“O Juízo Final dos Reis”: a violação dos túmulos reais durante a Revolução Francesa! – Parte I

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

Em 21 de janeiro de 1793, Luís XVI era decapitado em praça pública acusado de crimes contra a Nação Francesa. Com a cabeça do último rei absolutista, os revolucionários pretendiam lavar com sangue real os símbolos do antigo regime. Nomes de avenidas foram rebatizadas, o país recebeu um novo calendário, o clero deveria prestar juramento à constituição, estátuas foram derrubadas e propriedades da nobreza passaram para o Estado; seus tesouros transferidos para o recém-criado Museu do Louvre, outrora palácio real. A França vivia então a fase do Terror propalado pelos jacobinos, que pretendiam expurgar do país todos aqueles que, a seus olhos, representassem uma ameaça à nova ordem instaurada. Contudo, não seria apenas Luís XVI a pagar pelo despotismo de seus antepassados. Em agosto do mesmo ano, a Convenção Nacional aprovou a destruição da necrópole da Basílica de Saint-Denis, morada final dos corpos dos soberanos da França e de suas consortes desde a Alta Idade Média, remontando a Clóvis, primeiro rei dos Francos, em 511 d.C. Assim, o governo pretendia livrar o país de toda memória que remontava ao seu passado feudal. Ou, nos dizeres de Barrère, que apresentou tal proposta à Convenção no dia 31 de julho, limpar as “cinzas impuras” dos antigos “tiranos”.

A profanação das criptas reais na Basílica de Saint-Denis. Tela de Hubert Robert , pintada no final do século XVIII.

Em decreto expedido pela Convenção, ficou decido que “os túmulos e mausoléus dos ex-reis, montados na Igreja de Saint-Denis, nos templos e em outros locais, por toda a República, serão destruídos em 10 de agosto”. Localizada a nove quilômetros de Paris, a data escolhida para a profanação da Basílica, por sua vez, coincidia com o aniversário de 1 ano da Primeira República Francesa, quando os parisienses tomaram o palácio das Tulherias e depuseram o rei em 1792. A Basílica foi dessacralizada pelo governo e a ordem dos monges beneditinos que tomava conta do local foi dissolvida. Assim sendo, entre os dias 6 e 8 de agosto, os túmulos dos reis merovíngios e carolíngios, primeiras casas dinásticas a reinar sobre o país, foram violados. A abertura dos caixões do rei Felipe III e sua esposa, Isabel de Aragão, foi assistida por Dom Poirier, um ex-monge da abadia e principal testemunha ocular do evento. Ele também estava presente quando as tumbas de Pepino, o Breve e sua esposa, Berta de Laon, foram abertas, assim como nas de Dona Constança de Castela, esposa do rei Luís VII, e na de Luís VI, pai deste último. Não apenas reis se encontravam sepultados ali, como também os remanescentes de 46 nobres.

Com efeito, a operação foi chamada pela Convenção Nacional de “O Juízo Final dos Reis”. As tampas dos sepulcros medievais, com suas ricas efígies esculpidas, foram removidas e o revestimentos de chumbo dos caixões, arrombado. O material seria mais tarde derretido e reaproveitado para outros fins. Quanto aos corpos exumados naquela ocasião, eles tinham no mínimo cinco ou seis séculos de sepultamento, de modo que restavam apenas ossos e cinzas. Os remanescentes foram então jogados em uma vala comum. Seus monumentos tumulares, por outro lado, foram preservados por uma comissão especialmente designada para isso e, por um tempo, instalados no Musée des monuments français, na antiga rua des Petits-Augustins (atual rue Bonaparte), em Paris. Essa primeira iniciativa de pilhagem aos sepulcros reais, contudo, foi mais tímida se comparada à segunda data marcada para continuação dos trabalhos. Em 14 de outubro de 1793, a rainha Maria Antonieta seria julgada pelo Tribunal Revolucionário. Para celebrar essa data, os insurgentes decidiram invadir no dia 12 a cripta dos Bourbon, dinastia deposta um ano antes, e saquear todos os túmulos de Henrique IV até Luís XV, incluindo os das rainhas e princesas que também se encontravam ali sepultadas.

Efígies tumulares de Pepino, o Breve, e sua esposa, Berta de Laon, na Basílica de Saint-Denis. Os corpos, por sua vez, foram pilhados entre 6 e 8 de agosto de 1793.

Em seu livro intitulado O Gênio do Cristianismo, o célebre autor francês François-René de Chateaubriand – exilado na Inglaterra desde 1790, fase em que havia refeito as pazes com o catolicismo dos seus tempos de infância e buscava entender a gênese no movimento revolucionário que ceifara as vidas de tantos de seus amigos e familiares na França – descreveu esses eventos da seguinte forma romantizada:

Leitores cristãos, perdoem as lágrimas que escorrem de nossos olhos enquanto vocês vagam por esta família de São Luís e Clóvis. Caso existissem de repente, jogando de lado o lençol funerário que os cobre, esses monarcas se postariam em seus sepulcros e fixariam seus olhos em nós, à luz desta lamparina!… Sim, nós os vemos meio erguidos, esses espectros de reis; nós os reconhecemos, ousamos questionar essas majestades do túmulo. Bem, fantasmas da realeza, digam-nos: vocês gostariam de viver novamente agora ao custo de uma coroa? Vocês ainda se sentem tentados pelo trono?… Mas de onde vem esse silêncio profundo? Como é que vocês estão todos em silêncio sob esses cofres? Vocês balançam suas cabeças reais, das quais uma nuvem de poeira cai; seus olhos se fecham e vocês se deitam lentamente em seus caixões! […] Porém, para onde nos leva a descrição dessas tumbas já apagadas da terra? Esses túmulos não existem mais! As crianças brincavam com os ossos dos poderosos monarcas: Saint-Denis está deserta; o pássaro o tomou por uma passagem, a grama cresce em seus altares quebrados: e em vez do hino da morte, que ressoava sob suas cúpulas, ouvimos apenas as gotas de chuva caindo por seu telhado aberto, a queda de alguma pedra que cai de suas paredes em ruínas, ou o som de seu relógio, que rola nos túmulos vazios e nos subterrâneos devastados (1828, p. 409).

Em 12 de outubro de 1793, enquanto Maria Antonieta se preparava para seu julgamento no Tribunal Revolucionário, também acusada de crimes contra a Nação Francesa, em Saint-Denis os trabalhadores golpeavam com ímpeto as paredes de pedra das criptas dos Valois e dos Bourbon. Como parte da derrubada da velha ordem, todos os tabus prevalecentes do feudalismo monárquico deveriam ser arrancados pela raiz, incluindo os túmulos reais depositados em local antes sacralizado pela igreja. Dessa forma, o novo governo procurava afirmar seu domínio no plano simbólico assim como no psicológico.

Considerado como sacrilégio para muitas culturas, a profanação dos túmulos escancarou o Terror da Revolução em fase sua mais radical. Não bastava apenas eliminar os representantes vivos do antigo regime, como Luís XVI e Maria Antonieta. Os mortos também precisavam passar pelo mesmo processo de Damnatio memoriae, ou seja, o aniquilamento de determinados governantes da memória coletiva através da destruição de seus restos mortais, estátuas e inscrições públicas. A crônica desses eventos oferece um relato vivo do que se passou naqueles dias de outubro de 1793. Segundo os relatos, as exumações foram conduzidas de forma quase improvisada por uma multidão composta por jacobinos e antigos monges de Saint-Denis. Os cadáveres foram retirados de suas sepulturas e avaliados de acordo com seu estado de preservação. Conforme dissemos anteriormente, dos monarcas pertencentes às dinastias mais antigas restavam apenas o pó dos ossos. Mas outros de mortes mais recentes, como Henrique IV (falecido em 1610), Luís XIII (falecido em 1643) e Luís XIV (falecido em 1715), estes se encontravam bem preservados. Já alguns, como Luís XV (morto em 1774), estavam em avançado estado de putrefação, emitindo miasmas que adoeceram os trabalhadores.

Rascunho do cadáver de Turenne, feito pelo artista-arqueólogo, Alexandre Lenoir.

Com efeito, os encarregados de tal tarefa interpretaram esse “vapor negro fedorento” exalado dos corpos como um sinal da corrupção moral dos defuntos, tanto em vida quanto na morte. Desde a antiguidade, as pessoas eram conduzidas a associar a corrupção física ao pecado. Isso também se aplicada à matéria humana sem vida. Afinal, a evidência de um cadáver bem preservado e sem os odores naturais do estado de decomposição era interpretada como um favor divino, indicativo do estado de pureza do defunto. Essa leitura da morte pode ser melhor exemplificada a partir da análise do primeiro caixão aberto no dia 12 de outubro. Um dos corpos sepultados na Basílica que mais despertou a curiosidade dos revolucionários foi o do general Henrique de La Tour de Auvérnia, visconde de Turenne, morto em 27 de julho de 1675 na batalha de Saltzbach por um tiro de canhão. De acordo com a narração oferecida pela crônica do artista-arqueólogo, Alexandre Lenoir:

Qual foi o seu espanto, quando demoliram o fecho da pequena abóbada, colocada imediatamente acima do túmulo de mármore que sua família mandara erguer, e abriram o caixão! Turenne foi encontrado em tal estado de preservação que não ficou deformado, e as características de seu rosto não foram alteradas. Os espectadores surpresos admiraram, nesses restos congelados, o vencedor de Turkeim; e, esquecendo o golpe mortal com que foi atingido em Saltzbach, cada um deles acreditava que sua alma ainda estava agitada para defender os direitos da França. […] Cada um queria ter uma parte de seus preciosos restos mortais; o famoso Camille Desmoulins cortou o dedo mínimo de sua mão direita. Assim, os infelizes restos mortais de Turenne também foram vítimas da admiração e da fúria desses homens para os quais nada era sagrado. […] Este corpo, em nada murcho, e em perfeita harmonia com os retratos e medalhões que temos deste grande capitão, encontrava-se em estado de múmia seca e de cor castanha clara.

Na opinião da professora Suzanne Glover Lindsay, os restos mortais de Turenne foram objeto de culto e admiração naquele momento: “Apesar de seu sangue nobre e serviço real, Turenne era o comandante revolucionário ideal, mesmo durante o clima polarizado de 1793, por sua humanidade pouco atraente, vínculo profundo com seus soldados e amor à França” (2014). Alexandre Lenoir fez então um esboço da múmia de Turenne, assim como faria de outros cadáveres exumados a partir da observação direta de seus remanescentes. O respeito do pintor pelo general morto impediu que ele retratasse o horrível tiro de canhão que lhe desfigurou o torso. Para Lindsay: “A imagem sugere um ícone com uma certa sacralidade, em vez de uma abordagem neutra e íntima ou de sensacionalismo macabro” (2014).

Após a exumação do corpo de Turenne (que ficou cerca de oito meses exposto dentro de uma caixa de carvalho na sacristia, depois no Museu de História Natural, até ser novamente sepultado com honras por Napoleão Bonaparte no Templo de Marte), os trabalhadores encarregados da tarefa funesta de desapropriação dos túmulos se voltaram para outra sepultura famosa, pertencente ao rei Henrique IV, conhecido pela alcunha de “O Bom”. Dizem que, ao entrar na cripta dos Bourbon no sábado, dia 12 de outubro, um odor pestilento de matéria decomposta quase sufocou as pessoas. Mas, para surpresa geral, o cadáver do fundador da dinastia estava em perfeito estado de conservação:

Abrimos a cúpula Bourbon, junto às capelas subterrâneas e começamos por retirar o caixão de Henrique IV, falecido em 1610, aos 57 anos, conforme anunciado na placa de cobre colocada no seu caixão. O corpo desse príncipe estava em tal estado de preservação que as feições de seu rosto não foram alteradas. Foi colocado no corredor das capelas inferiores, envolto em sua mortalha, também bem preservada. Henrique IV foi colocado contra uma das duas grandes colunas, na frente da capela dos fundos, a que fica ao norte, e assim entregue aos insultos de uma multidão furiosa. Uma mulher aproximou-se dele e, censurando-o pelo crime irreparável de ter sido rei, deu-lhe uma bofetada e derrubou-o no chão. […] Ou os soldados eram mais generosos em caráter, ou consideravam Henrique IV apenas como um grande capitão, mas não compartilhavam nesta ocasião da fúria da população; um soldado presente, movido por um entusiasmo marcial, no momento da abertura do caixão, precipitou-se sobre o cadáver do valente monarca e, após um longo silêncio de admiração, puxou o sabre, cortou-lhe uma longa mecha da sua barba, ainda fresca, exclamando ao mesmo tempo, em termos enérgicos e verdadeiramente militares: “Eu também sou um soldado francês! Doravante não terei outro bigode”. Colocando esta preciosa mecha em seu lábio superior: “Agora tenho certeza de derrotar os inimigos da França e marchar para a vitória”.

Para comprovar o “milagre” do estado de conservação dos restos mortais do primeiro monarca Bourbon, os trabalhadores tiraram um molde de gesso de seu rosto, que, por sua vez, oferece um simulacro bastante vívido de suas feições, antes observadas pelo povo apenas através de retratos e estátuas feitas durante o tempo de vida do soberano e/ou póstumas. O cadáver ficou em exposição durante todo o final de semana até a segunda-feira, dia 14, quando o lançaram numa grande cova na trincheira dos Valois. Conforme ficou ressaltado na crônica: “Este cadáver, considerado múmia seca, teve seu crânio serrado e continha, em vez do cérebro, que dele havia sido retirado, estopa revestida com um licor extraído de aromáticos, espalhando um odor ainda tão forte que era impossível de suportar”. Em 1817, depois da queda do Império Napoleônico e com a Restauração Bourbon, o rei Luís XVIII ordenou que os remanescentes dos antigos reis, saqueados pela Revolução, fossem novamente sepultados na Basílica de Saint-Denis. Contudo, a cabeça mumificada de Henrique IV não foi encontrada em meio às ossadas. Mais de um século depois, em 1919, ela supostamente apareceu em uma casa de leilões e foi vendida por três francos para o fotógrafo Joseph-Emile Bourdais.

Fotografia da máscara mortuária do rei Henrique IV, feita a partir de seu corpo mumificado em 1793 (Bibliothèque Sainte-Geneviève). Ao lado, uma imagem recente da suposta cabeça do monarca e outra de sua reconstrução facial, feita em 2010.

Infelizmente, o novo proprietário do mórbido artefato não conseguiu convencer qualquer museu ou instituição acerca da autenticidade da cabeça. No ano de 2010, antropólogos e médicos forenses fizeram um estudo laboratorial do crânio, que ainda conserva partes do tecido mumificado da pele e então produziram uma reconstrução facial o morto. O resultado coincidiu tanto com as feições da máscara mortuária do defunto, feita em 1793, quanto com os retratos e estátuas sobreviventes dele. Entretanto, a cabeça utilizada no estudo ainda contém remanescentes do cérebro, ao passo que Alexandre Lenoir afirmou em seu depoimento que o órgão havia sido removido no processo de embalsamamento, em 1610, e substituído por um pano de estopa com substâncias aromáticas. Essa evidência dividiu a opinião dos pesquisadores entre aqueles que acreditam na autenticidade da cabeça e aqueles que defendem o contrário. O proprietário formal do crânio, Jacques Bellanger, que o adquiriu em 1955 após a morte de Joseph-Emile Bourdais, ofereceu a peça ao príncipe Luís Alfonso de Borbón, duque de Anjou e descendente de Henrique IV. Este, por sua vez, doou a suposta cabeça de seu antepassado para a Basílica de Saint-Denis, local onde novamente jaz até hoje.

Referências Bibliográficas:

CHATEAUBRIAND, François-René de. Génie du christianisme. Paris: Garnier Frères, 

Destruction des tombeaux royaux de Saint-Denis en 1793: acte de barbarie sans précédent. 2017 – Acesso em 20 de junho de 2021.

FRASER, Antonia. Maria Antonieta: biografia. Tradução de Maria Beatriz de Medina. 4ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2009.

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Tradução de Beatriz Sidou.  2ª ed. São Paulo: Ed. Centauro, 2013.

HOBSBAWM, Eric J. A Era das Revoluções: 1789-1848 – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução de Bernrado Leitão. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1994.

LINDSAY, Suzanne Glover. The Revolutionary Exhumations at St-Denis, 1793. In Conversations: An Online Journal of the Center for the Study of Material and Visual Cultures of Religion, 2014. doi:10.223322/con.ess.2015.2

PRICE, Munro. A queda da monarquia francesa: Luís XVI, Maria Antonieta e o barão de Breteuil. Tradução de Julio Castañon Guimarães. – Rio de Janeiro: Record, 2007.

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