“Madame Veto”: Maria Antonieta, a tomada do Palácio das Tulheiras e a perda do trono de Luís XVI – Parte I

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

O verão de 1792 começou bastante quente na França. O clima no Palácio das Tulheiras, para onde o rei e a rainha haviam sido levados desde 1789, era particularmente de agitação e desconfiança. Depois do desastroso episódio da fuga de Varennes, em 20 de junho de 1791, a família real passou a ser vista com cada vez mais desconfiança pela população. Enquanto isso, as potências estrangeiras planejavam um ataque contra as tropas francesas na fronteira. O objetivo dos aliados seria acabar com a Revolução e reinstalar os Bourbon no seu trono absolutista. As Tulheiras viviam então cercadas de espiões, disfarçados de domésticos, entregadores e demais serviçais, de modo que Luís XVI e Maria Antonieta raramente conversam diante de pessoas desconhecidas, com receio de que seus segredos pudessem ser revelados para as mãos dos inimigos. Secretamente, a rainha conspirava, não apenas com o seu sobrinho, o imperador Francisco II, como também com o embaixador Mercy e o conde Fersen, que mediavam o apoio da Prússia contra os revolucionários. Incomodada com toda essa situação, Madame Isabel, a irmã do rei, se queixava do procedimento da cunhada com seus irmãos emigrados, os condes de Provence e d’Artois. “Aqui em nossa casa, é um inferno; não se pode dizer nada, mesmo com as melhores intenções”, disse Maria Antonieta sobre Madame Isabel em carta a Fersen (apud LEVER, 2004, p.302).

Último retrato para o qual Maria Antonieta, executado por Alexandre Kucharski (1791).

“Minha irmã é tão indiscreta e cercada de intrigantes que não há maneira de nos falarmos, senão passaríamos o dia brigando” (apud LEVER, 2004, p.302), concluía a soberana na sua missiva ao conde sueco, falando também das tensões que dominavam seu espírito naqueles derradeiros dias, antes que a Coroa francesa fosse definitivamente tirada da cabeça do seu marido. A Assembleia Nacional, por sua vez, exigiu que o rei ordenasse o retorno dos príncipes emigrados, especialmente os condes de Provence e d’Artois, que intensificavam seus ataques fora do país. Eles e os outros deveria voltar em dois meses, ou seriam acusados de traição e teriam seus bens confiscados. Os nobres que lhes davam abrigo no estrangeiro deveriam, por sua vez, expulsa-los. Não obstante, os padres refratários, ou seja, aqueles que se recusaram a jurar a Constituição, deveriam fazê-lo, sob o risco de serem deportados. Luís XVI, entretanto, fez uso do seu direito constitucional ao veto e não acatou as leis relativas aos príncipes emigrados e aos padres. A reação do monarca provocou raiva mesmo entre os mais moderados da Assembleia, principalmente os republicanos, que passaram a criticar o uso do veto. Em 20 de abril de 1792, uma declaração de guerra foi então aprovada contra o imperador, que recebeu o apoio do rei da Prússia e do duque de Brunswick, comandante-em-chefe dos exércitos aliados, que pretendia marchar sobre Paris e resgatar a família real.

Uma declaração formal de guerra, com efeito, era tudo o que Luís XVI e Maria Antonieta desejavam, na expectativa de que uma aliança entre as potências estrangeiras conseguisse sufocar a Revolução. À medida em que os exércitos franceses sofriam várias derrotas perante os aliados, a fúria popular ascendeu na forma de novos levantes em Paris. As baixas nas tropas nacionais eram atribuídas ao “comitê austríaco” das Tulheiras Em 18 de maio, todos os estrangeiros que viviam na capital foram presos e mantidos sob forte vigilância. Secretamente, Maria Antonieta conseguia passar informações importantes sobre os planos de ataque e defesa da França para o imperador, por intermédio do embaixador Mercy. Embora nenhuma prova que corroborasse essa informação tivesse chegado às mãos da Assembleia naquele momento (ela só apareceria tempos depois nos arquivos austríacos), falava-se abertamente de que os soberanos estavam traindo à nação. O medo de um retorno ao Antigo Regime, frente à delicada situação do exército francês, foi tão grande que insuflou as paixões patrióticas do povo. A situação ficou ainda mais crítica quando, em 13 de junho, Luís XVI fez uma mudança no ministério, demitindo o ministro do interior, Roland, juntamente com o ministro da Guerra, Servan, que foi substituído por Dumouriez.

Charles François Dumouriez, o novo ministro da guerra, era um general que mais tarde conseguiria notoriedade por vencer o exército prussiano na batalha de Valmy, em 20 de setembro de 1792. Convencida pelo marido, Maria Antonieta aceitou se encontrar com ele nos seus apartamentos, onde o recebeu com uma fisionomia bastante carrancuda e lhe disse as seguintes palavras, citadas na obra de Evelyne Lever (2004):

“Monsieur, o senhor é atualmente todo-poderoso, mas isso se deve à preferência das pessoas que destroem seus ídolos. Sua existência depende de sua conduta. O senhor deve saber que nem o rei, nem eu podemos aceitar as inovações da Constituição. Digo-lhe francamente: utilize a oportunidade da melhor maneira possível”. Imperturbável, Dumouriez replicou: “Madame, lamento o doloroso segredo que vossa majestade acaba de me confiar. Não o trairei; mas estou colocado entre o rei e a nação e pertenço a meu país. Permita-me dizer-lhe que que a salvação do rei, a sua e de seus augustos filhos está ligada à Constituição. Eu a estaria mal servindo, e a ele também, se lhe dissesse coisas diferentes” (apud LEVER, 2004, p. 305).

Irritada com as considerações de Dumouriez, Maria Antonieta declarou que para ela a Constituição não seria duradoura, o que só demonstra a percepção frágil que a rainha tinha sobre a situação política no país. Algo para o qual o próprio Dumouriez lhe chamou a atenção: “Acredite, madame, não tenho o menor interesse de iludi-la. Detesto o crime e a anarquia tanto quanto vossa majestade”. Pela sua experiência, ele ressaltou que estava em melhor posição do que Antonieta para avaliar os acontecimentos, fazendo-a saber também que “este não é um movimento popular passageiro, como parece pensar. É a insurreição quase unânime de uma grande nação contra abusos inveterados” (apud LEVER, 2004, p. 305). Sem se deixar amedrontar pelas declarações de Dumouriez, Maria Antonieta se apressou em relatar a Fersen e a Mercy tudo o que conseguiu saber sobre as disposições das tropas na fronteira, bem como o plano de ataque do comando militar.

Pintura do Palácio das Tulheiras, feita em 1757, por Nicolas-Jean-Baptiste Raguenet.

Sob os auspícios da rainha, a má preparada campanha francesa contra a Áustria nos Países Baixos foi um desastre. Como forma de retaliação, os girondinos exigiram que Luís XVI deportasse os padres refratários e criasse um corpo de soldados, chamados de federados, que permaneceriam de prontidão e armados nas províncias. O rei, por sua vez, vetou essas resoluções e muitos atribuíram a causa disso à rainha, que passou a ser alcunhada de “Madame Veto”. Naquele tempo, não era segredo a influência que Maria Antonieta exercia nas decisões do marido, chegando inclusive a falsificar a assinatura do mesmo em alguns documentos. À medida em que o dia 20 de junho (aniversário de um ano da fuga de Varennes) se aproximava, os girondinos começaram a organizar dois dias antes uma manifestação em massa, que tinha por objetivo a reintegração dos ministros demitidos pelo rei, retirar de Luís XVI o poder do veto e assim romper com a autoridade real remanescente. A Assembleia foi então invadida e cerca de 8 mil manifestantes armados com mosquetes se dirigiram ao ressinto, cantando e gritando slogans revolucionários. Quando o monarca enfim soube do que estava sendo planejado para aquela manhã, escreveu uma mensagem ao seu confessor no dia 19: “Não tenho mais nada a ver com os homens; conto com o Céu. Grandes infortúnios nos esperam amanhã; terei de ter coragem’ (apud PRICE, 2007, p. 306).

Com efeito, a família real esperou apreensiva nas Tulheiras pelo desenrolar dos acontecimentos. Era só uma questão de tempo até que a turba se dirigisse ao palácio. Eles finalmente chegaram às 4h00 da tarde, sem que a Guarda Nacional fizesse qualquer coisa para impedir sua entrada. Seguiram pela escadaria principal, arrastando consigo um canhão e então avançaram pelas salas do andar superior, onde encontraram o rei e Madame Isabel. Luís XVI os recebeu da forma mais cortês que a situação podia exigir de uma soberano naquelas condições. Colocaram-lhe um gorro vermelho na cabeça e o monarca brindou à saúde do povo da França. Enquanto isso, os sons das portas sendo rompidas com golpes de machado podiam ser ouvidos por Maria Antonieta e pelas crianças, que estavam refugiadas no quarto do delfim Luís Carlos. Os aposentos da rainha foram feitos em frangalhos e ela temia as mesmas desordens que se passaram no dia 6 de outubro de 1789, quando sua cama em Versalhes foi esfaqueada na ausência de seu corpo. Era seu desejo se unir ao marido, mas ela acabou sendo convencida do contrário. Seus servidores a fizeram ver que sua presença ao lado do rei só pioraria as coisas, em face das ameaças de morte que podiam ser ouvidas contra ela. Caso Luís XVI tentasse defende-la, o povo enfurecido poderia mata-lo. Madame Isabel, por sua vez, faz-se de isca ao lado do rei, para desviar o ódio dirigido contra a cunhada: “Não os desiludais, deixai-os pensar que sou a rainha…” (apud FRASER, 2009, p. 407).

Maria Antonieta confronta uma turba de revolucionários na sala do Conselho. onde uma mesa foi colocada diante dela em forma de barricada contra a multidão. Pintura do século XIX, por artista desconhecido.

Contudo, o povo não se permitiu enganar tão facilmente. Maria Antonieta e as crianças passaram em seguida para os quartos de dormir do rei e esperaram ali o que pareceu uma eternidade. À medida em que os gritos contra ela se intensificavam, a rainha decidiu encarar a turba de invasores. Sob a proteção de vários granadeiros e com Luís Carlos nos braços, ela se dirigiu para a sala do Conselho, onde uma mesa foi colocada diante dela em forma de barricada contra a multidão. O político Antoine-Joseph Santerre, que estava presente na ocasião, aconselhou a rainha a dispensar os granadeiros: “Madame, querem engana-la, o povo não pretende fazer-lhe nada de mal. Se madame quisesse, poderiam ama-la como a esta criança” (apud ZWEIG, 2013, p. 366).  Segundo o registro de Madame Campan, camareira-mor da rainha:

A soberana não conseguia chegar junto do rei; neste momento encontrava-se na sala do Conselho, atrás da grande mesa ali existente, a fim de se render da aproximação dos bárbaros assaltantes. Nessa pavorosa situação, Sua Majestade conservou a maior dignidade, segurando nas mãos o pequeno delfim, que sentara sobre a mesa. A seu lado encontrava-se madame, a filha, e também a senhora princesa de Lamballe e a princesa de Tarente, bem como as senhoras de La Roche-Aymon, de Tourzel e de Mackau. A rainha amarrara na cabeça uma insígnia tricolor dada por um dos guardas, enquanto o pobre pequeno delfim exibia na cabeça, tal como o soberano seu pai, um enorme barrete vermelho. A horda desfilou então pela frente da mesa, e os estandartes que trazia consigo constituíam o símbolo da mais negra barbárie. Um deles tinha desenhada uma forca, da qual pendia uma boneca; por baixo, via-se esta frase: “Maria Antonieta para a forca!”. Outro desses estandartes era formado por uma tábua sobre a qual estava um coração de boi e em volta a seguinte frase: “Coração de Luís XVI”. Por fim, num terceiro viam-se os cornos de um boi e uma frase obscena (CAMPAN, 2008, p. 265).

Nesse momento, Maria Antonieta teve que manter a maior calma possível, quando palavras injuriosas lhe eram atiradas e sua sexualidade era ridicularizada pela referência aos cornos do boi. Além disso, havia as ameaças de morte que eram feitas à sua família pelos símbolos da boneca enforcada e do coração do rei. Diante de tantas demonstrações de raiva, a soberana perguntou a uma das mulheres da turba se ela já a tinha visto alguma vez, ao que a interlocutora respondeu que não. Então a rainha perguntou novamente que mal a havia feito para lhe odiar tanto. “Sois vós quem fazeis a desgraça da Nação”, redarguiu a mulher. “Disseram-vos isso, mas enganaram-vos”, falou Maria Antonieta. “Esposa do rei de França e mãe do delfim, sou francesa e jamais voltarei para o meu país, pois jamais serei feliz ou infeliz senão em França; eu era muito feliz quando vós me amáveis”. Diante dessas palavras, a mulher com quem Antonieta travou esse diálogo então ponderou: “Tudo isto aconteceu porque eu não vos conhecia; vejo agora que sois muito bondosa” (apud CAMPAN, 2008, p. 265-6).

Durante todo aquele dia, Luís XVI tentou parlamentar com aqueles que exigiam que ele retirasse o veto. Apenas às 22h00 foi que os pátios e os jardins do palácio foram evacuados e os monarcas puderam enfim descansar e comer alguma coisa. Mas, uma vez que o povo havia descoberto como penetrar nas Tulheiras, era apenas uma questão de tempo até que invadissem o palácio novamente, quando uma nova instabilidade política insurgisse. Antes de dormir, a rainha escreveu ao conde Fersen: “Ainda estou viva, mas é uma milagre. O dia 20 foi terrível. Já não é contra mim que eles tem mais raiva, e sim contra a própria vida de meu marido; já não escondem mais”. Em seguida, ela preencheu as linhas com a narração dos presentes acontecimentos, enaltecendo a coragem de Luís XVI: “Ele demonstrou uma firmeza e uma energia que os impressionaram por enquanto, mas os perigos podem surgir novamente a qualquer momento” (apud LEVER, 2004, p. 308). Nesse pensamento, a rainha estava correta. Com a aproximação do dia 14 de julho, aniversário da Revolução, novos levantes populares eram esperados pela família real. Enquanto as forças aliadas no estrangeiro preparavam um manifesto contrarrevolucionário, o embate decisivo entre as forças do antigo e as do novo regime se fazia inevitável. A sorte da monarquia Bourbon dependeria de qual dos dois lados sairia vencedor.

Referências Bibliográficas:

CAMPAN, Madame. A Camareira de Maria Antonieta: Memórias. Tradução de Carlos Vieira da Silva. Lisboa: Aletheia, 2008.

FRASER, Antonia. Maria Antonieta: biografia. Tradução de Maria Beatriz de Medina. 4ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2009.

LEVER, Evelyne. Maria Antonieta: a última rainha da França. Tradução de S. Duarte. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

PRICE, Munro. A queda da monarquia francesa. Tradução de Julio Castañon Guimarães. – Rio de Janeiro: Record, 2007.

WEBER, Caroline. Rainha da moda: como Maria Antonieta se vestiu para a Revolução. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. – Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

ZWEIG, Stefan. Maria Antonieta: retrato de uma mulher comum. Tradução de Irene Aron. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

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