Por: Renato Drummond Tapioca Neto
Na segunda-feira, dia 1 de maio de 1536, um torneio tradicional de justa era comemorado diante do rei e da rainha da Inglaterra. Inesperadamente, Henrique VIII recebeu uma mensagem e abandonou sua esposa no camarote real. Nunca mais voltariam a se ver. No dia seguinte, Ana Bolena foi presa em Greenwich e levada à presença de um conjunto de comissários, liderados por seu tio, o duque de Norfolk, para ouvir uma série de acusações hediondas contra si. Nas semanas anteriores, um inquérito havia sido instaurado para averiguar se a rainha teria cometido adultério com homens da câmara real, incluindo o próprio irmão, George, e conspirado para assassinar o soberano. Horrorizada diante daquela situação, Ana não teve escolha exceto seguir a comitiva pelo Tâmisa até a Torre de Londres. A travessia de quase duas horas aconteceu em um clima bem diferente de outra ocasião mais auspiciosa, ocorrida três anos antes, quando a rainha navegou por aquele trajeto durante o processo cerimonial de sua coroação. Ao avistar os pináculos do edifício de onde tantas pessoas tinham desaparecido ou sido enviadas para a morte, a passageira começou a ficar nervosa. “Da última vez em que estive aqui fui recebida com maior cerimônia”, se queixou aos condutores.

Ana Bolena se ajoelha para fazer uma oração assim que desembarca na Torre de Londres.
Por séculos, a Torre de Londres serviu como uma fortaleza onde eram armazenadas as joias da Coroa e onde os monarcas passavam sua última noite antes de serem coroados na Abadia de Westminster. Porém, o edifício servia também como prisão para pessoas acusadas de traição. Ao desembarcar, Ana Bolena foi recebida pelo guardião do lugar, Sir William Kingston, um homem conhecido pela sua complacência. Ele tentou consolar a prisioneira, dizendo-lhe que ela não seria encarcerada numa masmorra e sim nos mesmos aposentos que ela ocupara antes da coroação. Ao saber dessa notícia, Ana se sentiu um pouco mais aliviada. Com lágrimas no rosto, ela se ajoelhou dizendo: “eles são bons demais para mim”. Em seguida, seu pranto se misturou com uma gargalhada sinistra, o que demonstrava seu estado de nervos ante daquela situação. Devemos a Kingston quase todos os registros do confinamento de Ana Bolena na Torre até o dia de sua execução, em 19 de maio. Ele havia sido incumbido pelo secretário do rei, Thomas Cromwell, de registrar qualquer fala comprometedora ou desvio de comportamento que pudesse ser utilizado no julgamento da rainha, marcado para o dia 15. Provavelmente, ela sequer sabia que outros homens e seu irmão também estavam presos ali.
Ao cruzar a porta do pátio interno, Ana Bolena sentiu suas forças vacilarem e tombou de joelhos. Na presença de todos, ela fez uma prece em voz alta, pedido a Deus que viesse em seu auxílio, “pois não era culpada do que a acusavam”. Depois, se dirigiu aos lordes de sua escolta, implorando-lhes para que falassem ao rei em seu nome, pedindo para que ele “fosse bom para ela”. Terminada esta cena, Ana foi possivelmente instalada na ala interna ao sul da Torre Branca, onde ficavam os aposentos reais. Noite e dia, a detenta era vigiada por quatro ou cinco damas de companhia, que deveriam relatar a Sir William Kingston todos os seus movimentos. De quando acordava até o momento em que se deitava para dormir, Ana Bolena era assistida por aquelas mulheres. Conforme ressalta Antonieta Fraser:
Agora a rainha parecia ter sucumbido por completo. […] Kingston comunicou a Cromwell que ela ficava alternando entre acessos de choro e de riso, tal como fizera na primeira recepção na Torre. As frases tornavam-se irrefletidas e incoerentes, mais parecendo delírios do que a elegante conversa inteligente com a qual outrora ela conquistara o rei (FRASER, 2010, p. 329).
Vivendo em constante estado de tensão desde as semanas passadas, quando pressentia que o cerco estava se fechando ao seu redor, Ana Bolena deu vazão a todos os seus sentimentos reprimidos, ora chorando, ora rindo e debochando da situação. Assim que ela descobriu que outros amigos como Sir Henry Norris, seu irmão George Bolena e seu tocador de alaúde, Mark Smeaton, também estavam presos, ela começou a ficar mais nervosa e a dizer palavras desconexas. As expressões da rainha foram atentamente escutadas pelas damas que lhe faziam companhia nos aposentos reais e depois repassadas para William Kingston.
Embora o guardião da Torre tenha desencorajado as damas da rainha de manterem qualquer tipo de diálogo com a prisioneira, isso não impediu que Ana mencionasse certos acontecimentos envolvendo outras pessoas. A primeira informação adquirida a partir do colapso nervoso da ranha foi a história de Henry Norris. Ela disse que o cavaleiro frequentava seus aposentos para fazer a corte à sua prima, Margaret Shelton. Impaciente com o atraso de Norris em fazer o pedido, Ana cometeu a imprudência de dizer: “você procura pelo rastro de um homem morto; pois se algo além de bom acontecer ao rei, você procuraria me ter”. Horrorizado diante de tal declaração, Norris disse que preferiria ter sua cabeça decepada em vez de adotar uma conduta tão indigna. O conteúdo dessa conversa era explosivo não por causa da resposta de Sir Henry, mas pela reação agressiva da rainha. A frase de Ana: “se algo além de bom acontecer ao rei, você procuraria me ter”, foi interpretada por seus algozes como indício de um desejo pessoal da soberana pelo pretendente de sua prima. A situação ficou ainda pior quando ela mencionou o nome de Francis Weston, a quem a rainha havia repreendido um ano antes por negligenciar sua própria esposa ao flertar com Lady Shelton.

Litogravura de 1868, representando Ana Bolena sendo vigiada na Torre por sua damas de companhia.
Como Sir Francis já era casado, Ana queria que ele parasse imediatamente com aquele jogo de amor cortês e deixasse o caminho livre para que Sir Henry Norris propusesse casamento a Margaret. Weston, por sua vez, respondeu à rainha de que Norris vinha à sua câmara mais para vê-la do que à noiva. A parte mais perigosa dessa conversa, porém, veio a seguir: Francis declarou que estava apaixonado por alguém no séquito da soberana que não era nem sua esposa, ou Lady Shelton. “Quem é ela?”, perguntou Ana. “É você mesma”, ele respondeu. O conteúdo desse diálogo, que em outra ocasião poderia ser parte de um mero jogo de amor cortês, foi evidência suficiente para que o secretário Cromwell ordenasse a prisão de Sir Francis. Outro nobre encarcerado na Torre foi Sir William Brereton, um membro da câmara privada do rei e que partilhava da intimidade do soberano. Assim como os outros, ela fazia parte da facção dos Bolena, que se tornou inimiga de Thomas Cronwell. Com efeito, muitos historiadores atuais especulam se a prisão e execução de Ana Bolena e dos cinco homens condenados de traição com ela, não teria sido o resultado de uma disputa entre partidos rivais na corte. Um constantemente trabalhando para derrubar o outro.
Todas essas palavras ditas por Ana Bolena em momentos de devaneio foram caprichosamente anotadas pelas mulheres a quem ela chamava de suas carcereiras. Uma delas era sua tia, Lady Shelton (mãe de Margaret). Ao lado dela estavam Lady Kingston, esposa do guardião da Torre, Margaret Coffin, casada com o estribeiro-mor da rainha, e uma certa mulher conhecida como Stoner. Das quatro, era Lady Coffin quem compartilhava o quarto de dormir com a prisioneira, enquanto as outras a assistiam em suas tarefas diárias. Alternando entre momentos de desvario e sanidade, Ana se preocupava com o processo que estava sendo montado contra sua pessoa. Ela não fazia ideia do conteúdo exato das acusações e se preocupava com os homens que haviam sido aprisionados por sua causa. Segundo Antonia Fraser:
O que era muito amedrontador para a rainha, conspirando, como a sua saúde e o choque de sua prisão, para produzir desabafos desconexos, era a cabal intimidade dos cargos que aqueles que tinham sido presos tinham na corte. Havia uma história constante de encontros reservados com os quatro homens – Smeaton, Norris, Weston e Brereton –, que foram julgados primeiro. Como não poderia haver? E em encontros reservados havia galanteria – o tipo de galanteria romântica, mas não consumada a que o rei animadamente se permitia desde o início do seu casamento e que, seguindo o exemplo dele, fazia parte do costume de uma corte da Renascença. Num certo sentido, tais envolvimentos eram uma forma tradicional de passar o tempo durante as intermináveis festividades da corte, muito parecida com a justa – só que, durante aqueles duelos, os homens enristavam cortesmente lanças contra as mulheres, e vice-versa. A poesia, a música e a dança eram inseridas no tecido de tais “torneios”, sequiosas declarações de amor, talvez juras, suspiros, mas não sexo – e, é claro, nada tão especificamente perigoso como sexo com a mulher do rei (FRASER, 2010, p. 331).
Eric Ives (2010) acredita que esse jogo de amor cortês teve um papel fundamental na queda de Ana Bolena. O intercurso envolvendo as declarações apaixonadas de um cavalheiro e a recusa de uma dama fazia parte da tradição cortesã europeia no período do Renascimento. Ana aprendeu as táticas do amor cortês enquanto vivia na corte de França, servindo como dama de companhia da rainha Claudia de Valois. Ao voltar para a Inglaterra, ela flertava com poetas como Thomas Wyatt (que também foi preso na Torre, mas não executado), Henry Percy, conde de Northumberland, e o próprio rei. Uma brincadeira, que para muitos poderia ser vista como algo inocente, foi usada pelos agentes de Henrique VIII para formular a acusação de que a rainha tivera má procedimento com cinco homens, entre eles seu próprio irmão.

Litogravura colorida de Ana Bolena conversando com Sir William Kingston na Torre de Londres.
De todos os prisioneiros, apenas Mark Smeaton confessou ter mantido relações carnais com a rainha. “Ninguém confessa coisa alguma contra ela, com a única exceção de Mark”, escreveu Sir Edward Bayton. Kingston reportou a Cronwell uma conversa entre Ana e seu tocador de alaúde, na qual ela o reprimiu por ele se sentir preterido com relação aos outros cavalheiros do séquito real: “Você não pode esperar que eu me dirija a você como se fosse um homem nobre, porque você é uma pessoa inferior”. “Não, não, madame”, respondeu Smeaton. “Um olhar já é suficiente para mim, e assim lhe agrado”. A interpretação dessas frases, tal como as citadas anteriormente, foi deturpada pelos advogados do rei para fornecer evidência de que a rainha tinha uma relação com os membros masculinos da corte que ia além do protocolo. No dia 12 de maio de 1536, quatro dos cinco homens acusados de adultério com Ana Bolena foram condenados. Sua sentença era um indicativo de que a rainha dificilmente conseguiria se defender das injúrias envolvendo seu nome e que causaram a morte das outras pessoas. Três dias depois, ela e seu irmão, George Bolena, foram igualmente sentenciados. Ana deveria ser queimada ou decapitada, de acordo com a vontade do rei.
Em 17 de maio, os cinco prisioneiros foram executados, enquanto a rainha esperava sua morte para o dia seguinte. Devido a um atraso do carrasco, ela foi remarcada para o dia 19. Vivendo na expectativa de morrer a qualquer momento, Ana começou a demonstrar um comportamento mais oscilante do que antes. Em certas horas ela podia estar “muito alegre” e comer “um lauto almoço” e no momento seguinte se debulhar em lágrimas. Uma canção, cuja autoria é geralmente atribuída à prisioneira durante seus dias de confinamento, nos dá uma ideia de como seus pensamentos estavam assinalados pelo seu fim eminente:
Oh Morte, embala-me o sono/ Traz-me o repouso final/ Leva de mim o fantasma/ Que foi causa de meu mal/ Que o dobre do sino triste/ Anuncie a minha morte/ Que outro consolo não há…/ O meu nome foi manchado/ Com falsidade e rancor/ O conforto terminado/ Despedi-me do amor/ Que o dobre do sino triste/ Anuncie a minha morte/ Que outro consolo não há… (apud WEIR, 2020, p. 272).
Alison Weir (2010), no seu estudo sobre a queda de Ana Bolena, acredita que a canção possa de fato ter sido escrita pela rainha. Sua letra combina perfeitamente com o estado de espírito da prisioneira, reportado por Sir William Kingston para Thomas Cronwell. O poema foi posteriormente musicado por Robert Jordan, antigo capelão de Ana e traz algumas similaridades com o estilo literário de suas cartas e discursos.

Ana Bolena em sua cela na Torre de Londre, por William Nelson Gardiner.
De acordo com Kingston, em algumas vezes a rainha ficava ansiosa pela hora em que o carrasco finalmente colocaria fim aos seus sofrimentos. Mas, “no momento seguinte ocorria o contrário” e ela falava abertamente sobre entrar para um convento de freiras e “ter esperanças de viver”. No dia 17, ela recebeu em seus aposentos a visita do Arcebispo de Canterbury, Thomas Cranmer, que ouviu sua última confissão e lhe informou acerca do decreto de nulidade do casamento real. “Jamais tive melhor opinião sobre uma mulher do que tive sobre ela, o que me faz pensar que ela não deve ser culpada”, escreveu o arcebispo. Na manhã marcada para a execução, dia 19 de maio, o arcebispo declarou que dentro de instantes Ana se tornaria “uma rainha no céu”. Quando soube que o carrasco encarregado da tarefa era um espadachim vindo de Calais, a vítima se permitiu um gracejo: “ouvira dizer sobre a bondade do carrasco”, o que a agradava, uma vez que ela tinha “um pescoço fino”. Segundo Kingston, “na hora da morte”, a rainha podia “declara-se uma mulher boa para todos os homens”, exceto para o rei. Foi assim, com um espírito “alegre, como se não fosse morrer”, que Ana se dirigiu altivamente para o palco onde o último ato de sua vida seria dramatizado.
Referências Bibliográficas:
FRASER, Antonia. As seis mulheres de Henrique VIII. Tradução de Luiz Carlos do Nascimento e Silva. 2ª ed. Rio de Janeiro: Best Bolso, 2010.
IVES, Eric W. The life and death of Anne Boleyn: ‘the most happy’. – United Kingdom: Blackwell Publishing, 2010.
NORTON, Elizabeth. The Anne Boleyn Papers. UK: Amberley, 2013.
WEIR, Alison. The lady in the tower: the fall of Anne Boleyn. – New York: Ballantine Books, 2010.
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