Por: Renato Drummond Tapioca Neto
“Adeus, agradável França/ Ó minha pátria/ Mais querida/ Que alimentou minha infância…”, assim escrevia Maria Stuart, a enlutada rainha da Escócia, ao deixar o solo francês, onde passara boa parte de sua infância e juventude, para retornar ao seu reino de nascimento, no qual era soberana por direito. Muito já se disse a respeito da vida de Mary, mas pouca atenção foi dada às suas habilidades literárias. Através da poesia, a monarca aprendeu a expressar seus sentimentos de felicidade e tristeza, suas angústias e esperanças. Educada na corte dos Valois pelos melhores mestres do Renascimento, Mary Stuart se tornou uma mulher refinada, fluente em mais de um idioma e versada na arte da conversação, características essas que deixavam qualquer interlocutor fascinado. Tudo isso aliado a uma aparência graciosa e imponente, que faziam dela um dos partidos mais cobiçados pelos príncipes da Europa e, segundo dizem, despertava o ciúme de suas pretensas rivais. Durante todos os seus 45 anos de vida (19 dos quais passados em cativeiro na Inglaterra), a soberana usou a Arte como uma arma poderosa para dizer aquilo que seus lábios não podiam pronunciar. Dessa forma, ela deixou um importante corpus documental que incide luz sobre sua personalidade.
Desde o momento em que chegou à França com apenas 7 anos, no final de 1548, Mary Stuart recebeu um tratamento condizente com sua posição de rainha reinante, tendo precedência na hierarquia da corte inclusive sobre as próprias filhas do rei Henrique II com a rainha Catarina de Médici. Crescendo diante dos olhos atenciosos de sua família materna, os Guise, ela recebeu uma educação primorosa, que tinha como finalidade prepará-la para um futuro grandioso: ser rainha da Escócia por nascimento e rainha da França pelo casamento. Ao lado de sua futura cunhada, Elisabeth de Valois, com quem dividia o quarto de dormir, Mary recebia as lições de Latim, Literatura, História, Etiqueta, entre outras matérias reservadas à educação das mulheres da realeza, como música, canto, dança e trabalhos de agulha (as chamadas prendas do sexo feminino). Em pouco tempo, ela passou por um intenso processo de metamorfose. Até mesmo seu sotaque estava desaparecendo, dando lugar a um modo de falar tão comum na corte dos Valois, que, por sua vez, ela nunca abandonaria em vida. Conforme ressalta Jane Dunn, “a transformação da encantadora menina escocesa em uma princesa francesa foi considerada a finalidade prioritária de sua educação” (2004, p. 124).

Mary Stuart partindo da França, por William Powell Frith (1909).
Ao lado de Elisabeth, Mary recebia aulas sobre a cultura clássica e estudava obras de autores do período renascentista, como Erasmo de Roterdã. Os avanços de seu processo educativo podem ser acompanhados pelos seus cadernos de exercícios, que se encontram preservados na Biblioteca de Paris. Ainda de acordo com Jane Dunn:
Quinze são cheios de referências a mulheres eruditas como um estímulo às próprias meninas da realeza. É interessante a quase inexistência do puritanismo de séculos recentes na França seiscentista, quando Safo, autora de poesia emocionalmente homoerótica, é oferecida a essa jovem rainha e princesa como exemplo de uma mulher “admirável em todos os tipos de poemas”. Hipátia, a primeira acadêmica do século I, também é louvada pelo fato de que “escreveu livros sobre astronomia e ensinou em Alexandria várias disciplinas, com tanta destreza de espírito que vinham discípulos de todos os lados à sua procura”. Celebrava-se Zenóbia de Palmira em outro ensaio, por sua capacidade linguística. A sacerdotisa Diotima e a amante de Péricles, Aspásia, também eram membros dessa elite feminina, exibidas para inspirar Mary e Elisabeth de Valois em seus estudos: “[Diotima e Aspásia eram] tão exímias em filosofia que (…) Sócrates, Príncipe dos Filósofos, não sentia vergonha em de chamar [Diotima] de sua professora, nem se envergonhava de ir em palestras de [Aspásia], como relatou Platão (DUNN, 2004, p. 131).
Os preceptores de Mary, por sua vez, não cansavam de elogiar suas habilidades em todas as áreas do conhecimento, levando-a a acreditar que se tratava de um prodígio precoce. Durante um recital para o rei e a rainha na véspera do Ano-novo de 1555, por exemplo, ela deixou toda a corte reunida no Palácio de Louvre, maravilhada. Um de seus mentores, Antoine Fouquelin, louvou o “momento em que eu diria com que admiração de todos teríeis sido ouvida, e que esperanças se haviam formado para nós naquele nobre grupo, se eu soubesse dizê-lo sem suspeita de lisonja” (apud DUNN, 2004, p. 131).
Com efeito, o professor de Literatura de Mary era ninguém menos que Pierre de Ronsard, o célebre poeta do renascimento francês, autor de Quatre premiers livres des odes (1550), Les Amours de Cassandre (1552), Les Amours de Marie (1555), entre outros. Curiosamente, boa parte de sua produção em verso coincidiu com os anos em que a rainha da Escócia era sua pupila, razão pela qual Mary Stuart adquiriu um amor especial pela poesia, despejando nas palavras toda sua veia romântica. Podemos sentir o profundo sentimentalismo de suas composições nos poemas que ela escreveu após a morte de seu marido, o rei Francisco II. Trocando os vestidos de cores alegres pelas veste de luto da reine blanche, com as quais ela foi retrata por François Clouet, Mary expressava sua dor no papel:
Em meu triste e doce canto,
Com um tom de forte lamento,
Derramo um luto absoluto
De insólito aniquilamento,
E em suspiros penetrantes
Vão-se meus melhores anos.
Foi tal o sofrimento,
E tão cruel destino,
Nem tão triste dor
De dama infortunada
Quem meu coração e meus olhos
Veem em caixão e féretro?
Quem em minha doce primavera
E flor da juventude
Sente todas as chagas
De uma estrema tristeza,
E em nada se vê prazeroso
Mas se sente lamentoso e desejoso.
O que me fora prazeroso
Transformou-se em punição dura;
O dia mais luminoso
É para mim noite obscura,
E nada é mais estranho
Que de mim isso ser exigido.
Tenho no coração e nos olhos
Uma imagem, um retrato,
Que traduz o luto
Em meu pálido rosto
De tez violeta,
Do que o amado é também feito.
Em minha saudade estrangeira,
Permaneço imóvel,
Mas procuro em vão mudar,
Porque minha dor é imutável,
Pois meu melhor e meu pior
São os mais desertos lugares.
Em alguma morada,
Seja em um bosque, em uma pradaria,
Seja na alvorada,
Ou ao entardecer,
Sem cessar meu coração sente
O pesar de um ausente.
Se por vezes em direção aos céus
Meu olhar se volta,
Os traços suaves de seus olhos
Eu vejo em uma nuvem;
Se eles se voltam para água,
Veem como um túmulo.
Se estou em repouso,
Adormecida sobre meu lençol,
Ouço o que ele me diz,
Sinto que ele me toca;
Em labor, em calmaria,
Sempre perto de mim.
Não vejo outro objetivo,
Por mais belo que se apresente,
A quem seja o sujeito
Jamais meu coração constante;
Livre de perfeição
Para tal afeição;
Minha canção aqui encerra
Esse tão triste lamento
Cujo refrão será
Amor verdadeiro e sem fingimento,
Que nem a separação,
Terá diminuição[1].
Nesse poema de despedida, escrito durante seu confinamento de 40 dias após a morte do marido, Mary expressava toda a dor da perda de uma pessoa que ela conhecera desde que chegara à França, com quem brincara na infância e desposara na juventude. Ela nunca conheceu seu pai, James V da Escócia; sua mãe, Marie de Guise, era uma figura distante. Em 1558, ela experimentara a dor da perda quando uma lança atingiu o olho de seu sogro, o rei Henrique II, durante um torneio de justa. Dois anos depois, Marie de Guise também faleceu e, em um espaço de poucos meses, seu jovem marido, com quem estivera casada por pouco mais de dois anos.

Mary Stuart como La Reine Blanche, por François Clouet.
Com efeito, Mary tinha apenas 18 anos quando ficou viúva e toda aquela redoma de vidro criada pelo status de rainha da França, dentro da qual ela se considerava intocável, parecia quebrar em vários cacos sobre sua cabeça. Ronsard, seu professor, cristalizou por meio dos versos a imagem da jovem coberta pelos véus branco que Clouet pintara em seu La Reine Blanche:
Um crespo longo, sutil e delineado,
Prega contra prega, retorcido e ondulado,
Hábito de luto vos serve de cobertura,
Depois se fecha na cintura,
E se infla como um voo quando o vento
Sobre a barca e a impele adiante,
De tal roupagem estais vestida,
Partindo, hélas, da bela região,
Onde tivestes na mão o cetro;
Assim que, pensativa e banhando vosso seio
Com o belo cristal das lágrimas que correm
Triste manchais pelas longas alamedas
Do grande jardim do Castelo Real
Que tem seu nome da beleza das águas.[2]
Ronsard compunha através de seus versos a imagem de Mary embarcando em Calais rumo à sua Escócia natal, em 1561. Sem ter outra posição na corte da França além de rainha-viúva, ela decidiu voltar para seu reino, de onde partira em 1548, para assumir seu lugar de direiro no trono. A certeza de que talvez nunca mais retornasse à Paris ou aos belíssimos palácios do Vale de Loire, onde passara uma infância tão feliz, inspirou Mary Stuart a escrever uma de suas mais belas (e tristes) composições:
Adeus, agradável França
Ó minha querida pátria
Mais querida,
Que alimentou minha tenra infância!
Adeus, França! Deus, meus belos dia;
O navio que afasta nossos amores
Só levou de mim a metade;
Uma parte fica, ela te pertence;
Eu a confio à tua amizade,
Para que de você ela se lembre.[3]
Em outras palavras, Mary dizia que, embora fosse escocesa por nascimento, permanecia francesa de coração. Uma parte dela retornava para o território onde ela fora coroada rainha reinante, mas a outra permanecia no reino em que ela havia passado os anos mais felizes de sua vida. Retornando para a Escócia após 13 anos, ela estava bastante desidentificada com os modos, costumes e a cultura de seus súditos. Demorou bastante para ela se adaptar a outros idiomas que não o francês, língua que ela utilizava nas suas correspondências pessoais, em detrimento de qualquer outra. Até mesmo sua formação católica representou um abismo entre ela e o povo, em sua maioria convertidos ao protestantismo. Sem dúvidas, os anos tranquilos de Mary Stuart haviam ficado no passado. Agora, um futuro incerto e cheio de desafios a aguardava do outro lado do canal da Mancha.
Notas:
[1] Traduzido do original em francês por Andréia Marfin Alves para a edição em português da obra “Mary Stuart”, de Alexandre Dumas, publicada no Brasil pela Editora Wish em 2020.
[2] Traduzido do original em francês por Lya Luft para a edição em português da obra “Maria Stuart”, de Stefan Zweig, publicada no Brasil pela Editora José Olympio em 2021.
[3] Traduzido do original em francês por Andréia Marfin Alves para a edição em português da obra “Mary Stuart”, de Alexandre Dumas, publicada no Brasil pela Editora Wish em 2020.
Referências Bibliográficas:
DUMAS, Alexandre. Mary Stuart. Tradução de Cláudia Mello Belhassof. São Caetano do Sul, SP: Wish, 2020.
DUNN, Jane. Elizabeth e Mary: primas, rivais, rainhas. Tradução de Alda Porto. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
ZWEIG, Stefan. Maria Stuart. Tradução de Lya Luft. 4ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2021.