Por: Renato Drummond Tapioca Neto
“Quando eu morrer, não vai doer mais, vai, mamãe?”, questionava o pequeno Alexei para seus pais, os imperadores da Rússia, enquanto uma grave crise de hemorragia tomava conta do seu pequeno corpo. No verão de 1912, a criança tinha se machucado enquanto tentava subir num barco. O sangue fluía incessantemente dos vasos rompidos, criando um feio hematoma na região abdominal e abaixo da virilha. À noite, gritos terríveis ecoavam pelas paredes, vindos do menino que não parava de chorar. “O pobrezinho sofreu intensamente, as dores vinham em espasmos recorrentes a cada quatro horas”, escreveu Nicolau II à mãe, dando notícia do estado de saúde do herdeiro do trono. No início do século XX, a hemofilia era uma doença que preocupava muitos médicos e pesquisadores, devido à ineficácia dos tratamentos aplicados para sua contenção. Alexandra Feodorovna, mãe do príncipe, não saia de seu lado, enquanto serviços religiosos eram realizados nas grandes catedrais e igrejinhas, rogando pela vida de Alexei. A hemorragia se espalhou a tal ponto que os médicos e os próprios pais pressentiam seu fim iminente. Foi quando a czarina se lembrou de um certo mujique, que acreditavam ser capaz de curar as pessoas pelo poder da oração. Informado do que estava acontecendo, ele rezou pelo enfermo e, misteriosamente, a dor da criança desapareceu.

Foto de Alexandra Feodorovna, colorizada por Olga Shirnina.
Foi dessa forma que Gregório Rasputin entrou na vida da família imperial russa, deixando graves sequelas na imagem que os Romanov traduziam junto aos súditos. Para a imperatriz, porém, aquele homem conseguiu obter sucesso onde médicos e outros padres haviam falhado. A partir de então, ela criou uma confiança inabalável de que a vida de seu filho estava nas mãos dele. Mas quem era esse homem? Uma das personalidades mais intrigantes do século XX, Rasputin continua a exercer controvérsia onde quer que seu nome seja pronunciado. A depender das inclinações do narrador, ele pode ser apresentado tanto como uma pessoa piedosa, humilde e até benevolente, quanto o oposto: promíscuo, hipócrita e charlatão. A irmã do czar, Olga Alexandrovna, o achava “primitivo” e “grosseiro”, ficando por vezes constrangida com a familiaridade que ele passou a ter junto da família imperial. Dava a mínima importância para a etiqueta da corte e sempre se referia a Nicolau e Alexandra como “papai e mamãe”, em vez do tratamento adequado a majestades imperiais. Rasputin apareceu em São Petersburgo na qualidade de starets, homem de Deus que fazia voto de pobreza, oferecendo-se como guia espiritual para almas em sofrimento. Muitos russos davam ouvidos a esses “milagreiros”, principalmente camponeses iletrados, entre os quais sua popularidade era grande.
Todavia, a maioria dos starets eram velhos que abandonavam todas as tentações do mundo em prol de uma vida de peregrinação. Rasputin, por sua vez, era jovem, casado e com três filhos. Era um oportunista, que se aproveitava de sua posição como homem religioso para seduzir mulheres e extorquir dinheiro dos ricos. Filho de um fazendeiro que havia sido cocheiro imperial, Gregório Efimovich nasceu em 1872 na aldeia de Pokrovskoe, na Sibéria, tendo 33 anos quando conheceu Alexandra. Seus vizinhos o apelidaram de “Rasputin”, que significava “dissoluto”. Quando rapaz, era conhecido por ser um bêbado e libertino, que vivia brigando com todos e assediando as moças da aldeia, quando não as violentava. Seu primeiro aparecimento em São Petersburgo foi no ano de 1903, ocasião em que se encontrou com outros homens religiosos, como João de Kronstadt, junto dos quais começou a criar sua reputação como starets. Rapidamente, se tornou protegido de alguns membros da nobreza, que viam naquele camponês um elo com o místico e o sagrado. Nenhum deles, porém, imaginava o grau de intimidade que ele obteria no palácio. A princípio, sua presença ao lado dos imperadores não provocou muitos comentários, devido às credenciais e relações que ele possuía com os mais proeminentes homens da igreja.
Com efeito, “foi a doença do menino que trouxe Rasputin ao palácio”, disse Sir Bernard Pares, acrescentando que “a base de tudo era que ele realmente podia dar alívio ao menino, e sobre isso não havia a menor dúvida” (MASSIE, 2014, p. 216). Tanto Nicolau quanto Alexandra adquiriam o hábito de falar abertamente com ele. Para a czarina, sua companhia passou a ser a coisa mais importante. Aos poucos, ela se convenceu de que o mujique era um enviado de Deus, com uma missão divina para a família imperial e todos os povos da Rússia. Segundo Pierre Gilliard, preceptor do príncipe Alexei, “ela [Alexandra] achava que não tinha escolha. Rasputin era o intermediário entre ela e Deus. As preces dela não haviam obtido resposta, mas as dele pareciam ter” (MASSIE, 2014, p. 216). A crença comum, porém, era de que Rasputin usava seus olhos para hipnotizar o herdeiro e, assim, retirar a consciência da dor da criança e controlar a hemorragia. Seu aparente sucesso em Tsarskoe Selo fez com que se tornasse muito popular entre a alta sociedade, o que lhe granjeou muitos presentes e posição, além de inimigos. As vestes grosseiras foram trocadas por finas camisas de seda, acompanhadas de uma bela cruz de ouro que a czarina lhe deu. Devidamente paramentado, chamava a atenção por onde entrasse, com sua barba e cabelos longos e olhar penetrante, dando conselhos íntimos a quem lhe aprouvesse.
No frenesi de seu êxito, Rasputin chegou ao ponto de assediar a irmã do czar, a grã-duquesa Olga Alexandrovna, aproveitando um momento em que estava a sós com ela para abraça-la contra a sua vontade. “Eu me afastei imediatamente”, relatou Olga. A grã-duquesa ficava estarrecida com o acesso daquele camponês ao palácio:
No boudoir de Alicky, tendo conversado com ela e Nicky por alguns momentos, Rasputin esperou que os criados pusessem a mesa para o chá da noite, e então me atacou com as mais impertinentes perguntas. Eu era feliz? Amava meu marido? Por que não tinha filhos? Ele não tinha o direito de fazer essas perguntas, e nem eu respondi. Receio que Nicky e Alicky tenham se sentido muito desconfortáveis. Lembro-me de ter me sentido aliviada ao deixar o palácio aquela noite, dizendo ‘Graças a Deus que ele não me seguiu até a estação’, quando embarquei em meu vagão particular no trem para São Petersburgo (apud MASSIE, 2014, p. 221).

Foto de Rasputin, colorizada por Olga Shirnina.
Não só com a irmã do czar, mas também com as filhas destes Rasputin buscou maior intimidade. Olga se recorda do momento em que o viu pela primeira vez, quando chegou ao palácio e foi conduzida por Nicolau ao quarto das crianças. Vestidas de pijama branco, estavam sendo colocadas na cama para dormir por suas amas, diante dos olhares de Rasputin. “O menino ficou totalmente imóvel ao lado daquele gigante, cuja cabeça estava curvada”, disse a grã-duquesa (RAPPAPORT, 2016, p. 139). Por outro lado, Olga rejeitava qualquer relação imprópria entre aquele homem e suas sobrinhas, como se afirmou mais tarde pela imprensa difamatória da época: “sei que a criação delas contemplou os mínimos detalhes. O menor sinal de algum tipo de ‘liberdade’ da parte de Rasputin as teria deixado aturdidas! Nada disso jamais aconteceu”. Na sua opinião, “as meninas sempre ficavam felizes de vê-lo porque sabiam como era grande a ajuda para o irmãozinho delas” (RAPPAPORT, 2016, p. 146).
Todavia, assim que as farras e orgias de Rasputin na capital chegaram ao ouvido da família do czar, muitos tentaram convence-lo a se livrar do mujique. Como consequência, as relações entre os membros do clã Romanov começaram a se fragmentar. Desconheciam o motivo de Alexandra para mantê-lo no palácio, como se fosse “um segredo de Estado” que “criava uma ligação ainda mais forte entre os que dele partilhavam, separando-os ainda mais do resto do mundo” (RAPPAPORT, 2016, p. 146). A partir de 1909, a czarina passou a procurar constantemente aconselhamento espiritual com Gregório. Devotava-lhe tamanha confiança, que chegou ao ponto de cometer a imprudência de escrever as seguintes palavras numa carta endereçada a ele:
Meu bem-amado e inesquecível mestre, redentor e mentor
Quão aborrecido é tudo sem ti. Minha alma está tranquila e se acalma unicamente quando tu, meu mestre, te sentas ao meu lado. Beijo tuas mãos e inclino a cabeça sobre teus benditos ombros. Oh, quão iluminada me sinto então! Só desejo uma coisa: dormir para sempre sobre teus ombros e em teus braços. Que felicidade sentir tua presença ao meu redor. Onde estás? Aonde fostes? Oh, estou tão triste e meu saudoso coração… Quando voltarás a estar perto de mim? Vem depressa, te espero e me atormento por ti. Peço tua santa bênção e beijo tuas mãos benditas. Te amo eternamente.
Tua mamãe (apud KING, 1996, p. 201).
Tais pensamentos, perfeitamente compreensíveis por parte de uma mãe que via aquele homem como um salvador, o único capaz de curar as dores de seu filho, podem parecer no mínimo suspeitos quando analisados fora de contexto. Alexandra era uma mulher muito devota e, desde que o herdeiro do trono foi diagnosticado com hemofilia, ela se agarrou cada vez mais ao consolo da religião e vivia acompanhada de vários ícones sagrados. Porém, nas mãos dos inimigos da Coroa, cartas como essa foram utilizadas de forma maliciosa para embasar boatos de que a czarina e Rasputin seriam amantes. Charges em pasquins apresentavam os dois como os verdadeiros governantes da Rússia, enquanto Nicolau era feito de idiota. Os rumores ficavam piores com o passar do tempo. A irmã de Alexandra, a grã-duquesa Ella, preocupada com o avanço dessas histórias, questionou a sensatez da imperatriz em continuar defendendo Rasputin. Em decorrência disso, as duas netas da rainha Vitória, tão unidas anteriormente, acabaram se afastando.
A cada nova crise de hemorragia de Alexei, Rasputin era convocado ao palácio para rezar junto ao leito do enfermo. “O garoto vai sobreviver”, dizia ele. Em todas essas visitas, mais e mais boatos surgiam. Da mesma forma como aconteceu com Maria Antonieta na Revolução Francesa, a imprensa começou a imprimir libelos ridicularizando a sexualidade da soberana, apresentando-a como uma mulher promíscua e adúltera. A xenofobia causada pelo seu nascimento alemão tratou de fazer o resto. Uma verdadeira campanha difamatória, alimentada pelo conteúdo das cartas de Alexandra divulgadas irresponsavelmente pelo próprio Rasputin e seus seguidores, começou a ser feita, visado dilapidar a figura de Nicolau enquanto chefe de Estado. Diante dessa crise, em 1911 o jornal Golos Moskvi publicou uma acarta assinada por Miguel Novosselov, dizendo o seguinte:
Quousque tandem? É este o grito indignado que escapa sem querer do coração de todos os cristãos ortodoxos face ao sutil conspirador que trama contra a Santa Igreja Ortodoxa, face ao vil corruptor de corpos e almas, Gregório Rasputin, o qual se permite ocultar aos seus malefícios sob a capa da santidade da igreja. Quousque tandem? É esta a pergunta que todos os autênticos filhos da Igreja Ortodoxa são obrigados a dirigir ao Sínodo ao verem com angústia a terrível tolerância desta alta instituição eclesiástica para com Gregório Rasputin (apud FERRO, 1991, p. 141).

Foto de Alexandra e Alexei, colorizada por Olga Shirnina.
A brochura de Novosselov, por sua vez, confirma a dimensão dos boatos que corriam sobre a conduta de Rasputin na corte imperial. O estadista Rodzianko, presidente da Duma, comentou que “ninguém poderá duvidar por mais tempo da sinceridade de tudo quanto se diz de tal personagem” (FERRO, 1991, p. 141). Um dossiê foi apresentado a Nicolau por seus ministros, contendo todos os escândalos sobre a vida do mujique, ocorridos antes e depois de ele ser admitido no círculo da família imperial. Mas, mesmo diante de todos esses fatos, o imperador o manteve ao alcance de sua família, caso um novo ataque de hemorragia acometesse ao frágil corpo de Alexei. A teimosia de Nicolau e o devotamento de Alexandra à figura de Rasputin criou um clima bastante tenso em todo o país. “O imperador tem o coração tão puro, que não acredita no mal”, disse a imperatriz-viúva, Maria Feodorovna (KING, 1996, p. 203). Sua esposa, porém, se deixou enredar cada vez mais. Quando estourou a Primeira Guerra Mundial em 1914 e Nicolau se viu na iminência de liderar as tropas russas, Alexandra permaneceu em São Petersburgo na qualidade de representante do marido. Era um alvo sozinho e fácil para a imprensa sensacionalista e para aqueles que a responsabilizavam por todas as atitudes mal pensadas do governo do czar.
Durante todo o tempo em que foi imperatriz, Alexandra Feodorovna demonstrou pouco interesse nos assuntos de Estado e quase nenhuma ambição pessoal, exceto no que se referia à proteção de Rasputin. Pouco conhecia os ministros e se sentia intimidada na presença deles. Porém, era uma árdua defensora do governo autocrático e convidou o mujique para ajudá-la na sua tarefa, convicta de que ele era o súdito mais próximo de Deus e devotado ao czar. Foi durante essa fase que a ascendência dele sobre a czarina esteve no auge. Gregório não só se interferia no governo, como também interceptava a correspondência pessoal da soberana e mandava mensagens ao czar através dela. Dizia que recebia visões importantes nos sonhos, que precisavam ser transmitidas a Nicolau: “agora, antes que me esqueça, preciso lhe passar uma mensagem do nosso Amigo, ditada pelo que viu à noite”, disse Alexandra em carta ao marido (MASSIE, 2014, p. 372). O poder de Rasputin junto da família imperial, principalmente a influência que exercia sob a czarina, trouxe consequências nefastas para a estabilidade dos Romanov, já muito abalada naqueles anos. Assassinado em 30 de dezembro de 1916 por Felix Yusupov, ele deixou uma última e agourenta carta para o czar: “se foi algum dos seus parentes que lavrou a minha morte, então ninguém da sua família, ou seja, nenhum de seus filhos e parentes permanecerá vivo por mais de dois anos. Eles serão mortos pelo povo russo…”.
Referências Bibliográficas:
FERRO, Marc. Nicolau II: o último czar. Tradução de Maria Lígia Guterrez. Lisboa, Portugal: Edições 70, 1991.
KING, Greg. La última emperatriz de Rusia: vida y época de Alejandra Feodorovna. Tradução de Aníbal Leal. Buenos Aires, Argentina: Javier Vergara Editor, 1996.
MASSIE, Robert K. Nicolau e Alexandra: o relato clássico da queda dos Romanov. Tradução de Angela Lobo de Andrade. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.
MONTEFIORE, Simon Sebag. Os Románov: 1613-1918. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
RAPPAPORT, Helen. As irmãs Romanov: a vida das filhas do último tsar. Tradução de Cássio de Arantes Leite. Rio de Janeiro: Objetiva, 2016.
Texto excelente e com bastante conhecimento sobre a vida de Rasputim. Confesso que ainda não conhecia. Vou procurar ler sobre ele ainda mais.
Parabéns!
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Parabéns, Renato! Que artigo maravilhoso. Fiquei extasiado com a qualidade do conteúdo apresentado. Confesso que fiquei intrigado e com vontade de descobrir ainda mais sobre o assunto.
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Muito obrigado, Daniel. Fico feliz que tenha apreciado.
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Verdadeiríssimo artigo. Estive no palácio yuponof. Claro q c um cenário no subsolo para turista mostrando o crime do mesmo.
Foi morto e dps jogado no rio
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Assisti a série o Último Czar na Netflix!
E realmente esse texto enriquece ainda mais o filme apresentado com detalhes!
Triste a forma brutal como todos morreram!
Intrigante as últimas palavras de Rasputin.
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Que maravilha! Fiquei extasiado com informações tão preciosas sobre o enigmático Rasputin. Obrigado!
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O Rasputin era um boa vida e oportunista,usava a igreja pra tirar proveitos..e nada melhor q se fingir de curandeiro pra enganar a imperatriz e o czar…..isso contribuiu para a queda do czar ….ele passou com sua astúcia a controlar as decisões do imperador… realmente ele foi terrível.
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