O tiro que saiu pela tangente: a fuga de Varennes e a queda da monarquia francesa – Parte III (Final)

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

No dia 22 de junho de 1791, uma multidão de franceses escoltava o rei e a rainha de volta a Paris. Os dois haviam sido capturados no vilarejo de Varennes, antes de conseguirem cruzar a fronteira austríaca disfarçados de criados. A viagem de regresso, porém, foi muito mais longa e exaustiva do que a de partida. À medida em que a berlinda passava por outras vilas no caminho, mais e mais camponeses se juntavam ao redor do veículo, armados de rifles, foices e paus, com receio de que o exército do marquês de Bouillé chegasse em auxílio ao rei. Durante uma parada em Sainte-Menehould, é possível que Luís XVI e Maria Antonieta ainda nutrissem alguma expectativa de que as tropas estavam a caminho, conforme o combinado. Por outro lado, a população ficava constantemente atenta e pronta para o caso de aparecerem. Na opinião de Evelyne Lever, “esses homens e mulheres humildes queriam salvar suas vidas, propriedades e aldeias, sacrificando uma família que queria salvar sua riqueza e uma certa concepção do reino da França que já estava superada e da qual o povo já não compartilhava” (2004, p. 291). Assim que um grito de “Fomos enganados! Estão esperando Bouillé” foi entoado no meio da multidão, o cortejo partiu às pressas de Sainte-Menehould, forçando o casal real a abandonar de vez qualquer esperança de resgate.

No entanto, Bouillé estava muito distante do alcance da família real. Depois de esperar por muito tempo a carruagem do rei passar entre Varennes e Dunn, ele retornou a Stenay às 4 da manhã. Quase uma hora depois, estava pronto para partir novamente, mas seria preciso muitas outras para percorrer o trajeto até a família real, devido às péssimas condições da estrada. Com efeito, o marquês só chegou a Varennes 1h30 depois da partida do rei. Naquela manhã, o tempo, inicialmente nublado, tornou-se quente e sufocante. A berlinda deixava atrás de si uma grande quantidade de poeira que adentrava pelas janelas abertas do veículo, misturando-se ao suor de seus passageiros. Acompanhavam-nos três deputados da Assembleia Nacional: Jerônimo Pétion e Antônio Barnave, que viajavam dentro da berlinda junto com o rei e a rainha, e Maubourg, que foi atrás com as damas de companhia, para poupa-las das agressões que lhes eram dirigidas pelo povo. Barnave se sentou no fundo entre Luís XVI e Maria Antonieta, enquanto Pétion ficou de frente para eles, espremido entre madame Isabel, irmã do rei, e a marquesa de Tourzel, que carregava a princesa Maria Teresa no colo. Pétion, por sua vez, era o mais implicante entre os três, com seus gestos debochados e falas grosseiras; num ato rude, chegou a puxar o cabelo do delfim Luís Carlos, que estava aninhado entre os joelhos do pai.

Litogravura representando a viagem de regresso da família real até Paris, seguida por uma turba de granadeiros.

Barnave, entretanto, era bem diferente de seu companheiro. Aos 29 anos, foi considerado um homem bem apessoado e adquiriu um interesse intelectual pelo conceito de liberdade. Madame Isabel ficou encantada com a sensatez dele e lhe disse que “sois inteligente demais, Monsieur Barnave, para não avaliar o amor do rei pelo povo francês e o interesse genuíno do rei de tornar o povo feliz”. Maria Antonieta ouvia a essa conversa calada, enquanto a cunhada fazia uma vigorosa defesa de suas posições conservadoras: “quanto a essa liberdade que amais em excesso, considerastes apenas as suas vantagens. Não levastes em conta as desordens que vem no rastro da liberdade” (apud FRASER, 2009, p. 380). O clima seguia tenso entre os demais passageiros, à medida em que a carruagem fazia o itinerário oposto ao da partida: Clermont, Sainte-Menehould, seguindo em direção a Châlons-sur-Marne, La Ferté-sous-Jouarte, Claye, Meaux, levando-os finalmente até os portões de Paris. Nem todas as experiências nesse trajeto, porém, foram agradáveis. Em Châlons, por exemplo, onde a rainha esteve vinte anos antes na sua viagem de núpcias como delfina da França, ela ouviu “com horror as agressões indecentes que atacaram seus ouvidos”, vindas de um grupo de recrutas do clube jacobino, que interromperam a missa rezada pela festa de Corpus Christi.

À noite, alguns súditos leais sugeriram a Luís XVI que fugisse sozinho, mas o rei recusou. Nada no mundo faria com que ele se separasse de sua família. Na manhã seguinte, 23 de junho, o cortejo seguiu seu caminho pelas estradas difíceis e em meio ao calor opressivo. Tal como no dia anterior, o comboio era escoltado por uma multidão furiosa de camponeses. Conforme se recorda a marquesa de Tourzel:

Os soldados desse pavoroso batalhão, que se colou à carruagem real, obrigaram a dita viatura a seguir a passo, ao mesmo tempo que se queixavam da fome que tinham. Com a sua proverbial bondade, a rainha tirou algumas das suas provisões e entregou-lhes. Porém, ergueu-se uma voz da turba, que gritou: “não tocai em nada, tudo isso está envenenado. De outro modo, nada nos dariam!”. Indignado, o rei comeu imediatamente alguns desses mesmos alimentos, dando-os também aos príncipes, tendo então as tais pessoas feito outro tanto; na circunstância, o referido ato de bondade amenizou os sentimentos daquela gente (2014, p. 19).

Quando o comboio passou pela aldeia de Chouilly, onde teve que fazer uma rápida parada, houve até mesmo quem cuspisse no rosto do rei e rasgasse partes das roupas que Maria Antonieta e madame Isabel vestiam. As duas podiam ser vistas aos soluços, enquanto algumas mulheres tentavam remendar suas vestes da melhor forma que podiam. As crianças, por sua vez, se agarravam às barras das saias da mãe e da tia, amedrontadas com tudo aquilo.

Litogravura representando Luís XVI e sua família sendo conduzidos de volta pela estrada até Paris.

Uma vez em La Ferté, os passageiros pararam para uma refeição numa estalagem local. A dona do estabelecimento se fingiu de cozinheira para servir pessoalmente a Luís XVI e Maria Antonieta. É possível também que ela tenha aproveitado a ocasião para lhes indicar uma passagem secreta, pela qual poderiam fugir separadamente. Os dois, porém, se recusaram a abandonar um ao outro. Quando chegaram a Épernay, estavam sendo esperados por uma população exaltada. Ainda de acordo com as memórias da marquesa de Tourzel:

Na ocasião, o presidente da edilidade apresentou as chaves da cidade a Sua Majestade, altura em que o presidente do distrito administrativo se permitiu fazer ao nosso soberano as mais amargas recriminações e terminou o seu insolente discurso afirmando que Sua Majestade deveria agradecer à cidade por esta oferecer as suas chaves a um rei em fuga. E a multidão, que enchia por completo o pátio e a casa onde o rei iria jantar, obrigou Sua Majestade a vir à porta, enquanto se ouviam frases horrorosas, caso da que um desses monstros disse a alguém a seu lado: “Deixa-me esconder atrás de ti, para que eu possa disparar sobre a rainha sem que ninguém saiba de onde partiu o tiro” (2014, p. 219-20).

De acordo com madame de Tourzel, apenas a presença do filho do senhor Cazotte foi que impediu o ato de ser consumado. O jovem se pôs à frente da Guarda Nacional e conseguiu controlar a multidão que estava do lado de fora, enquanto a família real fazia sua refeição. Em seguida, os passageiros foram conduzidos novamente até a carruagem, para seguir a estrada até Dormans, onde passaram a segunda noite de viagem. Porém, não conseguiram dormir, devido aos gritos de “Longa vida à Nação!” e “Longa vida à Assembleia Nacional!”, que vinham do lado de fora.

Ao amanhecer do dia 24, a carruagem seguiu até Meaux para passar a noite na casa do bispo, que os recebeu muito bem. A sujeira nas roupas dos viajantes da berlinda causou verdadeiro espanto aos seus anfitriões. Luís XVI teve então que pedir a camisa de um funcionário emprestada, para chegar a Paris no entardecer do dia seguinte com um aspecto mais decente. Aquele era o momento que mais o assustava e a rainha foi informada de que a berlinda faria uma volta pelas avenidas ao norte da cidade, entrando pela barreira da Etoile e finalmente estacionando na antiga praça Luís XV, que ficava próxima ao palácio das Tulheiras. Segundo lhe disseram, essa rota era a mais segura para se evitar qualquer tentativa de assassinato. “Compreendo”, foi a resposta que ela deu aos representantes da Assembleia Nacional. Na estrada entre Meaux e Claye, “o calor era tanto que muitos granadeiros se sentiram mal, pelo que tivemos de lhes dar sais a cheirar para se recomporem”, recordou-se a marquesa de Tourzel (2014, p. 227). Quando chegaram à capital, o general La Fayette proibiu que qualquer demonstração de respeito ao soberano, como tirar o chapéu à sua passagem, fosse feita: “quem aplaudir o rei será açoitado; quem o insultar será enforcado”, foi a ordem que circulou entre a multidão. A carruagem passou pelo povo, que estava completamente em silêncio e seguiu seu rumo até as Tulheiras.

o retorno da carruagem real a Paris, em 25 de junho de 1791, por Jean Duplessis-Bertaux.

Envergonhada, a rainha escondia seu rosto entre os cabelos do delfim, que chorava entre os braços da mãe. Todo o seu plano, calculado com detalhes nos meses anteriores, havia ido por água abaixo e agora ela tinha que enfrentar a hostilidade dos parisienses, que nutriam pouca estima pela sua pessoa. Estava com a aparência bastante castigada pela viagem de três dias: olheiras fundas e o corpo coberto por uma camada de poeira. Seu maior desejo naquele momento era entrar no seu quarto e tomar um banho. Enquanto isso, Luís XVI era submetido a um intenso interrogatório. Pela primeira vez, falava-se abertamente na deposição do soberano e na proclamação de uma República. Os deputados, por sua vez, procuravam uma solução menos drástica para aquele impasse, insistindo junto ao povo na versão de que a família real tinha sido “raptada”. O soberano, por sua vez, tomou parte na mentira e disse que estava muito feliz por ter voltado à Paris e jurava ratificar e defender a Constituição. O povo, porém, não acreditou naquelas palavras. Queriam que ele fosse deposto e julgado e que um governo análogo ao dos Estados Unidos fosse implantado na França. Assim, a chamada “fuga de Varennes” ajudou a colocar de vez uma pá de cal na reputação da monarquia, precipitando-a ao seu fim no ano seguinte.

Leia as duas partes anteriores clicando aqui!

Referências Bibliográficas:

FRASER, Antonia. Maria Antonieta: biografia. Tradução de Maria Beatriz de Medina. 4ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2009.

LEVER, Evelyne. Maria Antonieta: a última rainha da França. Tradução de S. Duarte. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

PRICE, Munro. A queda da monarquia francesa: Luís XVI, Maria Antonieta e o barão de Breteuil. Tradução de Julio Castañon Guimarães. – Rio de Janeiro: Record, 2007.

OZOUF, Mona. Varennes: a morte da realeza, 21 de junho de 1791. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. – São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

TOURZEL, duquesa de. Memórias. Tradução de Carlos Vieira da Silva. – Lisboa, Portugal: Alêtheia Editores, 2014.

4 comentários sobre “O tiro que saiu pela tangente: a fuga de Varennes e a queda da monarquia francesa – Parte III (Final)

  1. Li prendendo o folego. Hoje, nestes tempos ominosos em que vivemos, muitos creem que as “fake news” são uma novidade. As calúnias lançadas contra Maria Antonieta já denunciavam estas sórdidas práticas em tempos pretéritos. Liberdade, igualdade e fraternidade…Palavras, só palavras.

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