Por: Renato Drummond Tapioca Neto
“Encontrei uma mulher dominando sobre Sabá e a ela foi dado de tudo, possuindo um poderoso trono”, assim disse o pássaro hoopoe ao rei Salomão, num dos textos contidos no Alcorão (Sura 27:20). A história da famosa soberana já foi contada das mais diversas formas, principalmente em textos religiosos, considerados as únicas fontes disponíveis sobre sua vida. Ao longo dos séculos, a Arte e a Literatura se apropriaram da trajetória da rainha que teria viajado da Etiópia ou da Arábia para averiguar a sabedoria do lendário monarca bíblico. Mas, assim como ocorreu com Cleópatra VII do Egito, a figura de Sabá se cristalizou no imaginário moderno de forma bastante sexualizada. Os pintores do século XIX, por sua vez, a embranqueceram e lhe deram uma basta cabeleira loira e olhos claros. Hoje, sua narrativa permanece um mistério, assim como certamente o fora nos tempos antigos. Dada a ausência de outras evidências arqueológicas que comprovem sua existência, muitos pesquisadores consideram que ela não passa de uma lenda criada pelo autor do livro de I Reis, no Antigo Testamento. Contudo, o fato de a rainha de Sabá ser citada não apenas na Bíblia, como também no Targum Sheni, no Alcorão e no Kebra Negast, demonstra que sua fama era conhecida em diversas culturas pertencentes a povos localizados na África Oriental e na Península Arábica.

O rei Salomão e a rainha de Sabá numa iluminura do Speculum Humanae Salvationis (c. 1430).
Com efeito, seja na tradição islâmica ou etíope, os textos religiosos falam de uma mulher independente, governando um reino fabulosamente rico ao sul de Judá. A depender da fonte, seu nome pode aparecer como Bilqis ou Makeda, ou simplesmente rainha de Sabá. A localização exata dessa região é alvo de disputa entre os historiadores. Os que defendem que ela veio da Etiópia afirmam que a soberana governava sobre uma extensão de terras onde depois se formou a civilização de Axum, no século I da Era Cristã. Dada a escassez de maiores evidências arqueológicas, o período anterior ao surgimento desse reino é pouco conhecido pela historiografia. Algumas inscrições feitas nos séculos II e III praticamente se constituem nos únicos testemunhos datáveis, onde se pode observar a primeira versão do alfabeto etíope. Nenhuma delas, porém, menciona a existência de uma rainha ou princesa, governando naquela região por volta do século X a.C. Por outro lado, esses textos indicam que a primeira civilização axumita não havia rompido completamente com a sua cultura anterior, marcada pela influência sul-arábica, conforme podemos ver nas grandes pedras de Ezana e Caleb. É possível então que o reino de Axum tenha suplantado ou evoluído a partir de outro, conhecido como D’mt.
De acordo com os indícios, D’mt havia estabelecido algum tipo de intercâmbio comercial e cultural com o Sul da Arábia. O reino teria florescido entre os século X e V a.C., a partir de sua capital, Yeha. Ali, o deus da Lua, chamado de Almaqah, era adorado como principal divindade e havia um templo erguido em sua homenagem. Mas pouco mais se sabe a esse respeito. A tradição etíope defende que Makeda (como eles chamam a rainha de Sabá), teria governando a partir do palácio de pedra localizado na antiga capital do reino de Axum, embora não disponham de qualquer registro que suporte essa afirmação. Alguns moradores dessa região ainda hoje acreditam que a soberana teria sido a fundadora de uma dinastia salomônica, que durou por três milênios, até que seu último descendente, Haile Selassie, morreu em 1975. Foi desse palácio de pedra, composto por um labirinto de quartos e passagens em ruínas, incluindo uma grandiosa sala do trono, que a rainha de Sabá teria partido para Jerusalém ao encontro do rei Salomão, por volta do ano 1.000 a.C. Hoje, o monumento é considerado um patrimônio da humanidade, mas a história de que a monarca teria vivido nele não passa de uma crença local, uma vez que os arqueólogos datam sua construção em VI a.C.

Iluminura da rainha de Sabá, num manuscrito alemão do século XV.
Todavia, em 2012, a arqueóloga Louise Schofield encontrou na Antiga Axum algumas evidências da cultura Sabean, oriunda do Sul da Arábia. Entre as pistas descobertas se destacam estelas de pedra inscritas com um sol e uma lua crescente, “o cartão de vistas da terra de Sabá”, segundo os especialistas. Levando em consideração as fontes disponíveis, os sabeanos provinham de um dos reinos mais ricos da Península Arábica. Por volta do ano 950 a.C., ele era um centro comercial importante para as rotas de incenso. Seu poder e influência permaneceram crescentes até o ano de 275 d.C, quando foram então invadidos pelos himiaritas. Se D’mt era uma colônia sabeana na Etiópia, isso não é possível dizer. Contudo, a proximidade das duas culturas sugere uma relação bastante estreita. Partindo desse pressuposto, é possível então conjecturar que a lendária rainha de Sabá teria sido uma monarca de D’mt, com origem árabe. Talvez seja por isso que o historiador e apologista judaico-romano, Flavius Josephus, tenha escrito em meados do século I d.C. que a soberana viajou da região da Etiópia para Jerusalém. Essas conjecturas acerca de sua existência, porém, levaram muitos pesquisadores a considera-la apenas uma invenção hebraica.
Destarte, alguns estudiosos do Antigo Testamento afirmam que a personagem fora incluída no livro de I Reis (10:1-13) e depois em II Crônicas (9:1-12), apenas para ressaltar a inteligência do rei Salomão. Os outros textos sagrados nos quais ela também é mencionada, como o Targum Sheni, o Alcorão e o Kebra Negast, teriam se baseado na história contada pela primeira vez nos textos hebraicos. Na versão King James da Bíblia, o encontro do rei com a rainha de Sabá é narrado da seguinte forma:
A rainha de Sabá tomou conhecimento da fama que Salomão havia alcançado, graças ao Nome do Senhor, e foi a Jerusalém a fim de averiguar sua sabedoria mediante uma série de questionamentos complicados. […] Quando chegou, acompanhada de uma enorme caravana, com camelos carregados de especiarias, grande quantidade de ouro e pedras preciosas, colocou diante de Salomão todas as indagações que havia preparado. […] Salomão respondeu tranquilamente a todas as questões; nenhuma lhe foi tão difícil que não pudesse esclarecer. […] Constatada assim, toda a sabedoria de Salomão, e observando atentamente o palácio que ele havia erguido, […] os alimentos que eram servidos à mesa, o alojamento destinado aos seus oficiais, os criados e copeiros do rei, todos uniformizados, e os holocaustos que Salomão realizava no templo de Yahweh, a visitante ficou maravilhada. […] Então ela declarou ao rei: “De fato, tudo quanto tenho ouvido em meu país acerca de tuas grandiosas realizações e de tua notável sabedoria é verdade! […] Contudo, eu pessoalmente não acreditava no que diziam, até ver com meus próprios olhos. E, portanto, posso afirmar que não me comunicaram nem a metade da realidade; tu ultrapassas em muito o que me transmitiram, tanto em sabedoria como em riqueza. […] Felizes as tuas mulheres, felizes estes teus servos, que estão continuamente na tua presença e ouvem a tua sabedoria! […] Bendito seja o Senhor, o teu Deus, que se agradou de ti e te colocou no trono de Israel. Por causa do amor leal e eterno do Senhor para com Israel, Ele te elevou à majestade e te fez rei, para esclarecer a justiça e tudo o que é verdadeiro” (KJA, 2017, p. 431-2).
Em seguida, a soberana (que não tem nome próprio nessa versão) presenteia o rei Salomão com 4.200 quilos de ouro, além de uma grande quantidade de especiarias e pedras preciosas, como jamais tinha sido visto antes no reino de Israel. Em contrapartida, Salomão ofereceu à rainha de Sabá tudo o que ela quisesse levar embora consigo, após o que ela retornou para seu país na companhia de sua comitiva. Assim sendo, a soberana aparece no livro de I Reis como uma mulher rica e culta, governante de um reino independente.

A rainha de Sabá encontra o rei Salomão. Tela de Giovanni Demin (século XIX).
Por outro lado, o texto a inferioriza em relação ao rei de Israel, não apenas intelectualmente, como também religiosamente, já que ele teria sido escolhido por Deus para governar, enquanto ela não. O texto em II Crônicas (9:1-12) é basicamente a repetição das palavras citadas logo acima. Nada mais é mencionado sobre ela no Antigo Testamento. Entretanto, a referência à enorme caravana de camelos carregados de especiarias sugere uma forte relação com a rota do incenso, ao Sul da Arábia. Assim, a versão hebraica da história da rainha de Sabá acabou dando origem a uma ampla tradição folclórica sobre a personagem nas lendas pós-antigo testamento, tanto no judaísmo, quanto no cristianismo e no islamismo. As palavras “Ela Foi” (I Reis 10:1) e “O rei Salomão presenteou à rainha de Sabá com tudo o que ela desejou” (I Reis 10:13), foram interpretadas como indício de uma suposta relação sexual entre os dois, que teria gerado um filho chamado de Menelik (cristão etíope), Roboão (islâmico) ou Nabucodonosor (judeu). Em algumas passagens do Novo Testamento, como em Mateus (12:42) e Lucas (11:31), ela é mencionada como “a rainha do sul”, que “veio dos confins da terra para ouvir a sabedoria de Salomão” (apud KJA, 2017, p. 1198). Já em Atos (8:27), possivelmente há uma referência a ela, na figura de “Candance, rainha dos Etíopes” (apud KJA, 2017, p. 1269).
Afresco do rei Salomão com a rainha de Sabá, por Piero della Francesca (c. 1452-1466).
No Targum Sheni, uma tradução aramaica do livro de Ester, a história da rainha de Sabá e do rei Salomão é repetida como um de seus contos auxiliares. Essa versão, porém, é embelezada com tons ainda mais mitológicos, incluindo a capacidade do rei de entender a linguagem das árvores e dos animais, muito além do que sugere I Reis (4:33). A narrativa começa com Salomão convidando todas as aves para um grande banquete no seu palácio. Apenas uma galinha se recusou a comparecer, alegando que o monarca não era tão poderoso quanto a rainha de Sabá. Dessa forma, ele chamou a soberana ao seu reino para lhe prestar homenagens e esta, por sua vez, testou a sabedoria de seu hóspede com perguntas difíceis. Porém, o Targum Sheni é um trabalho que data possivelmente do século IV da Era Comum, servindo de base para outra versão do mesmo enredo, contida no Alcorão. No livro sagrado do islamismo, a rainha de Sabá é chamada de Bilqis e é considerada uma adoradora do deus do Sol, assim como seu povo. Não sendo portanto uma serva de Alá, o pássaro que informa a Salomão (chamado de Sulayman) sobre a existência da soberana diz que Satanás (Shaitan) desviou a ela e aos seus súditos para que, embora tenham um grande reino, “não sejam guiados, de modo que não se prostrem a Deus” (Sura 27:25). Assim, o rei lhe manda uma carta, convidando-a ao seu magnífico palácio.
Como Sabá e os seus conselheiros se recusaram a fazer a viagem, sob riscos de iniciar uma guerra, Salomão os ameaçou: “virá contra eles com hostes aos quais não têm poder de resistir e os expulsaremos dali, humilhados” (Surata 27:35). A rainha então concordou em lhe fazer uma visita, com a condição de que seu trono viajasse junto consigo. Diante da magnificência do rei de Israel, Bilqis finalmente se prostrou à fé em Alá: “Meu senhor, de fato me ofendi e me rendo com Salomão a Deus, o Senhor de todo o Ser” (Surata 27:45). Depois disso, a tradição islâmica sugere que os dois teriam se casado. Já no Kebra Negast (“A Glória dos Reis”) da Etiópia, a história é recontada com mais riqueza de detalhes. Governando com o nome de Makeda, a rainha teria ouvido falar das maravilhas do reino de Salomão por um comerciante chamado Tamrin, que, por sua vez, fez parte da expedição até Jerusalém, fornecendo material de construção etíope para a edificação do Templo do rei. No final da visita, ele e a soberana se casam, com ela se convertendo ao judaísmo. De volta pra casa, Makeda dá à luz seu filho, Menilek, que é recebido por Salomão em Jerusalém anos depois, onde aprende os ensinamentos da Torá. No seu retorno para o reino de Sabá, o primogênito de Salomão tenta recuperar a arca da aliança, que havia sido roubada pouco antes.

Moderna representação da rainha de Sabá.
Com efeito, não existe razão para questionar a suposição de que uma missão diplomática tenha sido enviada de Sabá para Jerusalém durante o reinado de Salomão e de que o emissário teria sido uma mulher. A rainha também poderia ser filha de um dos reis sabeanos, ou talvez governado sozinha após a morte do marido. Qualquer que seja a fonte, sua história é envolvida em lenda e mistérios. No judaísmo, ela chegou até mesmo a ser relacionada com Lilith, a mãe dos demônios. Os estereótipos criados em torno da monarca cresceram com o passar dos séculos. Não estamos mais perto de descobrir qualquer vestígio de sua existência do que os historiadores romanos e os primeiros cristãos que a mencionaram nos seus escritos. Contudo, a lenda de seu nome sobreviveu com força, tornando-a assim uma das figuras de liderança feminina mais simbólicas da antiguidade. No século XX, diretores e roteiristas de Hollywood não resistiram a essa narrativa e criaram múltiplas versões ficcionais da trajetória da soberana, como no filme Salomão e Sabá, de 1959. Celebrada numa ópera de Charles Gounod, por um balé de Ottorino Respighi, além de retratada nas pinturas de Rafael, Tintoretto e Claude Lorrain, a rainha permanece tentadoramente evasiva para as investigações historiográficas.
Atualizado em 07/07/2020
Referências Bibliográficas:
Bíblia Sagrada King James Atualizada (KJA). Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2017.
FONTAINE, Caroline R. Queen of Sheba: Bible. 2015. – Acesso em 06 de julho de 2020.
MARK, Joshua J. Queen of Sheba. 2018. – Acesso em 06 de julho de 2020.
SILVÉRIO, Roberto Valter (Coord.). História Geral da África: pré-história ao século XVI. Brasília: UNESCO, 2013.
STEWART, Stanley. In search of the real Queen of Sheba. 2018. – Acesso em 06 de julho de 2020
WOOD, Michael. The Queen Of Sheba. 2011. – Acesso em 06 de julho de 2020.
Não vi nexo entre Atos (8:27) e a rainha de Sabá, haja vista que esta teria sido contemporânea de Salomão (Antigo Testamento) e Atos (8:27) está contido na história da conversão de um eunuco etíope, “mordomo-mor de Candace, rainha dos etíopes, o qual era superintendente de todos os seus tesouros (…)”, pelo apóstolo Filipe (Novo Testamento). Não vejo razão para identificar Candace como a rainha de Sabá por causa dessa extemporalidade.
Já em I Reis (4:33), Salomão não entende a linguagem das árvores e dos animais como afirma o texto imitar o Targum Sheni nesse ponto. Ele “dissertou a respeito das árvores (e dos) animais”.
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Ótimo conteúdo, parabéns. Acredito que o caminho é esse, estímulo á história. Acabei de ler o livro da vida de Luis Carlos Prestes, formidável, recomendo à aqueles que tem interesse pela história do Brasil.
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Vim parar aqui pq tava lendo Mateus 12 e no verso 42 Jesus fala da rainha do Sul.. Será que é a mesma do velho testamento e se for, pelo fato de Cristo tê-la mencionado da crédito a sua existência real né..
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O povo q habitava a Etiópia eram os nubios ( daí o termo nubentes) .Era uma honra para um rei receber uma visita de uma mulher nobre ,rica e culta e pela etiqueta ele deveria unir- se a ela em casamento.Etiopia seria talvez Cush na Bíblia.Livingstone encontrou uma civilização com cultos muito parecidos com os atuais,visto q o Evangelho foi pregado por Felipe ao eunuco da rainha Candace( este termo não é nome,mas um título de rainha).Após isto Felipe foi transportado para outro local,único caso referido na Bíblia.Hoje as carruagens são os meios de comunicação: rádio,tv,internet! ” Ajunta-te a esta carruagem” ,invista na evangelização dos povos!!!
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