Sofia de Anhalt-Zerbst poderia ter sido mais uma princesa prussiana esquecida pela história, caso ela não tivesse se casado em 1745 com um descendente de Pedro, o Grande. Seu marido de ascendência alemã, pró-prussiano, herdou o trono da Rússia em 1762, tornando-se o czar Petro III. Sofia já tinha se convertido à fé ortodoxa, adotado um nome russo (Yekaterina Alekseyevna), e aprendido a falar o russo. Durante os seis meses do reinado de seu marido, ela liderou um golpe de Estado contra ele, que foi assassinado ou acidentalmente morto. Como imperatriz Catarina II, ela governou a Rússia até sua morte, em 1796. Tornou-se mais conhecida como Catarina, a Grande.
Investigando os volumosos escritos de Catarina, a Grande, a acadêmica Monika Greenleaf conta que a imperatriz escrevia sobre si mesma, algo que os monarcas de seu tempo não pretendiam fazer. Memórias eram, de acordo com Greenleaf, um “gênero curioso e íntimo, mesmo inapropriado” para um monarca:
Representações reais tradicionalmente confiavam na pompa religiosa e militar, arquitetura, arte mitológica e alegórica, e o teatro heroico, para transmitir sua autoridade divinamente concedida. Catarina era uma mestre em todas essas formas visuais de representação simbólica e teatral.
Catarina escreveu uma autobiografia no alvorecer do gênero, conforme o conhecemos hoje. Greenleaf acrescenta que ela precisava “se defender das muitas narrativas desagradáveis que criadas após sua surpreendente ascensão”. Tornando-se uma “rainha estrangeira e usurpadora”, Catarina escreveu “um ataque preventivo contra os biógrafos e memorialistas que estavam ansiosos para contar sua história em seu lugar”.
“Autobiografia talvez seja o principal gênero no sistema narrativo iluminista”, disse Greenleaf. “Uma prova estritamente verbal do poder de raciocínio individual para superar os obstáculos externos, examinar sua própria consciência e apresentar uma visão unificada da vida em razão do público.” Quando Catarina começou a escrever sobre sua vida, os grandes modelos de Rousseau, Boswell, Franklin e Hume ainda não existiam. Ao término, seus escritos foram enterrados nos arquivos de Estado por mais de meio século, levando algum tempo para que seu trabalho pioneiro fosse reconhecido.
Catarina destinou suas memórias para seu “filho irreparavelmente alienado”, o herdeiro Paulo. O futuro czar Paulo não gostava mais de sua mãe do que Catarina gostava do marido, que talvez não fosse o pai do príncipe. Tecnicamente, Paulo deveria ter se tornado czar imediatamente após a morte de seu pai, então Catarina era vista por muitos como uma usurpadora. Greenleaf supõe que isso possa ter contribuído para sua decisão de manter seus escritos em um cofre após sua morte.
Talvez a supressão de seu passado (e a ruptura dinástica contida nele) tenha sido um ato de restituição a Paulo, tanto tempo afastado de seu próprio futuro real. Talvez Catarina reconhecesse que seus contos sobre cativeiro feminino, dissimulação principesca, abuso conjugal e autogeração andrógina deixariam de gerar o mito unificador da identidade nacional russa que os tempos exigiam.
No final, escreve Greenleaf, parece que “Catarina rompeu sua aliança com a esfera da publicidade e sacrificou suas memórias à família e ao interesse nacional. Podemos apenas especular que ela confiava na capacidade do arquivo de guardar segredos para a posteridade”.
Mas o segredo vazou, e suas memórias foram publicadas pela primeira vez em 1859 por Alexander Herzen, o revolucionário russo exilado em Londres. Traduzida para vários idiomas, as Memórias foram o assunto da Europa. Greenleaf conclui: “Ela sabia que tinha escrito seu nome numa época, mesmo que a autobiografia não pudesse reter a história”.
Leia abaixo alguns trechos das Memórias de Catarina II da Rússia:
Sobre a vida e sobre si mesma:
Meu orgulho natural tornava intolerável a ideia de ser uma pessoa sofrida. Eu costumava dizer que a felicidade ou o sofrimento só dependiam de nós mesmos. Se a gente se sente infeliz, supere isso e aja de modo que a felicidade seja independente de todos os eventos externos. Nasci com esse temperamento e um rosto que era pelo menos interessante, que agradava à primeira vista, sem artifícios nem presunção. Meu temperamento era, por natureza, tão conciliatório que ninguém jamais passou um quarto de hora comigo sem se sentir perfeitamente à vontade e falando como se me conhecesse havia muito tempo. Ganhava a confiança de todos que tivessem algo a ver comigo porque todos sentiam que eu demonstrava honestidade e boa vontade. Se me permitem a franqueza, eu diria que era um verdadeiro cavalheiro, com a mente mais masculina que feminina mas, ao mesmo tempo, nada tinha de masculina e, junto com o caráter de um homem, eu possuía os atrativos de uma mulher adorável. Que me perdoem essa frança expressão de meus sentimentos em vez de tentar encobri-los com um véu de falsa modéstia.
Sobre o relacionamento com o marido, Pedro III:
Nunca duas mentes se pareceram menos. Nada tínhamos em comum em termos de gosto ou modo de pensar. Nossas opiniões eram tão diferentes que nunca teríamos concordado sobre coisa alguma se eu não cedesse frequentemente a fim de não afronta-lo muito obviamente. Eu já vivia inquieta demais, e esse desassossego era aumentado pela vida horrível que eu tinha de levar. Era constantemente deixada sozinha e a suspeita me rondava por todos os lados. Não havia divertimento, nem conversas, nem gentileza, nem atenção que ajudasse a aliviar meu fastio. Minha vida se tornou insuportável (apud MASSIE, 2013, p. 126).
Fontes:
JSTOR – Acesso em 24 de março de 2019.
MASSIE, Robert K. Catarina, a Grande: retrato de uma mulher. Rio de Janeiro: Rocco, 2012.
Gostei muito desse posts. Valiosas informações
CurtirCurtir
Verifico, com.muita frequência, que as mulheres, as rainhas, casadas muito assiduamente por interesses políticos, descrevem sua vida privada como “um inferno”, “um desastre”; outra dizia que sua morte teve início no dia em que se casou. Que triste, isso, né? Que tantas mulheres tenham servido aos interesses masculinos por tanto tempo, sem.nenhum pudor . Viva a luta feminina!
CurtirCurtir