Por: Renato Drummond Tapioca Neto
Segundo o historiador Jacques Le Goff, a memória é um conjunto de funções psíquicas pelas quais o indivíduo pode atualizar impressões e informações que ele ou ela considera como passadas. A memória também pode ser entendida como as reminiscências do passado que afloram no pensamento atual de cada pessoa. Para o sociólogo Maurice Halbwachs, embora acreditemos que alguns acontecimentos de que nos recordamos possam parecer individuais, eles só ganham sentido porque são, antes de tudo, coletivos. A lembrança seria construída graças ao nosso convívio social, uma vez que podemos basear nossa impressão nas reminiscências de outros indivíduos que fazem parte dos mesmos grupos em que estamos inseridos, seja para reforçar, contrastar ou mesmo para completar nossa percepção dos acontecimentos. Com efeito, as práticas de registro da memória passaram por muitas fases ao longo da história. Le Goff as dividiu da seguinte forma: a transmissão oral, ligada às sociedades sem escrita; a passagem da oralidade à escrita (da Pré-história à Antiguidade); a memória dita medieval, equilibrada entre o oral e o escrito; o desenvolvimento da memória escrita (da Renascença até os nossos dias); e os progressos atuais, ligados à revolução tecnológica.
Todavia, como nossa capacidade de reter os acontecimentos passados não é ilimitada, temos a necessidade de descarregar as lembranças, fixando-as em elementos exteriores que tenham o poder de evocá-las, como telas, fotografias, diários pessoais ou livros de Memórias – gênero textual em que o autor se recorda de acontecimentos passados à luz do momento presente. No texto memorialístico, seja ele de cunho autobiográfico ou não, o redator ficcionaliza a vida do sujeito através de um processo de seleção de imagens, visando ressaltar ou mesmo apagar determinados aspectos de sua existência. É o que podemos compreender a partir da leitura das reminiscências de princesas e soberanas europeias que, durante os últimos séculos, usaram o texto memorialístico para contar sua versão pessoal de fatos e eventos que tiveram importância no coletivo dos grupos. De Margarida de Valois, passando por personalidades como Catarina II da Rússia, Luísa da Toscana, Maria da Romênia e a princesa Diana no final do século XX, temos um bom exemplo da utilização desse gênero literário pelas mulheres na realeza. Ao compor a narrativa de suas vidas, elas fizeram um trabalho de seleção de lembranças, no intuito de convencer o leitor daquilo que pretendiam dizer.
As Memórias de Margarida de Valois
Em 1576, depois de abandonar o teto conjugal e passar para o lado dos inimigos de seu irmão, o rei Henrique III da França, Margarida de Valois foi definitivamente banida da corte e encarcerada no castelo de Usson. Consumida pelo ressentimento para com o soberano e sua própria mãe, Catarina de Médici, a famosa rainha Margot resolveu colocar no papel sua própria versão dos eventos políticos que testemunhara até aquele momento. Ao fazê-lo, ela atingiu uma façanha que pode ser considerada duplamente inaugural: foi a primeira mulher da Idade Moderna a ter o ímpeto de narrar sua vida e abriu o caminho para a chamada autobiografia moderna[1]. As Memórias de Margarida de Valois são fonte indispensável para se compreender o cenário político e religioso da França naquele período. “A inveja e a malícia enganam a si mesmas”, escreveu ela, “e fingem descobrir o que ninguém mais pode perceber”. Sua obra foi finalizada em 1594 como uma espécie de resposta ao Discurso sobre a rainha da França e de Navarra, de autoria do historiógrafo Brantôme, que celebrava os anos da juventude de Margarida. A obra de Brantôme, composta com a ajuda da própria biografada, continha alguns erros que Margot corrigiu na sua própria versão dos fatos.
Com efeito, uma das passagens mais importantes do livro é a descrição que Margarida de Valois faz da fatídica Noite de São Bartolomeu, em que milhares de protestantes huguenotes foram assassinados por soldados da Coroa, quando Paris celebrava as bodas da princesa com o rei Henrique de Navarra:
[…] Quando eu dormia profundamente, um homem bateu na porta com as mãos e com os pés, gritando: “Navarra! Navarra!”. Minha aia, pensando tratar-se do meu marido, foi correndo abrir. Era um gentil-homem… ferido a sabre no cotovelo e por uma alabarda no braço. Seguiam-no quatro arqueiros, que entraram atrás dele no quarto. Buscando esconder-se, ele pulou na minha cama. Eu, sentindo aquele homem cair sobre mim, escondi-me entre a cama e a parede, e ele me seguiu, sempre agarrado a mim… Ambos gritávamos, cada um mais apavorado do que o outro. Enfim, graças a Deus, apareceu o capitão de guarda, Monsieur de Nançay, que, vendo-me naquele estado, apesar da compaixão, não pôde conter o riso. Irritou-se muito com os arqueiros pela indiscrição, mandou-os embora e me concedeu a vida daquele pobre homem que continuava agarrado a mim. Mandou-o deitar-se e fez que o tratassem no meu gabinete, onde o manteve até ele estar completamente recuperado. Enquanto eu trocava a camisola, toda manchada de sangue, Monsieur de Nançay me contou o que estava acontecendo e me garantiu que meu marido estava no quarto do rei e que não lhe fariam nenhum mal. Depois cobriu-me com um manto e acompanhou-me ao quarto de minha irmã, a duquesa de Lorena, aonde cheguei mais morta do que viva. Ao entrar na antecâmara, que estava com as portas escancaradas, vi um gentil-homem de nome Bourse, perseguido pelos arqueiros, quedar atravessado por uma alabarda, a três passos de mim. Caí semidesfalecida nos braços de Monsieur de Nançay e pensei que a alabarda tinha trespassado nós dois. Quando me recompus um pouco, entrei no quartinho aonde dormia minha irmã. Enquanto eu estava ali, Monsieur de Miossens, primeiro gentil-homem do rei meu marido, e Armagnac, seu primeiro camareiro, vieram rogar a mim que salvasse a vida deles. Atirei-me aos pés do rei e da rainha minha mãe para pedir essa graça, que por fim me foi concedida (apud CRAVERI, 2007. P. 66-67).
A passagem citada acima se constitui no único relato de um membro da família real acerca dos eventos sangrentos ocorridos na França entre 23 e 24 de agosto de 1572. Porém, a autora não faz qualquer referência ao fato de que seu marido foi forçado a se converter ao catolicismo e que, apesar de ela ter conseguido salvar três vidas, milhares de huguenotes foram massacrados e seus cadáveres jogados no Rio Sena. Porém, talvez o conteúdo mais polêmico das Memórias de Margarida de Valois[2] seja as alegações de que ela teria sido molestada na infância por seu irmão e de que sua mãe fora a verdadeira artífice do São Bartolomeu. Como dissemos anteriormente, Margot tinha razões de sobra para se ressentir de sua família após ter sido banida da corte para o exílio. Nos 20 anos em que permaneceu à margem dos acontecimentos políticos da França, ela disse que “havia encontrado um prazer secreto”, durante seu confinamento, “na leitura de bons livros, a que me entregara com um deleite que nunca tinha experimentado. Considero isso uma obrigação que tenho para com a fortuna, a fim de me preparar, por meios tão eficazes, para enfrentar os infortúnios e calamidades que me aguardavam”. Com a ascensão de Henrique IV ao trono, seu casamento foi anulado e só então ela teve permissão para retornar à Paris com o título de Rainha de Jure, não de Facto.
As Memórias de Catarina, a Grande
Publicadas pela primeira vez em 1859, as Memórias de Catarina II da Rússia reúnem as reminiscências da soberana sobre seus tempos como princesa Sofia de Frederica Augusta de Anhalt-Zerbst, passando pelo casamento com o herdeiro do trono russo (quando se converteu à fé ortodoxa e mudou de nome para Yekaterina Alekseyevna), até os últimos anos do reinado da czarina Isabel. Parte propaganda pessoal, parte descrição do cotidiano da corte imperial, a obra contempla pelo menos 18 anos da vida da futura soberana na Rússia; os percalços e humilhações vivenciadas por ela nesse processo. No livro, Catarina nos conta:
Meu orgulho natural tornava intolerável a ideia de ser uma pessoa sofrida. Eu costumava dizer que a felicidade ou o sofrimento só dependiam de nós mesmos. Se a gente se sente infeliz, supere isso e aja de modo que a felicidade seja independente de todos os eventos externos. Nasci com esse temperamento e um rosto que era pelo menos interessante, que agradava à primeira vista, sem artifícios nem presunção. Meu temperamento era, por natureza, tão conciliatório que ninguém jamais passou um quarto de hora comigo sem se sentir perfeitamente à vontade e falando como se me conhecesse havia muito tempo. Ganhava a confiança de todos que tivessem algo a ver comigo porque todos sentiam que eu demonstrava honestidade e boa vontade. Se me permitem a franqueza, eu diria que era um verdadeiro cavalheiro, com a mente mais masculina que feminina mas, ao mesmo tempo, nada tinha de masculina e, junto com o caráter de um homem, eu possuía os atrativos de uma mulher adorável. Que me perdoem essa franca expressão de meus sentimentos em vez de tentar encobri-los com um véu de falsa modéstia.
Investigando os volumosos escritos de Catarina, a Grande, a acadêmica Monika Greenleaf disse que a imperatriz escrevia sobre si mesma, algo que os monarcas de seu tempo não pretendiam fazer. Memórias eram, segundo a pesquisadora, um “gênero curioso e íntimo, mesmo inapropriado” para um soberano. Catarina escreveu uma autobiografia no alvorecer do gênero, conforme o conhecemos hoje. Na sua opinião, a monarca precisava “se defender das muitas narrativas desagradáveis criadas após sua surpreendente ascensão ao trono”. Tornando-se uma “rainha estrangeira e usurpadora”, Catarina escreveu “um ataque preventivo contra os biógrafos e memorialistas que estavam ansiosos para contar sua história em seu lugar”.
Catarina II destinou suas reminiscências ao “filho irreparavelmente alienado”, Paulo. O futuro czar não gostava de sua mãe mais do que Catarina gostava do marido, que talvez não fosse o pai do príncipe. Tecnicamente, Paulo deveria ter se tornado imperador imediatamente após a morte de Pedro III, então Catarina foi vista por muitos como uma usurpadora. Greenleaf supõe que isso possa ter contribuído para sua decisão de manter seus escritos dentro de um cofre após sua morte, especialmente por seu conteúdo polêmico. Entre outras coisas, a autora afirmava que o herdeiro do trono não era filho do czar Pedro III[3]. No final, parece que “Catarina rompeu sua aliança com a esfera da publicidade e sacrificou suas memórias à família e ao interesse nacional. Podemos apenas especular que ela confiava na capacidade do arquivo de guardar segredos para a posteridade”. Mas o segredo vazou e suas reminiscências foram publicadas em meados do século XIX por Alexander Herzen, um revolucionário russo exilado em Londres. Traduzida para vários idiomas, as Memórias foram o assunto principal da Europa naquele período. Monika Greenleaf conclui: “Ela sabia que tinha escrito seu nome numa época, mesmo que a autobiografia não pudesse reter a história”.
Minha Própria História, por Luísa da Toscana (ex-princesa herdeira da Saxônia)
Quando publicado pela primeira vez em 1911, My Own History causou um verdadeiro frenesi entre o público de leitores. A reação não era para menos. Afinal, a arquiduquesa Luísa desmentia em seu livro várias acusações que foram feitas contra ela: de ter mantido um caso extraconjugal com o professor de francês de seus filhos e de ter fugido do Tribunal da Saxônia apenas para se divorciar, evitando assim a ameaça de internação em um asilo psiquiátrico e o despojo de sua herança paterna. “Como meus filhos estão agora se aproximando de uma idade em que as afirmações mentirosas em questão podem ser comunicadas a eles, é meu dever tornar públicas as verdadeiras razões que levaram ao meu banimento final”, escreveu a autora. Quando a publicação veio à lume, diz-se que a editora inglesa, Eveleigh Nash – com quem a princesa fez o acordo de publicação – recebeu uma boa quantia para retirar a obra do mercado. O New O York Times noticiou a resposta de Luísa: “Nem por um milhão”. Descrevendo a família Habsburgo sob um prisma hostil, ela diz: “Fomos entregues a tutores e governantas para sermos moldados nos padrões de comportamento mais aprovados. Nunca deveríamos questionar nada, mas apenas nos tornarmos autômatos inteligentes”. Durante a infância, Luísa revelou que “meu eu interior estava sempre lutando para dominar as formas e cerimônias externas”.
Tendo se casado com o príncipe Frederico Augusto da Saxônia em 21 de novembro de 1891, a arquiduquesa pinta a família real com cores bastante negativas. Seu sogro, o príncipe Jorge, é descrito como um “homem fanático e intolerante”, que “deveria ter vivido na época da Inquisição”. Já sua cunhada, a princesa Matilde, é vista como “uma solteirona odiosa”, cujos cavalos “tiveram que ser escolhidos com cuidado” para que não “desabassem sob seu peso”. Sobre a corte da Saxônia, ela emitiu uma opinião ainda menos lisonjeira: era composta por uma “coleção de seres humanos mais tacanhos, mal-intencionados e presunçosos que se possa imaginar”. Enxergando a si mesma como um pássaro cuco em um “ninho de pardais”, Luísa afirmou que encontrou conforto apenas no trabalho social: “Meu sonho de menina era ganhar o carinho de meus futuros súditos; e este é, talvez, o único sonho meu que já se tornou realidade”. Por seu caráter liberal, a princesa teria deixado seu sogro conservador bastante enfurecido. Após dar à luz 6 filhos, ela afirmou que sua presença era causa de aborrecimento para Jorge da Saxônia, que preferia vê-la “presa ou morta”. “Deixo o mundo para julgar quem foi mais cruel: uma mulher caçada e perseguida que lutou por sua liberdade, ou os inimigos inescrupulosos que a expulsaram do marido, de casa e dos filhos”.
A história de Minha Vida, da rainha Maria da Romênia
Em 1934, a rainha Maria da Romênia, princesa de Saxe-Coburgo-Gota, publicou sua autobiografia, The Story of My Life. Neta da rainha Vitória do Reino Unido, Maria foi a segunda criança nascida do casamento entre o príncipe Alfred, duque de Saxe-Coburgo-Gota, com a grã-duquesa Maria Alexandrovna da Rússia. Em 10 de janeiro de 1893, com quase 18 anos, ela se casou com o príncipe Fernando da Romênia, mais tarde rei. Com um estilo de escrita bastante informal e delicioso, Maria resolveu colocar no papel suas reminiscências acerca da infância, juventude, vida de casa e maturidade. “Durante toda a minha vida fui quase perigosamente sincera e não posso me afastar dessa sinceridade absoluta”, explica ela na introdução de seu livro. Conhecida por ser uma mulher glamorosa e muito talentosa, Maria da Romênia, a exemplo de sua tia Helene, escreveu não apenas Memórias, como também muita prosa e poesia. Naquele período, a rainha Vitória – a quem a neta se refere como a “querida vovó, com seus vestidos de seda preta parecidos com crinolina, seu boné branco de viúva, sua risadinha tímida e aquele pequeno encolher de ombros que se tornou quase um truque” – já havia parcialmente publicado seus diários sobre sua vida nas Terras Altas da Escócia.
Sendo assim, seguindo o exemplo da soberana inglesa, muitos membros de sua família também se dedicaram à atividade de anotar em diários passagens do cotidiano. O dever de memória se tornou uma prática constante entre a aristocracia da época, especialmente com as mulheres. Eram elas quem organizaram os álbuns de fotografias, registravam o crescimento dos filhos e mantinham o controle das despesas domésticas em cadernos. Nas suas Memórias, Maria da Romênia descreveu seu encontro com importantes personalidades do século XX, como Winston Churchill – “ruivo, sardento e atrevido, com um grande desdém pela autoridade” – e suas impressões sobre a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa, que ceifaram as vidas de muitos de seus parentes[4]. Sobre seu primo, o kaiser Guilherme II da Alemanha, ela disse: “Ele gostava de assumir aquela atitude de tirano ou déspota, nunca deixava você esquecer que ele era o primeiro”. Comportamento oposto tinha o czar Nicolau II da Rússia, casado com a prima de Maria, Alexandra Feodorovna: “Algo parecia derreter no coração quando alguém olhava para ele”. Para a monarca, a czarina, com sua devoção cega por Rasputin, fora a verdadeira responsável pelo declínio da dinastia Romanov em 1917.
Com efeito, as preferências literárias da rainha Maria não agradavam a outros membros de sua família. Em vez de manuais da boa esposa ou romances água com açúcar, ela gostava de obras mais inteligentes, como as da escritora Virgínia Woolf, autora do importante ensaio: Um teto todo seu, que discorre sobre as dificuldades de uma mulher escritora no início do século XX. A própria Woof fez uma resenha da obra de Maria da Romênia, na qual demonstrava certa preocupação com as revelações do livro, uma vez que sem o mistério da realeza, a monarquia dificilmente sobreviveria. “Graças à sua caneta, ela conquistou a liberdade. Ela não é mais uma rainha em uma gaiola. Ela percorre o mundo, livre como qualquer outro ser humano para rir, repreender, dizer o que quiser”, disse Virgínia sobre The Story of My Life. “Mas quais serão as consequências se essa familiaridade entre eles e nós aumentar? Podemos continuar fazendo reverências e reverências para pessoas que são iguais a nós?”. Ao longo de sua vida, a soberana escreveu 34 livros e contos, tanto em inglês quanto em romeno. Seu aclamado livro de Memórias foi publicado pela primeira vez em 3 volumes pela editora Cassell, de Londres. Seus diários, por sua vez, só chegaram ao mercado literário postumamente, em 1996.
Princesa – A História Real Da Vida Das Mulheres árabes Por Trás De Seus Negros Véus
Princesa, obra publicada em 1992, trás em sua capa uma incógnita: quem seria a autora? A princesa saudita que assina a obra apenas como “Sultana” explica para o leitor o motivo de não divulgar seu nome verdadeiro: “Como mulher em uma terra governada por homens, não posso falar diretamente com você. Pedi a um amigo e escritor americano, Jean Sasson, que me ouvisse e depois contasse minha história. Eu nasci livre, mas hoje estou acorrentada”. Assim que foi publicado, o livro permaneceu por 13 semanas na lista dos mais vendidos do New York Times e teve várias sequências. O escritor Sasson utilizou a história da “Sultana” como exemplo para denunciar os abusos pelos quais as mulheres no Oriente Médio eram e são submetidas. A franquia acabou se transformando em uma verdadeira indústria, graças às narrativas envolvendo personalidades femininas como a princesa Haya de Dubai. Nas páginas em branco, elas encontravam um local seguro e anônimo para expor suas atribulações. Embora tenha sido acusando de xenofobia, plágio e até mesmo de ter inventado a personagem da Sultana, Jean Sanson insiste que ela é uma pessoa real e que seus livros são compostos com base em anotações, diários e depoimentos dela e de membros de sua família. A edição mais recente da saga, Princess: Stepping out of the Shadows, foi lançada em 2018.
Diana: sua verdadeira história em suas próprias palavras
Em 1991, quando a vida conjugal do casal de Gales era mantida apenas na aparência, a princesa Diana resolveu embarcar em um projeto ousado. Ela queria que o público soubesse sua versão sobre a verdade por trás da fachada da vida na família real britânica. Ao saber que o jornalista Andrew Morton, que até então havia publicado matérias muito simpáticas à sua pessoa, estava escrevendo uma biografia sobre ela, Diana decidiu colaborar com o livro. Numa série de conversas secretas, gravadas por seu amigo, o Dr. James Colthurst, a princesa de Gales se recordou de vários momentos de sua infância e dos traumas que vivenciou nessa fase da vida, como a separação dos pais e partida da mãe. Porém, mais impactante foram as revelações feitas em seguida ao matrimônio com o príncipe Charles. Um a um, Diana foi derrubando os pilares daquele que foi chamado pela mídia de “o casamento do século”, apresentando o herdeiro da Coroa como um homem mesquinho, egoísta e adúltero. Desde a semana da lua de mel, Diana contou que a sombra de Camilla Parker Bowles pairou sobre o casal, minando sua confiança e arrastando Charles para fora do teto doméstico. Mais preocupante ainda eram as alegações de que a biografada havia tentado se suicidar pelo menos cinco vezes e de que ela desenvolveu bulimia em decorrência das pressões da vida na realeza:
Atirei-me escada abaixo [em Sandringham]. Charles disse que foi uma encenação, eu disse que me sentia muito desesperada e chorava muito, e ele disse: “Não vou dar ouvidos a você. Você está sempre fazendo isso comigo. Vou andar a cavalo agora.” Então, atirei-me escada abaixo. A rainha [Elizabeth Bowes-Lyon, a rainha-mãe] apareceu, absolutamente horrorizada, tremendo – ela estava muito apavorada. Eu sabia que não ia perder o bebê; fiquei bastante machucada ao redor da barriga. Charles saiu para andar a cavalo e quando voltou, sabe, foi apenas rejeição, rejeição total. Ele simplesmente saiu pela porta (apud MORTON, 2013, p. 53).
Em carta escrita para Andrew Morton, a princesa disse: “Obviamente, estamos nos preparando para a erupção do vulcão e me sinto mais bem equipada para lidar com o que quer que apareça em nosso caminho!”. Em seguida, o agradeceu pela oportunidade de poder contar sua versão dos fatos: “Obrigado por acreditar em mim e por se dar ao trabalho de entender essa mente – é um alívio não estar mais sozinha e que está tudo bem comigo”. Quando os primeiros capítulos de Diana: sua verdadeira história foram publicados em jornal no verão de 1992, a princesa negou seu envolvimento na escrita do livro. A obra ficou por 18 semanas na lista dos mais vendidos do New York Times e foi apelidada nos anos seguintes de “a mais longa petição de divórcio na história britânica”. Sobre o confronto com a amante do marido em uma festa, a princesa de Gales se recordava:
Perguntei à Camilla: “Você gostaria de se sentar?” Então nos sentamos, e eu estava paralisada de medo, mas disse: “Camilla, só gostaria que você soubesse que sei exatamente o que acontece você e Charles, não nasci ontem.” Alguém foi enviado, obviamente para nos apaziguar: “Vá lá embaixo, elas estão brigando.” Não era uma briga. Calma, extremamente calma, eu disse a Camilla: “Lamento que eu seja um obstáculo, obviamente sou um obstáculo e deve ser um inferno para vocês dois, mas sei o que está acontecendo. Não me trate como uma idiota.” Então, subi e as pessoas começaram a se dispersar (apud MORTON, 2013, p. 72).
Por outro lado, Diana não registra as respostas de Camilla às suas perguntas, ou se ela teria ficado calada, o que demonstra claramente o processo de seleção das lembranças por parte daquela que se recorda. Após a separação oficial do casal de Gales, em dezembro de 1992, Charles embarcou num projeto semelhante em resposta ao livro Diana. Visando reparar sua imagem junto ao público, ele lançou uma biografia e um documentário em parceria com o jornalista Jonathan Dimbleby, no qual confirmou publicamente seu adultério. Alguns meses depois da morte da princesa, em 1997, Andrew Morton lançou a versão definitiva de seu livro, contendo a transcrição das fitas gravadas com o depoimento de Diana[5]. A publicação de Diana: sua verdadeira história em suas próprias palavras foi um verdadeiro divisor de águas na história da família real britânica e, principalmente, do reinado de Elizabeth II.
Notas:
[1] É preciso acrescentar que Margot não foi a primeira mulher da realeza a escrever suas Memórias. Sabe-se que na antiguidade, a imperatriz de Roma, Agrippina (a Jovem), mãe de Nero, também compôs um texto de cunho autobiográfico, embora o documento tenha se perdido com o tempo.
[2] As Memórias de Margarida de Valois foram publicadas postumamente em 1628, 13 anos após sua morte, em 1615.
[3] Só podemos imaginar as razões de Catarina para ter feito tal alegação. Suas Memórias eram, antes de tudo, um documento político que poderia ser utilizado contra o czarevich Paulo no futuro. Caso ele se voltasse contra a mãe e reivindicasse o trono, Catarina poderia alegar que ele nunca fora filho do imperador e que, portanto, não podia exigir a Coroa com base na linhagem paterna.
[4] As primas de Maria da Romênia, Elizabeth e Alexandra Feodorovna, foram executadas na Revolução Russa, assim como as filhas, o filho e o marido de Alix, o czar Nicolau II.
[5] As gravações com a voz de Diana foram depois utilizadas em um documentário da National Geographic, Diana: In Her Own Words (2016).
Referências Bibliográficas:
CRAVERI, Benedetta. Amantes e rainhas: o poder das mulheres. Tradução de Eduardo Brandão. – São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 2ª ed. São Paulo: Ed. Centauro, 2013.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução de Bernrado Leitão. – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1994.
MEARES, Hadley Hall. From Catherine the Great to Princess Diana, a Brief History of Royal Tell-Alls. 2020 – Acesso em 19 de maio de 2021.
MORTON, Andrew: Diana – sua verdadeira história em suas próprias palavras. Tradução de A. B. Pinheiros de Lemos e Lourdes Sette. 2ª ed. Rio de Janeiro: Best Seller, 2013.
PACKARD, Jerrold M. Victoria’s daughters. New York: St. Martin Press, 1998.
TAPIOCA NETO, Renato Drummond. Catarina a Grande por ela mesma: as memórias secretas de uma imperatriz. 2019 – Acesso em 19 de maio de 2021.
Fabulosos textos que nos dão a conhecer os dramas e as misérias emocionais de rainhas , princesas , czarinas , grandes mulheres da História que ficaram na memória coletiva .
CurtirCurtir