Ideias em conflito: o pós-abolição e a mobilização negra durante os anos 1930!

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

Durante as primeiras décadas do século XX, marcadas pelo pós-abolição, observamos como a população afrodescendente no Brasil se arregimentou em torno de ideais que pregavam maiores direitos para os descendentes de escravizados e libertos no país. Naquele período, o discurso eugenista ainda era muito marcante na produção de saberes médicos acerca da formação de uma ideia de nação. Considerava-se, nesse caso, a mestiçagem como um fator degenerativo, necessitando assim de políticas públicas para “branquear” a população, com incentivo para imigração europeia (notadamente a italiana), à semelhança do que vinha acontecendo em outros países da América Latina, como na Argentina. Foi preciso que o movimento de ruptura política representado pela Revolução de 1930 ocorresse, com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, para que determinados grupos formados por negros se juntassem em clubes (alguns deles de cunho político e/ou de matriz cultural), fundassem jornais e dialogassem diretamente com outras pessoas, para que os segmentos sociais classificados como “pretos” começassem a discutir temas como racismo e emancipação do negros através da educação e de maiores oportunidades de emprego e programas de integração social.

Termos como “democracia racial”, “preconceito de cor”, “frentenegrismo” e “segunda abolição”, começaram a ser utilizados com maior frequência por pesquisadores do período e membros dos movimentos sociais, que surgiram durante essa fase. Tais conceitos, por sua vez, foram construídos dentro de um contexto político bastante delicado na história brasileira, marcado pela ascensão de um grupo de extrema direita que flertava com ideais fascistas, como a AIB (Ação Integralista Brasileira), e outro de caráter de esquerda, a ANL (Aliança Nacional Libertadora). Nesta seara, o movimento negro foi se estruturando aos poucos, até formar a FNB (Frente Negra Brasileira), que incluía um pouco das pautas tanto da Ação Integralista, quanto da Aliança Nacional, possuindo assim um caráter bastante complexo. É interessante notar que, embora a FNB levantasse a bandeira por maiores direitos para a população afrodescendente no Brasil, havia dentro do partido grupos dissidentes, que de um lado coadunavam com a AIB e outro que simpatizava com a ANL. Tais divergências são de fundamental importância para se entender como a Frente se formou, até entrar na ilegalidade como a ditadura do Estado Novo, algo que implicou na marginalização de seus membros e na prisão de alguns.

Militantes da Frente Negra Brasileira (FNB).

Um dos aspectos mais interessantes a se notar nessa primeira geração de participantes negros na luta contra a desigualdade racial no Brasil era um certo saudosismo do passado monárquico e no culto feito à imagem da princesa Isabel como “A Redentora”. Tanto, que o 13 de maio era uma data extremamente importante no calendário festivo. Até então, poucos problematizavam o fato de que a abolição havia sido feita pelo Estado Imperial de tal forma, que não garantiu ao liberto maiores possibilidades de inserção social. Em vez disso, foram obrigados a viver nas zonas periféricas de grandes centros urbanos, como São Paulo e Rio de Janeiro, com poucas oportunidades de trabalho e educação. Essa conta, por sua vez, recaiu sobre os ombros da República, implantada um ano após a abolição e que não garantiu aos libertos políticas públicas adequadas à sua sobrevivência. Em vez disso, muitos passaram a viver em condições paupérrimas, ameaçados pelo aparado coercitivo do Estado, que considerava homens e mulheres negras como “marginais” e, portanto, uma ameaça às famílias de classe média e alta, que se beneficiavam de um sistema montados para privilegiar os antigos proprietários de escravizados, assim como seus descendentes.

A partir dessa constatação, deve-se questionar o mito da “democracia racial” no Brasil, tão difundido por Gilberto Freyre em sua trilogia “Casa Grande e Senzala”. Ou seja, a ideia de que a miscigenação, ao contrário do que o discurso médico propalava, não era algo ruim e sim o que de melhor havia na constituição do povo brasileiro. A partir do pressuposto de que a população do país, formada a partir da mistura de portugueses, africanos e indígenas, supostamente convivia harmonicamente, surgiu a noção de “democracia racial”. O termo conseguiu maquiar por muitas décadas o racismo do qual os povos originários e os afrodescendentes eram vítimas, não só em espaços públicos, como também em instituições. Com poucas oportunidades, as populações negras no Brasil se viram forçadas a vender sua força de trabalho por valores muito baixos e a colocar a sobrevivência acima de qualquer outra necessidade, inclusive a da educação. Como na Primeira República ser alfabetizado era um dos critérios para que homens pudessem votar, poucos eram os negros que conseguiam participar do processo democrático, visto que as taxas de analfabetismo entre as populações afrodescendentes no país eram muito altas. Poucos foram os que obtiveram alguma oportunidade de completar a educação básica e ingressar no ensino superior.

Com efeito, a situação dos negros no Brasil abriu espaço para que paralelos entre as comunidades afrodescendentes no país fossem feitas com a situação das chamadas “populações de cor” no Sul dos Estados Unidos. A ideia de que a sociedade brasileira era mais tolerante do que a norte-americana era uma crença partilhada por jornalistas de periódicos como o Chicago Defender. Para eles, se existia preconceito racial no Brasil, a responsabilidade recaía sobre a influência dos norte-americanos que aqui viviam e que estariam influenciando negativamente os brasileiros. Escapava aos jornalistas do Chicago Defender, porém, o fato de que o Brasil fora o último país da América a abolir a instituição escravista e que a mentalidade de muitas famílias, algumas delas inclusive mestiças, era essencialmente colonial. A partir dessa constatação, surgiu a necessidade da chamada “segunda abolição”, termo tão caro a ativistas como Abdias do Nascimento, que na década de 1940 e além começaram a escrever uma série de artigos, chamando a atenção da população para o fato de que no Brasil havia sim um “preconceito de cor”, arraigado até mesmo entre parte da população mestiça, que se recusava a ser classificada como “negra”, preferindo termos como “moreno” ou “mulato”, uma vez que, dessa forma, garantiam maior aceitação por parte dos denominados “brancos” no país.

Uma das edições do Chicago Defender.

Aliás, é importante salientar como as classificações raciais no Brasil e nos Estados Unidos eram distintas. Enquanto na América do Norte o indivíduo era designado de acordo com a sua ancestralidade, no Brasil se levava em consideração a cor da pele do sujeito. Assim, pessoas lidas socialmente como brancas no Brasil (ou seja, aquelas que tinham um tom de pele mais claro), eram beneficiadas por um código de privilégios, enquanto as de pele mais escura não. Devido a essa constatação, alguns habitantes do Sul dos Estados Unidos consideravam que o Estado Brasileiro era mais tolerante com relação à chamadas populações de cor, do que o governo norte-americano. Por outro lado, é importante ressaltar que tanto num como noutro país, as populações afrodescendentes se organizaram em associações de cunho solidário, que prestavam auxílio aos seus partícipes. Mais tarde, alguns de seus integrantes (parte dos quais obtiveram uma boa educação), reuniu-se ao redor da pauta da igualdade de direitos, da emancipação pela educação e por maior acesso dos negros ao mercado de trabalho e a locais públicos. Para tanto (pensavam alguns dos mais conservadores), seria preciso deixar de lado a tradição de seus ancestrais, caso quisessem ser aceitos pela população branca do país. Assim nasceu a FNB e o “frentenegrismo”, que obteve muito destaque até 1937.

Em alguns momentos de sua trajetória, a luta pela igualdade racial no Brasil se misturou com as pautas do movimento operário, que reivindicavam por melhores direitos trabalhistas. Em partidos como PCB, porém, a pauta racial adquiria um caráter mais secundário. Embora seus líderes afirmassem que a luta proletária era o melhor espaço para que os negros filiados a agremiações e clubes brigassem por seus direitos, suas demandas eram geralmente engolfadas pelo conflito que então era travado por uma extrema direita de cunho fascista, que via nos movimentos de esquerda uma ameaça para a estabilidade do país. A partir disso, surgiu a necessidade para os negros de criar um próprio espaço de reivindicação, no qual o racismo e as desigualdades para com os brancos fossem colocados de forma mais nítida e alcançassem o maior número de pessoas possível. Graças a essa iniciativa, movimentos negros foram surgindo em vários locais do país, para além do eixo Rio de Janeiro-São Paulo, abarcando também estados como Minas Gerais, Bahia e Rio Grande do Sul. Mesmo tendo entrado na ilegalidade após a implantação do Estado Novo, seus membros continuaram se reunindo de forma clandestina, apesar da ameaça de prisão, lendo e discutindo livros até então proibidos.

Dessa forma, eles conseguiram manter a chama da luta contra o racismo acesa, numa época em que o discurso da “democracia racial” começava a ganhar cada vez mais aderência da intelectualidade branca, com nomes como o já citado Gilberto Freyre e também Arthur Azevedo. Cabe salientar, porém, que durante esse processo as mulheres negras não foram ausentes. Muitas delas também se associaram em clubes, como os das Camélias, deram depoimentos para jornais e se filiaram aos movimentos e partidos criados por homens. Subalternizadas pelo gênero, pela classe e pela cor de sua pele, elas estavam submetidas a categorias de opressão muito mais fundas. Afinal, carregavam consigo a marca de mais de 350 anos de escravidão aliada à violência sexual, da qual eram vítimas por parte de seus antigos proprietários. Os frutos do estupro nasciam mestiços, quando não de pele clara e lidos socialmente como brancos. Tanto Gilberto Freyre como Luiz Felipe de Alencastro se depararam com anúncios de jornal, nos quais crianças “brancas” eram vendidas como escravizadas. Os descendentes desses mestiços no pós-abolição, com efeito, seriam mais tarde vistos como um símbolo de que as três raças que compunham o povo brasileiro conviviam harmonicamente e não em conflito. Dessa forma, tentava-se apagar todo um passado de exploração, violência e morte de escravizados no país. O racismo era então tratado como tabu.

Um dos aspectos mais interessantes a se notar na primeira geração de participantes negros na luta contra a desigualdade racial no Brasil era um certo saudosismo do passado monárquico e no culto feito à imagem da princesa Isabel como “A Redentora”.

Assim, para camuflar o preconceito racial então existente no Brasil, Getúlio Vargas adotou o carnaval, entre outros símbolos da cultura afro-brasileira, a exemplo das danças, da culinária e da religiosidade, como elementos que ajudaram a forjar a identidade nacional. Ignorava-se, nesse caso, todo o preconceito com que as elites viam tais festejos, classificando-os como folclore e misticismo. Foi só com o fim da ditatura do Estado Novo, com ativistas como Abdias do Nascimento, um dos fundadores do Teatro Experimental do Negro e que chegou a ser deputado federal, ou então com o sociólogo Florestan Fernandes, que os debates em torno de raça e racismo ganharam novo fôlego e o mito da democracia racial começou a ser desconstruído, a partir da análise de trajetórias de negros na sociedade brasileira, de sua posição marginalizada pelo discurso hegemônico, que, por sua vez, negava a existência de racismo do Brasil. Daí a necessidade de uma “segunda abolição”, que garantisse aos negros residentes no país (cerca de 70% da população), maiores oportunidades de trabalho e de educação. Infelizmente, seria preciso esperar até que o país passasse por uma segunda redemocratização, depois de 1985, para que essa pauta voltasse a ser defendida sem repressão.

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