do embaixador imperial Eustace Chapuys, que era nada simpático para com a mesma, referindo-se a ela com termos como “concubina” e “la Ana”. Através dos séculos, as representações de Ana Bolena foram mudando de acordo com a ideologia vigente de cada período, por exemplo: no século XIX ela era interpretada como uma heroína romântica, no XX como um ícone feminista, e no XXI como uma das maiores rainhas inglesas, celebrada por uma série de biografias e romances. Então por que os produtores do filme, ou a própria escritora Philippa Gregory, preferiram construir esse personagem de um ponto de vista tão negativo? Não há dúvida de que essa representação é muito incorreta. Contudo, as seduções de uma “mentira convincente” podem ser mais interessantes para os espectadores atuais, do que a história narrada de sob uma perspectiva histórica (BORDO, 2013, p. 229).

Natalie Portman e Eric Bana.

Natalie Portman e Eric Bana.

Ana Bolena foi uma mulher bastante culta para o seu tempo, envolvida com o movimento da reforma e patrona de muitos teólogos e intelectuais do protestantismo. Não é essa Ana que vemos em The Other Boleyn Girl, mas uma mulher má e decidida a passar por cima da própria irmã, Maria, para conseguir aquilo que queria. Por falar em Maria Bolena (Scarlett Johansson), talvez ela seja o personagem que foi tratado sob um ponto de vista mais simpático, promovendo, assim, um verdadeiro resgate de sua figura Depois de Philippa Gregory ter escrito seu romance, as pessoas ficaram fascinadas pela outra garota Bolena, desenterrando sua vida e lhe dando uma voz ativa. Esse fato se torna ainda mais simbólico quando percebemos que as duas principais biografias sobre Maria, escritas por Josephine Wilkinson (2009) e Alison Weir (2011),foram publicadas depois de The Other Boleyn Girlter ido para os cinemas, em 2008.

Assim como mostra o filme, Maria foi uma mulher forte e ao mesmo tempo sensível, bem diferente da prostituta como alguns escritores a descreveram. Outros, como Antonia Fraser (1992) e David Starkey (2003), referem-se a ela como uma mulher tola que foi descartada rapidamente pelo rei após ceder às suas vontades. De acordo com Wilkinson, é possível que o relacionamento de Henrique VIII com a filha mais velha de Thomas Bolena (sim, ela era mais velha do que Ana, e não o contrário) teria terminado algures em 1525, o que faz do rei um possível pai dos filhos dela, nascidos em 1524 e 1526. Dessa forma, quando Henrique demonstrou publicamente seu interesse por Ana, em 1527, o caso dele com Maria já havia terminado pelo menos dois anos antes. Então, como Ana Bolena poderia ter roubado o amante de sua irmã, se eles não estavam mais juntos? Além do mais, após Maria se envolver amorosamente com William Stafford, possivelmente em 1534-5, ela foi banida da corte, e não há registro de que ela estivesse presente no momento da execução de Ana.

Thomas and Elizabeth Boleyn

Kristin Scott Thomas, como Elizabeth Howard, e Mark Rylance, como Thomas Bolena.

Mas vamos esquecer um pouco as muitas imprecisões históricas do filme, e vamos prestar mais atenção no enredo: após conquistar o rei e afastar a rainha Catarina (Ana Torrent), Ana Bolena finalmente conseguiu o que queria. Mas ela ficou feliz? Tinha o homem mais cobiçado do reino e a posição mais alta que uma mulher poderia galgar na hierarquia social inglesa do século XVI e mesmo assim ela não estava satisfeita. Precisava de um filho homem, e o quanto antes, melhor. Não conseguindo realizar a vontade do rei, ela foi traída por sua cunhada, Jane Rochford, e seu tio, o duque de Norfolk, que não queriam cair em desgraça junto com a família Bolena e trataram de passar para o lado oposto antes que o barco afundasse. Por falar no personagem de Thomas Howard (David Morrissey), 3° duque de Norfolk, ele é um dos mais bem retratados em todo o filme: um homem egoísta que só pensava em tirar proveito próprio da situação, independente de quem estivesse envolvido, fosse seu parente ou não. A mulher de George Bolena (interpretada por Juno Temple) foi muito bem representada também, embora suas aparições no filme fossem limitadas. Sua função, assim como na história original, foi delatar o incesto (que não aconteceu) de seu marido com a irmã dele.

Outro personagem que chama a atenção é a de Elizabeth Howard (Kristin Scott Thomas), mãe de Maria, Ana e George. A maioria dos livros pouco a mencionam, e quando o fazem, na maioria dos casos, é para fazer referência às suas origens nobres. Alison Weir, porém, revela que talvez a matriarca da família Bolena tenha sido uma mulher de moral duvidosa, mas não é isso que vemos em The Other Boleyn Girl. Em toda a trama, ela é a única personagem sensata, diferentemente de seu marido (vivido por Mark Rylance), representado como homem fraco. Há uma imprecisão histórica na forma como esses dois personagens foram tratados, mas não vamos focar nisso por agora. O filme também peca por não mostrar o destino de William Carey (Benedict Cumberbatch), que desapareceu após sua mulher ter se tornado amante do rei. De acordo com os registros históricos, William morreu em 1529, vítima da fatal “doença do suor”, deixando a esposa desamparada financeiramente e com dois filhos para criar.

O trio principal de atores: Natalie Portman, Eric Bana e Scarlett Johansson.

O trio principal de atores: Natalie Portman, Eric Bana e Scarlett Johansson.

Uma vez viúva e repudiada pela sua própria família, Maria resolveu tomar as rédeas do próprio destino e se casou com o homem (William Stafford, interpretado por Eddie Redmayne) que escolheu. Que melhor exemplo de ousadia feminina dentro de uma sociedade onde a mulher quase nada podia e ao homem quase tudo era permitido? Além do mais, é uma excelente lição de moral, sobre como o amor e a felicidade valem muito mais do que o poder e a cobiça. Foi o caráter e a compaixão de Maria que fizeram com que ela retorne à corte e implore ao rei pela vida de sua irmã. Mesmo Henrique não tendo atendido ao seu pedido, no fim, ela e Ana se reconciliam, provando que o carinho entre ambas, apesar de tudo o que aconteceu, jamais deixou de existir. É no ápice da trama que observamos a cena mais comovente do filme: após se despedir da irmã na Torre, Ana Bolena sob ao patíbulo, esperando por uma absolvição que não chega. Então, com a morte da rainha, sua irmã cumpre com a promessa que lhe fez e carrega a sobrinha para longe, em seus braços, para que ela não fosse corrompida da mesma forma como aconteceu com seus familiares. Como dizia Eric Ives (2010, p. 6): “a corte fez Ana Bolena, e a corte a destruiu”.

Antes de terminar esta breve análise sobreThe Other Boleyn Girl (2008), gostaria de comentar um pouco sobre a escolha de Eric Bana para o papel do rei. Poucos de nós conseguem imaginar Henrique VIIIcomo o homem no ápice de suapotência física na época de seu relacionamento com Maria Bolena, diferentemente do monarca obeso retratado por Holbein. Nesse sentido, a escolha de Bana foi bem feita: em vez de um ator corpulento como Ray Winstone em Henry VIII (2003), preferiram um intérprete de porte mais atlético e dotado esteticamente, tal como Henrique era naquele período. O que ficou chato na representação do rei foi sua extrema luxuria que o fazia a tomar decisões precipitadas, tal como se livrar da primeira esposa, e depois mandar decapitar a segunda. Assim termina The Other Boleyn Girl (2008), com uma mensagem irônica e, ao mesmo tempo feminista: “o temor de Henrique de deixar a Inglaterra sem um sucessor forte acabou mostrando-se infundado. Ele deixou um herdeiro que governou a Inglaterra por 45 anos. Não foi o filho homem que tanto queria, mas a enérgica menina ruiva que Ana lhe deu. Elizabeth”.

Renato Drummond Tapioca Neto

Graduado em História – UESC

Confira abaixo o trailer de The Other Boleyn Girl (2008):

9 comentários sobre “Duas irmãs, um rei: uma análise do filme “The Other Boleyn Girl” (2008)

    • Apesar das imprecisões históricas, Ana, esse ainda é o filme que eu mais gosto entre todos com o mesmo tema. Fico feliz que tenha curtido a análise que fiz dele 😉

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  1. Análise perfeita!!! 😀 Mas teria acabado mais perfeita ainda se tivesse citado Maria I junto Isabel I , compensaria o pecado do filme em deixar ‘apagada’ a Maria. Bom, eu pelo menos não lembro dele ressaltar que Maria foi a filha mais velha e a primeira a ser rejeitada pelo pai por ser uma ‘herdeira mulher’, e também considerada como a primeira mulher a ser rainha soberana da Inglaterra. Faz muito tempo que assisti, não me lembro, ocorre esse ‘apagão’ mesmo no filme né ? Qualquer coisa, irei rever pra refrescar a memória, rs

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  2. Oi Renato. Vim ler sua análise do filme pois, me interesso nas figuras femininas da História. No texto, você cita Chartier e eu não encontrei a referencia da obra ao final do texto. Poderia postar? agradeço

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  3. Esse filme foi o que motivou meu interesse pelos Tudors e romances históricos em geral. Apesar da superprodução e usar a beleza dos atores para atrair quem assiste, me irrita menos que a série the Tudors por exemplo, em que tudo é contemporâneo de mais…
    Ainda gosto do filme apesar das incongruências, estou me preparando para ler o livro da PG, que encontrei num sebo por um precinho camarada.

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    • A filha de Ana Bolena foi a rainha Elizabeth I, que viveu entre 1533 e 1603. A atual rainha Elizabeth II é filha do rei George VI e nasceu em 1926. Ou seja, quase 400 anos separam a primeira Elizabeth da segunda.

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