Por: Renato Drummond Tapioca Neto
“Vitória é precipitada demais para que eu consiga falar sobre minhas dificuldades. Ela não me ouve, mas fica furiosa e me cobre de críticas, acusando-me de suspeitas, falta de confiança, ambição, inveja etc. etc.” (apud BAIRD, 2018, p. 185), assim escreveu o príncipe Albert numa carta ao barão de Stockmar, depois de uma briga ocorrida com sua esposa por causa da baronesa Lehzen. O trecho da carta que acaba de ser citado pode causar algum estranhamento ao leitor, principalmente quando levamos em consideração a quantidade de filmes e séries que romantizam o relacionamento entre os dois. Tal representação, contudo, havia sido iniciada pela própria soberana, imediatamente após a morte do seu consorte no final de 1861, quando preservar a memória de Albert se tornou então a missão de sua vida. Porém, os diários originais de Vitória, que escaparam ao crivo de seus editores, bem como cartas trocadas pelo casal com seus parentes na Europa, indicam um convívio marcado por tensões e desentendimentos, bem diferente do começo idílico enfatizado nas produções modernas. O fato de viver num país estrangeiro, com costumes diferentes dos seus e ainda por cima casado com uma mulher que era chefe de Estado, certamente foi um peso que sufocou o príncipe por anos, até que ele conseguiu virar a situação ao seu favor.

Rainha Vitória em 1843, por Franz Xaver Winterhalter.
A princípio, Albert tentava se envolver mais nos assuntos da esposa, como a política e sua correspondência com o Primeiro Ministro, Lorde Melbourne. Mas sempre que ele tocava no assunto, Vitória desconversava e tentava mudar o rumo da prosa para temas superficiais. Ao protestar contra os desvios da esposa, ela adotava a posição retórica de que não conseguiria sustentar a conversa anterior, porque se sentia completamente absorta na presença do marido e, portanto, incapaz de tratar de um assunto como política. Albert, acreditando nas palavras do barão de Stockmar, pensava que a razão de tudo isso era a baronesa Lehzen, que cuidou de Vitória durante toda a infância e passou a ter grande influência sobre ela. Não obstante, o casal logo descobriu que seus gostos divergiam em muitos aspectos: ele fora criado num regime quase espartano, com horários rígidos e achava as festas promovidas na corte bastante entediantes. Vitória, por sua vez, adorava dançar noite adentro e depois sair para a sacada do palácio de Buckingham, onde poderia observar a chegada da aurora atrás da catedral de São Paulo ou das torres de Westminster. De sua parte, Albert adorava a companhia de cientistas, artistas e literatos, com quem podia manter uma conversa mais intelectualizada. Vitória, entretanto, sentia-se bastante intimidada na presença daquelas pessoas.
Tais divergências de gostos, com efeito, são reflexo do pouco tempo que os dois tiveram para se conhecer melhor entre o noivado, no mês de outubro de 1839, e o casamento em 10 de fevereiro do ano seguinte. Um assunto particular em que ambos discordavam se referia à quantidade de filhos que deveriam ter. Albert queria ser pai de uma prole numerosa, enquanto Vitória não desejava ser mãe de muitas crianças. Sua atitude ante a gravidez pode ser inferida a partir de uma carta escrita em março de 1858 para sua primogênita Vicky, então recém-casada com o príncipe Frederico da Prússia:
Agora para responder à sua observação de que achaste que uma mulher casada tem mais liberdades do que uma solteira; em um sentido da palavra, ela tem, – mas o que eu queria dizer – num ponto de vista físico – e se você tiver doravante (como eu tive constantemente pelos dois anos do meu casamento) – dores – e sofrimentos e misérias e pragas – com as quais você precisa lutar contra – e prazeres, etc., para abandonar – precauções constante para tomar, você sentirá o arreio de uma mulher casada! (apud GILL, 2009, p. 169).
Para a jovem rainha casada em 1840, a perspectiva de ser mãe causava preocupação. Algumas décadas antes, sua prima Charlotte, princesa de Gales, havia falecido depois de dar à luz um bebê natimorto em 1817. A morte da herdeira do trono acarretou uma crise dinástica que possibilitou à filha do duque de Kent ascender ao trono como rainha. Mas, assim como a maioria das mulheres de sua geração, Vitória não tinha muita escolha. Seus desejos e preferências, para sua infelicidade, não determinavam o tamanho de sua família e ela acabaria tendo 9 filhos com o príncipe Albert.

Príncipe Albert em 1842, por Franz Xaver Winterhalter.
Poucos dias depois de seu casamento, ela engravidou. O parto aconteceu três semanas antes do esperado e a criança nasceu em 21 de novembro de 1840. Quando o médico anunciou à rainha: “Ah, senhora, é uma princesa”, Vitória respondeu: “Não faz mal, o próximo será um príncipe” (apud BAIRD, 2018, p. 168). A princesinha foi então batizada de Victoria Adelaide Mary Louisa e seria uma das filhas preferidas de seus pais. Albert tomava cuidados pessoais com a pequena bebê, prestado toda atenção à mãe e assumindo tarefas domésticas que eram comumente atribuídas às mulheres, como o cuidado da casa e da filha. Por outro lado, o nascimento de uma herdeira teve o poder de aproximar mais o príncipe da política, algo que ele sempre ambicionou. Quando Vitória estava grávida, ele a ajudava com os documentos enviados pelo ministério e trabalhava numa escrivaninha contígua à dela. A rainha, que antes se recusava a discutir tais assuntos com o marido, aos poucos foi mudando de opinião: “agora Vitória também está disposta a ceder alguma coisa em meu favor, e eu tudo em favor dela… Não pense que eu levo uma vida submissa. Pelo contrário, aqui, em que é essa a posição do homem por lei, conquistei uma vida de valor por mim mesmo.” (apud BAIRD, 2018, p. 167), escreveu o príncipe ao seu irmão, Ernest.
Meses antes, ele havia sido apontado como regente do trono, caso algum atentado fosse cometido contra a rainha (como o que ocorreu no dia 10 de junho de 1840) e ela viesse a morrer. Por outro lado, a ascendência que o Primeiro Ministro, Lorde Melbourne, tinha sobre Vitória era um empecilho às pretensões de Albert. Sem o conhecimento da esposa, o príncipe mandou seu secretário, George Anson, procurar o candidato do partido Tory, Sir Robert Peel, que desistiu de assumir o ministério anos antes por causa de seus desentendimentos com a rainha. O assunto discutido foi a questão das damas de companhia de Vitória. Da primeira vez, a soberana se recusou a mudar seu séquito, composto por mulheres ligadas ao partido Whig. Albert então aconselhou Peel a ser mais gentil dessa vez, levando em consideração o estado de tensão de Vitória, que em 1841 já se encontrava grávida de novo. Demonstrando maior sensatez, Sir Robert apenas pediu que a duquesa de Sutherland, a duquesa de Bedford e Lady Normanby fossem substituídas. No mês de setembro, o ministério de Melbourne foi derrubado e Peel foi eleito para o seu cargo. Dessa vez, Vitória nada podia fazer além de se resignar ao resultado e lamentar o afastamento do homem, cujos conselhos ela julgou tão importantes nos primeiros anos do seu reinado.
A vitória de Sir Robert Peel foi também um sucesso para Albert. Dessa forma, ele se livrava de um grande adversário, ao passo em que insistia com a esposa para que ela não demonstrasse abertamente seu partidarismo, conforme ela tinha feito até então. Graças a Peel, Albert teve autorização para assistir às reuniões do conselho privado e os dois compartilhavam muitas opiniões, principalmente quanto à economia e ao gasto de despesas consideradas inúteis. Diante da crise financeira deixada pelo antigo governo, o novo Primeiro-Ministro conseguiu fazer aprovar uma medida de imposto sobre o rendimento. De sua parte, Albert passou a reorganizar todo o funcionamento do palácio real, seus gatos e criadagem. Convenceu Vitória a deixar ele receber em primeira mão as caixas vermelhas que vinham com os documentos do ministério e discutia assuntos particulares com Sir Robert. A rainha, por sua vez, ficou incomodada com o que lhe parecia ser uma usurpação de suas prerrogativas. Ela disse a Lorde Melbourne que não gostava disso, “em primeiro lugar, porque não gosto que ele esteja longe de mim, e depois porque não gosto que ele tome meu lugar na política e nos assuntos gerais do país” (apud BAIRD, 2018, p. 179). Diz-se que Vitória chorou bastante com a destituição do seu querido “Lorde M” e escreveu no seu diário que estava “infeliz” e com o “coração pesado”.

Sir Robert Peel, por John Linnell.
Futuramente, a rainha se arrependeria de toda essa dependência contraída para com Melbourne. Mas, em 1841, sua partida lhe deixou bastante abalada. Por outro lado, sua relação com Sir Robert Peel era mais fria. Apenas com a intervenção de Albert é que ela foi gradualmente quebrando o gelo entre si e o novo Primeiro Ministro. O próximo passo para o príncipe ter completa ascendência sobre a esposa seria o afastamento da baronesa Lehzen, por quem ele nutria pouca estima. Além de ser a controladora da bolsa privada da rainha, ela também se tornou responsável pelo quarto das crianças. Albert achava a baronesa uma mulher “tola” e tinha constantes atritos com ela. Para desafia-la, ele se aproximou cada vez mais da sogra, a duquesa-viúva de Kent, promovendo sua causa junto à esposa. Enquanto isso, a nova gravidez de Vitória avançava. Em 9 de novembro de 1841, ela deu à luz a um bebê gordo e sadio, batizado de Eduardo, em homenagem ao avô paterno. Aquela gestação, porém, foi mais difícil que que a anterior. “Meus sofrimentos são realmente muito severos”, escreveu a rainha, “e eu não sei o que eu deveria fazer além de agradecer pelo grande conforto e suporte que o meu adorado Albert me dá” (apud GILL, 2009, 167).
Todavia, a rainha adquiriu depressão pós-parto, sentindo-se fraca e deprimida, com problemas até para se locomover e dormir e com pouco apego ao novo filho. Para sanar a melancolia de esposa, o príncipe a levou para uma temporada em Claremont, mas tiveram que interromper a viagem quando foram avisados de que a saúde da pequena Vicky estava nada boa. O quadro febril da princesinha já se arrastava há alguns meses e o pai culpava a baronesa Lehzen pelos problemas desencadeados no quarto das crianças. Durante parte do trajeto de volta a Windsor, os dois permaneceram em completo silêncio até que o coche parou nas portas do palácio e então eles subiram correndo até o quarto da filha. O que viram ali lhes deixou chocados: os olhos da criança estavam bem fundos e ela estava muito magra, balbuciando poucas palavras na tentativa de esboçar um sorriso para os pais. Albert então se virou para Vitória e disse que “isso é realmente maligno”, culpando a esposa, Lehzen e a criadagem pela iminente morte de sua filha. Diante dessas acusações, a rainha reagiu com indignação. Ela se defendeu dizendo que sempre deu amor e atenção à criança, tanto quanto seus afazeres reais lhe permitiam. Além disso, a soberana falou a Albert que ele tinha na verdade uma visão distorcida de sua amizade com Lehzen e o chamou de invejoso e ambicioso.
Com efeito, quando a raiva da rainha atingiu o seu ápice, ela lamentou pela primeira vez ter se casado com o primo. Estarrecido diante daquela cena pública, transcorrida na presença da criadagem no quarto das crianças, Albert se retirou para os seus aposentos, murmurando que “preciso ter paciência”. Durante vários dias, ele e Vitória ficaram sem se falar. A rainha queria que o marido se desculpasse com Lehzen e pediu ao barão de Stockmar que agisse como intermediário. De sua parte, o príncipe obrigou a esposa a escolher entre ele e a baronesa e escreveu a Stockmar dizendo que:
Lehzen é uma intrigante louca, vulgar, estúpida, obcecada com a ânsia de poder, agora se vê como uma semideusa e quem não a reconhece como tal, como um criminoso… Eu, por outro lado, considero que Vitória tem por natureza um bom caráter, mas desvirtuado por uma criação errada… Não haverá nenhuma melhoria enquanto Vitória não enxergar Lehzen como ela realmente é, e rezo para que esse dia chegue (apud BAIRD, 2018, p. 185).
O príncipe estava com ciúmes e não fazia a menor tentativa para acalmar a esposa, que ainda sofria das consequência do seu estado de depressão pós-parto. Disse-lhe que o Dr. Clark havia intoxicado a criança com calomelano e a fez passar fome. Num gesto intempestivo, simplesmente lavou suas mãos e mandou Vitória levar embora a filha e fazer “o que quiser, e se ela morrer você ficará com isso em sua consciência” (apud BAIRD, 2018, p. 185). A rainha chorava e pediu desculpas pelas coisas que lhe tinha dito quando estava com raiva. Por fim, acabou se submetendo à vontade dele e prometeu controlar mais o seu temperamento. Graças à providência, a princesa Vicky aos poucos se recuperou, para alegria de sua família.

Baronesa Lehzen em 1842, por Carl Friedrich Koepke.
A baronesa Lehzen foi então substituída por Lady Lyttelton e em 25 de julho Albert demitiu a antiga governanta, sem consultar a esposa. O príncipe informou à rainha de que a baronesa ficaria fora apenas por dois meses, ao que Vitória concordou. Desde a sua infância, quando vivia trancafiada no palácio de Kensington apenas na companhia da mãe e sufocada por um sistema de educação bastante severo, Lehzen era o seu único conforto. Assim que se despediram, a rainha se sentou ao piano e controlava a vontade de chorar enquanto tocava uma melodia. Mais tarde, ela escreveu no seu diário: “Fiquei bastante desconcertada e abatida com o acontecido e naturalmente a ideia da separação próxima de minha querida Lehzen, que tanto amo, me deixou muito triste” (apud BAIRD, 2018, p. 187). No dia 29, a baronesa partiu definitivamente para a Alemanha. Nunca mais retornou e viveu o resto de seus dias sozinha, sustentada por uma pensão paga pela rainha. Com sua mudança, Albert já não tinha mais rivais que pudessem disputar sua influência junto à esposa. Ele não só passou a ter as chaves das caixas de documentos de Vitória, como também se tornou controlador de suas finanças e teve acesso aos ministros. Decidido a inaugurar uma nova fase na monarquia britânica, começava assim o reinado do “rei” Albert.
Referências Bibliográficas:
ALEXANDRE, Philippe; DE L’AULNOIT, Béatriz. Victoria: a última rainha (1819 – 1901). Tradução de Fátima Gaspar e Carlos Gaspar. 2ª ed. Lisboa, Portugal: Bertrand, 2002.
LONGFORD, Elizabeth. Queen Victoria: born to succed. New Yor: Haper & Row, 1964.
MUHLSTEIN, Anka. Vitória: retrato da rainha como moça triste, esposa satisfeita, soberana triunfante, mãe castradora, viúva lastimosa, velha dama misantropa e avó da Europa. Tradução de Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
STRACHEY, Lytton. Rainha Vitória. Tradução de Luciano Trigo. Rio de Janeiro: Record, 2001.
A vida de uma rainha que passou pela metade no gnt foi maravilhoso assisti do primeiro até quando o príncipe Alberto passa mal ou morre. Você aprende muito de história, aprofunda conhecimentos.
CurtirCurtir
Ótimo artigo, bem fundamentado. Tenho aprendido muito com o “rainhas trágicas”. Parabéns!
CurtirCurtido por 1 pessoa