“Madame Veto”: Maria Antonieta, a tomada do Palácio das Tulheiras e a perda do trono de Luís XVI – Parte II

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

O dia 20 de junho de 1792 foi uma das datas mais difíceis para Maria Antonieta e Luís XVI. Depois que o palácio das Tulheiras foi invadido e saqueado por uma turba de revoltosos, instigados pelos girondinos contra o poder do veto real, ficou evidente para os Bourbon que novos levantes populares como aquele poderiam se suceder. Antes que os deputados reunidos com rei fossem embora, por volta das 22h00, a rainha fez questão de lhes mostrar os estragos feitos pelos invasores nos aposentos do delfim: três portas foram destruídas a golpes de machado, fechaduras arrancadas e painéis rachados. O mesmo aconteceu no quarto da princesa Maria Teresa Carlota, que dava passagem para o do seu irmão. Os deputadas da Assembleia se mostraram particularmente constrangidos com o ocorrido e prometeram reparar todos os danos. Já a Guarda Nacional, que havia permitido a entrada da turba no palácio, ficou aparentemente envergonhada com o ocorrido e prometeu se opor firmemente a qualquer nova investida popular. Em seguida, o rei enviou uma carta à Assembleia, na qual dava conta dos acontecimentos transcorridos nos dia 20 e 21, acrescentando o seguinte: “Se neste momento aqueles que pretendem derrubar a monarquia têm necessidade de perpetuar mais um crime, podem bem faze-lo no estado em que ela se encontra” (apud TOURZEL, 2014, p. 355).

A família real refugiada na sala do Conselho. Pintura do século XIX.

Todavia, continuava Luís XVI: “o rei não deixará de dar, até ao último instante, a todas as autoridades constituídas, o seu exemplo de coragem e de firmeza que pode salvar o império…” (apud TOURZEL, 2014, p. 355). Apesar das garantias de segurança oferecidas pela Assembleia, a proclamação do monarca caiu em ouvidos moucos. Havia entre os deputados aqueles que desejavam a suspensão da aprovação real para certos decretos, enquanto a maioria deliberava pela segurança das pessoas e das propriedades e pela manutenção da ordem pública. Na sua correspondência com o conde Fersen, Maria Antonieta o fez saber que a posição dos soberanos na França era a mais terrível possível e que depositava suas esperanças na coligação estrangeira, liderada pelo duque de Brunswick. Em carta datada de 3 de julho, ela se dizia corajosa e confiante de que “em breve estaremos felizes e salvos. Somente essa ideia me sustem” (apud LEVER, 2004, p. 308). Naquela época, o duque preparava “um manifesto enérgico, em nome das potências aliadas, que consideraria a França inteira, e particularmente Paris, responsável pela família real”, conforme revelou o conde sueco em resposta à rainha (apud LEVER, 2004, p. 308). Quando o conteúdo desse manifesto caiu nos ouvidos da população de Paris, ele surtiu como o efeito de uma bomba explodindo contra os Bourbon.

Em face da magnitude da ameaça, a Assembleia Nacional declarou “a nação em perigo”, o que resultou numa mobilização em massa contra os déspotas estrangeiros e o rei, acusado de ser seu cúmplice. De repente, membros da Guarda Nacional e dos departamentos federados afluíram em grande quantidade para a capital, dispostos a rechaçar o inimigo e, se fosse o caso, acabar de vez com a monarquia. À medida em que o dia 14 de julho, aniversário da Revolução, se aproximava, Maria Antonieta temia cada vez mais pela vida do rei. Ela mandou confeccionar um colete de metal, que o marido deveria usar como proteção contra facadas. Conforme se recorda Madame Campan:

Contra a sua vontade, eu fizera também para a rainha um corpete semelhante ao colete do rei; contudo, Sua Majestade recusou-se a usá-lo, apesar das minhas súplicas e das minhas lágrimas. “Se os sediciosos me assassinarem – disse-me então – será uma felicidade para mim, visto que me livram da mais dolorosa existência”. Poucos dias depois de o rei ter experimentado o colete, cruzei-me com o nosso soberano numa escada e recolhi-me para o deixar passar. O rei parou e tomou a minha mão; quis beija-la, mas ele recusou; neste momento aproximou-se e beijou-me na face, sem articular uma única palavra. Esse silencioso testemunho de sua afeição perturbou-me de tal modo que muitas vezes pensei tê-lo sonhado, valendo-me então das minhas irmãs para me recordar que acontecera efetivamente, visto que lhes contara pouco depois de ter acontecido (CAMPAN, 2008, p. 268).

Luís XVI passando as tropas em revista, no dia 10 de agosto de 1792, por Yan Dargent et Furmeyer (1865).

Conforme crescia nas Tulheiras o temor de uma nova invasão, Luís XVI e Maria Antonieta separaram cuidadosamente os documentos que comprovavam sua ligação com as potências aliadas e queimaram quase todos aqueles papeis. No dia 14 de julho, uma multidão se reuniu no Campo de Marte para uma cerimônia patriótica que mais parecia a organização de um motim. Apenas uma fileira de guardas separava a família real do público. Quando o rei se colocou à frente da delegação da Assembleia, para reiterar seu juramento ao povo e à nação, foi então vaiado por um grupo de pessoas que gritavam a frase: “viver livre ou morrer” e “viva os sans-culottes e a Nação! Abaixo o veto!” (apud TOURZEL, 2014, p. 370).

Na ocasião, Maria Antonieta estava bastante aturdida, dentro de seu vestido branco bordado com ramos lilases, segurando a vontade de chorar enquanto sorria forçadamente. A ascensão dos sans-culottes com sua feroz retórica política, personificada por nomes como Jean-Paul Marat e Jacques Hébert, instigava a população a se livrar da família real por meios violentos, se fossem precisos. Ciente de tais riscos, o general Lafayette deixou o comando de suas tropas e se dirigiu a Paris, onde jurou lealdade ao rei. Ele se ofereceu para levar o monarca, sua esposa, irmã e filhos em segurança até Compiégine. Também foi mencionado o Château Gallon, na Normandia, onde o duque de Liancourt estava pronto para lhes oferecer proteção. De lá, poderiam seguir de barco até a Inglaterra e viver da hospitalidade do rei George III. Maria Antonieta, entretanto, dissuadiu o marido de aceitar tais planos. Depois de tudo pelo que tinham passado, ela não conseguia simplesmente confiar nas palavras de Lafayette, até então um general revolucionário. Em caso contrário, se a fuga fosse bem sucedida, ficariam devendo a liberdade a um homem que agira anteriormente contra a família real. Assim, a rainha preferiu aguardar a ofensiva dos exércitos austro-prussianos contra a França, sem suspeitar que o manifesto assinado pelo duque de Brunswick acarretaria na queda da monarquia.

As semanas seguintes foram particularmente tensas para os Bourbon. Fazia um calor insuportável e eles se permitiam passear pelos jardins do palácio para se refrescar. Mas, no final de julho, esse refrigério foi interrompido, pois todas as vezes em que Maria Antonieta e as crianças desciam para o pátio, uma multidão do lado de fora dos portões cantava os versos da “Ça Ira”: Ah! Ça ira! Ça ira! Ça ira! / Lês aristocrates a la lanterne  / Ah! Ça ira! Ça ira! Ça ira! / Les aristócrates, on de pendra! (Assim será! Assim será! Assim será! / Os aristocratas ao candeeiro / Assim será! Assim será! Assim será! / Os aristocratas enforcaremos!). Diante de tais impropérios, a família aos poucos abandou seus passeios pelos jardins. Boatos davam conta também de que a Assembleia pretendia retirar a guarda do delfim de seus pais e que uma regência seria implantada; outros, de que o rei havia enlouquecido e que corria desnorteado pelos corredores do palácio. Em vista de tais rumores, Maria Antonieta se mudou dos aposentos no andar térreo para quartos mais próximos aos do rei e do filho. Foi nesse contexto que o manifesto de Brunswick chegou a Paris, no dia 3 de agosto. Enfurecidos pelo conteúdo de texto, os parisienses exigiram a deposição e o julgamento de Luís XVI. O manifesto, que conclamava os cidadãos a proteger a família real, teve o efeito oposto.

Com efeito, até mesmo os cortesãos remanescentes em Paris pressentiram o perigo que se aproximava. Na missa de domingo, realizada no dia 5 de agosto, os derradeiros defensores da monarquia afluíram ao palácio, para jurar lealdade ao rei, como se o estivessem vendo pela última vez. A insurreição que derrubaria de vez o trono de Luís XVI foi preparada para o dia 10. Quando o soberano ficou sabendo de que a invasão às Tulheiras era iminente, cerca de 900 guardas suíços foram arregimentados, mais 900 gendarmes e 2000 soldados da Guarda Nacional, para proteger a família real. Eles passaram a noite do dia 9 refugiados nos apartamentos do rei, aguardando por notícias. Às 23h00, Roederer, prefeito da comuna, veio lhes avisar de que toda Paris estava amotinada. No geral, se acreditava que a superioridade bélica do rei acabaria por controlar a insurreição. Uma liderança fraca e indecisa, porém, minou as possibilidades de sucesso. Na madrugada, já se podia ouvir o rufar dos tambores dos insurretos, acompanhado do lúgubre dobrar dos sinos. Ninguém conseguiu dormir direito, exceto o rei, que se deitou vestido depois que o barulho cessou. Quando o dia 10 trouxe os primeiros raios de luz, a aurora revelou consigo a imagem de uma grande multidão, armada de canhões, se dirigindo ao palácio.

A tomada do palácio das Tulheiras, por Jean Duplessis-Bertaux (1793).

Orgulhosa e altiva, Maria Antonieta disse ao prefeito Roederer que aquela era a “hora de saber quem prevalecerá: o rei, a Constituição ou os rebeldes” (apud LEVER, 2004, p. 312). À medida em que o número de insurgentes se amotinava nos portões, Luís XVI, por sugestão da esposa, resolveu passar suas tropas em revista pelo pátio, caminhando desajeitadamente e dizendo algumas palavras pouco encorajadoras. A Guarda Suíça, fiel à causa monárquica, o aplaudiu, mas a Guarda Nacional vaiou o soberano, com gritos de “Abaixo o rei! Abaixo o veto!”. A rainha, que assistia a tudo isso da janela, começou a chorar. No início de agosto, ela refletiu privadamente que, para enfrentar os perigos em frente,

Eu poderia agir, e montar um cavalo se preciso fosse; mas se eu agisse, isso poria armas nas mãos dos inimigos do rei; um clamor geral se ergueria na França contra a mulher austríaca, contra a dominação feminina… Uma rainha que não é regente deve, em circunstâncias como estas, permanecer inativa e se preparar para morrer (apud WEBER, 2008, p. 277).

Ao se encaminhar para o lado do jardim das Tulheiras, no Terrasse du Bord l’Eau, Luís XVI se deparou com batalhões de guardas nacionais que lhe eram francamente hostis. Ali, foi descoberto por uma multidão de parisienses armados, que haviam conseguido entrar pelo lado oposto do jardim e se voltaram contra o rei, gritando-lhe insultos. O monarca só foi salvo graças à atitude de um grupo de ministros e funcionários leais, que o escoltaram para dentro do palácio, ao som dos gritos de “abaixo o porco gordo” vindos dos manifestantes.

De volta às Tulheiras, Luís XVI e sua família se refugiaram na Sala do Conselho. “Sua Majestade não tem um minuto a perder”, advertiu Roederer. “Só há segurança na Assembleia”. Diante do silêncio do monarca, Maria Antonieta tomou a palavra e disse que ela e seu marido não necessitavam da ajuda dos deputados e que preferiam ficar ali. “Se a senhora se opõe a essa providência, madame”, respondeu o prefeito, “a senhora será responsável pelas vidas de seu marido e de seus filhos” A soberana ficou estupefata de cólera, mas nada disse. Foi Luís XVI quem se levantou e tomou a decisão final: “Vamos. Já que iremos para a Assembleia, nada há a fazer aqui” (apud PRICE, 2007, p. 319). O rei queria se manter vivo, por quaisquer meios, sem se preocupar com quem lideraria suas tropas estacionadas no pátio das Tulheiras. Como resultado, a defesa do palácio se desintegrou, sob o comando do idoso general de Mailly. Os suíços, que tomaram a ofensiva, receberam os rebeldes a tiros. Estes, por sua vez, responderam com disparos de canhão. Enquanto faziam a defesa do palácio, chegou uma mensagem do rei, dizendo-lhes para cessar fogo. O que aconteceu em seguida foi um verdadeiro banho de sangue protagonizado pelos insurgentes, que massacraram as tropas rendidas do rei. Para os amotinados, eles não mereciam piedade, uma vez que tinham participado de um complô contrarrevolucionário.

Litogravura representando o massacre da Guarda Suíça pela Guarda Nacional.

Mais tarde, Maria Antonieta confidenciou a Madame Campan que teria sido melhor o rei ter permanecido nas Tulheiras, ao lado de suas tropas, em vez de abandonar o palácio e pedir refúgio na Assembleia. Ao chegar lá, Luís XVI disse: “Vim aqui para evitar um grande crime e acredito que não poderia estar mais seguro do que em vosso meio” (apud FRASER, 2009, p. 417). A rainha, pelo contrário, demonstrou durante todo aquele dia uma obstinação que faltou ao rei para resolver tal situação. Na opinião do historiador Munro Price:

Embora menos inteligente que Luís, Maria Antonieta instintivamente se mostrou mais à altura da situação. Ela sabia que aquele era o momento decisivo e que só uma demonstração clara de intenções poderia salvar a coroa. Uma vez que o marido tinha concordado em deixar as Tulheiras, apesar de seus insistentes esforços para dissuadi-lo do contrário, ela não podia contradizê-lo em público. No entanto, se a rainha, e não o rei, tivesse liderado a defesa do palácio, a história da França poderia ter sido outra (PRICE, 2007, p. 319).

Ao abandonar o palácio das Tulheiras com suas tropas entregues à morte, o rei reconhecia a sua redição ao se colocar sob a proteção da Assembleia. Os mortos e feridos daquele dia tiveram suas cabeças decepadas e expostas em estacas. Até hoje, é quase impossível calcular o número exato de mortes. De sua parte, a rainha nada podia fazer, exceto chorar pela perda da coroa de seu marido e filho. À noite, ela e a família foram levados para o convento dos Feuillants, onde descansaram um pouco. Três dias depois, os Bourbon eram escoltados até a Torre do Templo, um castelo medieval bastante insalubre, onde passariam a residir. No dia 19, as damas da rainha, Madame de Tourzel e a princesa de Lamballe foram encarceradas na prisão de La Force. Lamballe, cuja vida tinha sido dedicada inteiramente ao serviço de sua soberana, foi mais tarde assassinada e sua cabeça levada até a janela do quarto de Maria Antonieta no Templo. Conforme os dias passavam, o destino da família real permanecia em discussão na Assembleia, até que finalmente em 22 de setembro de 1792 os deputados deliberaram pelo fim da monarquia e pela proclamação da República. A partir de então, o rei e a rainha foram privados de suas prerrogativas reais e receberam tratamento condizente com as leis gerais da nação. No ano seguinte, esses dois símbolos vivos do regime deposto seriam sacrificados em prol do ideal revolucionário.

Referências Bibliográficas:

CAMPAN, Madame. A Camareira de Maria Antonieta: Memórias. Tradução de Carlos Vieira da Silva. Lisboa: Aletheia, 2008.

FRASER, Antonia. Maria Antonieta: biografia. Tradução de Maria Beatriz de Medina. 4ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2009.

LEVER, Evelyne. Maria Antonieta: a última rainha da França. Tradução de S. Duarte. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

PRICE, Munro. A queda da monarquia francesa. Tradução de Julio Castañon Guimarães. – Rio de Janeiro: Record, 2007.

TOURZEL, duquesa de. Memórias. Tradução de Carlos Vieira da Silva. – Lisboa, Portugal: Alêtheia Editores, 2014.

WEBER, Caroline. Rainha da moda: como Maria Antonieta se vestiu para a Revolução. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. – Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

ZWEIG, Stefan. Maria Antonieta: retrato de uma mulher comum. Tradução de Irene Aron. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

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