Por: Renato Drummond Tapioca Neto
Um dado importante da formação educacional da arquiduquesa e depois imperatriz Dona Leopoldina de Habsburgo-Lorena, é o amor que ela cultivou durante toda a sua vida pelos livros e pela leitura. Mesmo diante dos dissabores vividos por ela na Europa, durante as guerras napoleônicas, bem como aqui no Brasil, as páginas amareladas de antigos volumes sobre História, Literatura e Ciências Naturais se constituíam num verdadeiro refúgio de toda aquela realidade monótona passada em São Cristóvão. Constantemente, a soberana solicitava de sua família e de enviados na Europa remessas de livros recém-publicados, principalmente sobre Botânica e Mineralogia, que ela considerava “indispensáveis em um país que proporciona tantas oportunidades de nos instruirmos nestas duas ciências”. Mais interessante ainda é o fato de que a soberana também escrevia comentários sobre algumas dessas obras, nas mais de 800 cartas catalogadas que ela dirigiu a familiares e amigos. O conjunto dessa documentação, por sua vez, nos ajuda a traçar um perfil intelectual da esposa de D. Pedro I, que além de mãe zelosa e consorte dedicada, deixou relevante contribuição no movimento de emancipação política do Brasil e nas pesquisas científicas desenvolvidas em nosso país.

Retrato em miniatura de Dona Leopoldina (artista desconhecido).
Durante a infância, Leopoldina recebeu uma educação esmerada, com um rigoroso horário de ensino. Na primeira infância, tinha aulas ao lado de sua irmã menor, Maria Clementina. Mas, à medida que crescia, a arquiduquesa aos poucos foi se especializando com professores próprios nas disciplinas em que melhor obteve destaque, como as de ciências. Levantava-se às 7h30 da manhã, ia à missa às 8h30 e às 9h00 começava os estudos, orientada por educadores que apareciam pontualmente para lhe passar o conteúdo das disciplinas. As aulas eram interrompidas apenas por ocasião das refeições e então retomadas no período vespertino, momento em que ela aproveitava para repassar as lições do dia. Além das matérias básicas, Leopoldina também tinha aula das disciplinas comumente trabalhadas nos cursos secundários dos nossos dias, como Botânica, Mineralogia, Astronomia e Física. Aulas de Religião, Literatura, História, Desenho, Matemática e Idiomas (francês, italiano e latim) também faziam parte do programa de ensino designado para sua formação. Durante essa fase, a arquiduquesa leu muitos autores clássicos, que ela enumerou para a irmã Maria Luísa em várias cartas: Cornelius Nepos, Titus Livius, Herder, Wilhelm (?) Müller, Dom Quixote, de Cervantes, uma obra chamada Les beautés de l’historie, e uma edição em alemão de Os Lusíadas, de Camões.
De temperamento vivaz e impaciente, Leopoldina se queixava para Maria Luísa dos métodos rigorosos de seu professor de Música, Kotzeluch, dizendo que ele era “extremamente severo apertando-me fortemente o meu pequeno dedo, e quando eu faço uma cara triste responde: Assim o tenho feito com a imperatriz de França!”. Em meados de 1810, a arquiduquesa de 13 anos fez uma viagem com sua madrasta à cidade balneária de Karlsbad, onde conheceram o famoso poeta Johann Wolfgang von Goethe, cuja obra Os Sofrimentos do Jovem Werther, publicada em 1774, é considerada o marco inicial da escola romântica alemã. O escritor e a imperatriz da Áustria criariam fortes laços de amizade, cimentada por seu amor comum pela leitura e pelo conhecimento. A figura culta e inteligente de Maria Ludovica Beatrice exerceu uma forte influência sobre a arquiduquesa, inspirando-lhe o gosto pela literatura germânica em geral, especialmente pela obra de Goethe. Em carta à irmã, datada de 11 de abril de 1814, por exemplo, ela disse que estava apreciando muito a leitura de Abfall der Vereinigten Niederlandr (Queda dos Países Baixos), do famoso poeta e dramaturgo Friedrich Schiller. Ao pai, o imperador Francisco, a arquiduquesa pedia no mesmo mês o sexto volume do Description des medailles antiques grecques e romaines, de T. E. Mionnet.
Como consequência da educação de Dona Leopoldina, ela desenvolveu grande interesse pelas artes, pela música e pelo teatro. Adorava as óperas de Mozart e as peças de Shakespeare. “A querida mamãe tem tido a boa vontade de nos levar bastante ao teatro”, disse em carta a Francisco I datada de 6 de julho de 1815. “Há pouco assistimos ao Hamlet, que me deixou arrepiada”, completou. Na correspondência com Maria Luísa, em março de 1816, ela se declarava muito alegre por assistir à dramatização de Elise von Valberg, de Auguste Wilhelm Iffland e pedia também para que a irmã lhe enviasse alguns romances parisienses e livros sobre História da Espanha. Em 1 de maio, ela disse que estava lendo Ondine, uma novela de conto de fadas escrita por La Motte-Fouqué, apesar de a ter achado “exagerada demais”. Em outra carta, datada do dia 28 de junho, Leopoldina afirmava estar interessada na leitura de Jahr 1818 (O ano de 1818), de Kotzebue, um “livro magnífico”, que, segundo nos conta, estaria provocando debates entre “grandes políticos”, devido ao seu caráter profético. Sempre interessada em todas as novidades do mercado editorial europeu, a arquiduquesa encomendava caixas e mais caixas de livros, escritos nos vários idiomas que dominava, cujo uso era destinado tanto para as suas aulas, como também para distração pessoal.
Com efeito, além das peças e sonetos de Shakespeare, Leopoldina também se deleitava no teatro com Ottokars Tod (A morte de Otocar), Medea e Die Ahnfrau (A Avó), de Grillparzer, bem como Rodogune, de Corneille. Gostava também de óperas, como José, de E. H. Méhul, e da música de Haydn e Beethoven. Aos poucos, ela foi montando uma grande coleção de livros, objetos e minerais, catalogados com todo o zelo, que traria consigo na sua viagem para o Brasil. Quando o marquês de Marialva, encarregado por D. João VI de negociar o casamento da arquiduquesa com o príncipe D. Pedro, a visitou pela primeira vez, encontrou-a “rodeada de livros que contêm a história deste reino, ou memórias a ele relativas”. No catálogo de sua biblioteca, podemos identificar várias obras sobre a América, escritas na sua maioria por Alexandro von Humboldt. Eram elas:
Essai Politique sur le Rouyaume de la Nouvelle-Espagne, Paris, 1811, 3 vol.; Voyage aux Régions Equinoxiales du Nouveau Continent, 1814, 4 vol. e outra edição de 8 vol.; Voyage de Humboldt et Bonpland, Monographie des Milestromacéas, Paris, 1816, 1 vol.; Voyage de Humboldt et Bonpland, Plantes equinoxiales, Paris, 1808, 2 vol. Possuía ainda de Thomas Lindley, Rise nach Brasilien und Aufenthalt daselbst in den Jahren 1802 und 1803 nebst Berchreibung der Städt und Provinzen Porto Seguro und San Salvador, Auszugsweine aus dem Englischen übersetzt und herausgegeben von T. F. Chimann, Weimar, 1806, 1 vol.; de Henry Koster: Travels in Brazil, 1816, 1vol.; de Krusenstern: Rise um die Welt, 1803-06; a Historia Naturalis Brasiliae Auspicio et Beneficio Illustriss. Mauritti Com. Nassau etc., Amsterdam 1648, 1 vol.; de Rocha Pita: História da América Portuguesa (1500-1724), Lisboa, 1773; de Joan de Lery: Reise in Brasilien (tradução alemã) de Münster, 1794, 1 vol. (OBERACKER JR., 1973, p. 62-63).

Goethe em 1828, óleo sobre tela de Stieler.
No Museu Imperial de Petrópolis, por sua vez, podem-se encontrar diversas páginas, escritas aparentemente com a letra de Dona Leopoldina, contendo descrições geográficas das províncias do Brasil, sua flora e fauna, além de algumas anotações das viagens de Langsdorff, do livro Viagem ao Brasil, escrito pelo Príncipe von Neuwied, bem como de Esboço sobre o Brasil, de Lobo da Silveira.
Com efeito, numa de suas conversas com Marialva e Navarro antes da viagem para a América, a arquiduquesa impressionou seus ouvintes ao ler “diante de nós, em um livro português, vertendo depois em francês, com a maior facilidade e exatidão, o que havia lido”. No catálogo da biblioteca de Leopoldina também se pode encontrar um livro didático da língua portuguesa, de onde ela provavelmente tirou suas primeiras lições sobre o idioma, o Portugiesische Sprachiehre, nebst Übungen zur Anwendung der Grundsätze, de Johann Daniel, publicado em Hamburgo no ano de 1800. Por outro lado, os interesses literários da jovem, necessários para a sua preparação como princesa real portuguesa, de forma alguma se limitavam a História, Geografia e Ciências. Ela também leu muito um livro de educação para crianças, escrito por Madame de Genlis, de onde procurava tirar informações que contribuíssem para o seu “novo estado” de mulher casada. Quando Dona Leopoldina embarcou no porto de Livorno em agosto de 1817 rumo ao Brasil, trouxe consigo tantos volumes encaixotados que, ao chegar, não havia espaço no pequeno palácio da Quinta para os acomodar. A inglesa Maria Graham, amiga da imperatriz e preceptora de sua filha, Dona Maria da Glória, disse que por todo lado dos aposentos da soberana haviam malas fechadas, contendo “vestidos que a sociedade do Brasil não exigiam, livros que ela não tinha nem oportunidade nem espaço para arrumar com vantagem” (GRAHAM, 2010, p. 118).
No país para onde aquela princesa tinha sido enviada, o hábito da leitura não era tão arraigado como na Europa. Grande parte da população era analfabeta e bibliotecas eram coisa rara de se encontrar, sendo em sua maioria particulares e preenchidas com obras devocionais. Apenas em cidades como Salvador, Rio de Janeiro, Olinda, São Luís do Maranhão e em alguns municípios das Minas Gerais se podia encontrar um núcleo reduzido de leitores, com pouquíssimas livrarias. Em 27 de junho de 1810, estabeleceu-se na corte a Real Biblioteca, com livros vindos diretamente de Lisboa, embora seu uso pelas pessoas fosse bastante limitado. Conforme registrou Arago, apesar de “grande e bela e enriquecida das melhores obras literárias”, a Real Biblioteca “é perfeitamente deserta e desconhecida pelos brasileiros”. No Rio existiam apenas duas livrarias, que ofereciam obras sobre religião, teologia e medicina. Todo esse cenário deixou a princesa Leopoldina bastante triste. Em cartas ela reclamava à família do “estilo de vida em que nunca se vai ao teatro, nunca a uma festa em que as pessoas não sejam as mesmas de todos os dias”. Não obstante, “o calor, o clima e a consequente preguiça não nos deixam ler nem escrever”. Sentia cada vez mais saudades da Áustria, onde tinha um rico acervo pronto para ser degustado a cada dia.
Apesar das dificuldades, Dona Leopoldina não deixou de procurar se instruir e aperfeiçoar os seus conhecimentos nas mais diversificadas áreas. “O dia inteiro ocupo-me justamente com meu marido, executando música ou lendo, escrevendo e desenhando”, disse em carta à Maria Luísa, no dia 8 de julho de 1818. Continuava a ter aula de canto, português e latim, passeava pela tarde e se retirava para dormir às 20h00, “porque infelizmente é mais fácil pedra virar leite do que se receber permissão para ir ao querido teatro”. Ao marquês de Marialva, Leopoldina fazia várias encomendas de livros novos, como Princípios de economia política, de Malthus; Antiguidades egípcias, gregas e etruscas, obra em 7 volumes, de Caylus; História da Campanha de 1818, 3 volumes e atlas, de Zoch; Viagem à Pérsia, de Kotzebue; Viagem Pitoresca a Nápoles e à Sicília, em 5 volumes, de Saint-Nou. Já à sua irmã, a princesa comentou em carta de 9 de julho que a leitura das cartas de Voltaire e Rousseau não eram toleradas no Brasil, “proibições tão tolas”, segundo ela, embora fossem consumidas clandestinamente pela classe letrada. Dizia também que “os livros de História e os romances edificantes como o de La Motte-Fouqué são os meus favoritos” e que estava muito ansiosa para que suas encomendas literárias chegassem logo.

Maria Graham, em 1819, por Sir Thomas Lawrence.
As listas de pedidos de Leopoldina aumentavam com o passar dos anos. Não temos como saber se todos os livros que ela pediu ao marquês de Marialva e a Maria Luísa foram entregues e/ou lidos por ela. Mas seu interesse por Ciências Naturais, Literatura de Viagem, temas da atualidade e Economia deve ser levado em consideração para se entender o papel desempenhado pela soberana na política brasileira. Numa de suas cartas a Marialva, Leopoldina demonstrava sua preocupação com o papel da mulher na sociedade, ao solicitar um exemplar de Les Femmes, de Vicomte de Ségur, obra que aborda a condição e o papel feminino através dos tempos. Pediu também uma edição francesa, publicada em 1806, de L’art de connaître les hommes par la physionomie, de Gaspar Lavater, onde o autor procurava compreender o caráter do indivíduo a partir do estudo cuidadoso de sua aparência. Essas constantes solicitações de livros, além de demonstrar o amor da soberana pelo conhecimento, se justificavam pelo fato de que ela considerava o Brasil “um país de ignorância”, onde só existiam “livros de conteúdo médico e teológico à venda”. Essa opinião não era de todo verdadeira, pois os anúncios de livros em jornais da época denotavam um repertório um pouco mais vasto. Movida ainda por seus preconceitos, Leopoldina escrevia ao pai que “em tudo, a vida na Europa é melhor”.
Com efeito, a imperatriz passaria o amor pelos livros aos seus próprios filhos, especialmente para D. Pedro II, com quem quase não conviveu, mas que compartilhava com a mãe o apreço pelo conhecimento. Em 1825, ela agradeceu à irmã pelo envio de novos livros, que fizeram a felicidade da pequena Maria da Glória: “o que me surpreendeu foi que preferiu a história do cachorro às fábulas de fadas, que normalmente agradam mais às crianças”, comentou. Numa das aulas com a futura rainha de Portugal, Maria Graham notou que:
Ela tinha aprendido a ler francês com o padre Boiret e a repetir uma das fábulas de La Fontaine (O Corvo e a Raposa) com grande graça, mas nunca esquecerei seu enlevo quando descobriu que as mesmas letras que lhe permitiam ler francês lhe serviriam para o português, e quando lhe apresentei Little Charles, da Senhora Barbauld, traduzido para seu uso e li-o com ela, exclamou: “Todas estas palavras são portuguesas!” Pulou de repente da cadeira, tomou o livro e correu para o quarto de sua mãe para mostra-lhe que deliciosa novidade havia descoberto (GRAHAM, 2010, p. 110).
Vivendo de forma isolada no Paço, quase sem amigos, Leopoldina encontrava nos livros um verdadeiro remédio para a melancolia que tomou conta de si nos seus últimos anos de vida. Chegou a cultivar uma bela amizade com Maria Graham, interrompida devido às intrigas palacianas provocadas pelas damas portuguesas, que, segundo a cronista, “não falavam senão a própria língua, e cuja educação se resumia nas regras de etiqueta da corte, com a instrução suficiente para ler e escrever para conduzir uma intriga doméstica e política” (2010, p. 120). No seu Escorço Biográfico de Dom Pedro I, a inglesa comentou que a imperatriz gostava de conversar com ela na biblioteca da Quinta, onde estaria livre de ouvidos inconvenientes e podia desabafar sobre suas angústias. Leopoldina morreu em 11 de dezembro de 1826, um mês antes de completar 30 anos, deixando para trás cinco crianças órfãs e uma nação inteira a chorar pela sua perda. Sua imensa coleção de livros foi catalogada pelo bibliotecário austríaco Rochüs Schüh e, juntamente com suas pedras e plantas, deram início ao acervo do atual Museu Nacional, que foi devastado por um grande incêndio ocorrido em 2 de setembro de 2018.
Referências Bibliográficas:
GRAHAM, Maria. Escorço biográfico de Dom Pedro I. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2010.
KANN, Bettina; LIMA, Patrícia Souza. D. Leopoldina: cartas de uma imperatriz. – São Paulo: Estação Liberdade, 2006.
MAGALHÃES, Aline Montenegro; MARINS, Álvaro; BEZERRA, Rafael Zamorano. (Orgs.). D. Leopoldina e seu tempo: sociedade, política, ciência e arte no século XIX. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2016.
OBERACKER Jr., Carlos H. A imperatriz Leopoldina, sua vida e época: ensaio de uma biografia. – Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1973.
SCHUBERT, Mons. Guilherme (Coord.). 200 anos imperatriz Leopoldina. Rio de Janeiro: IHGB, 1997.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. A longa viagem da biblioteca dos reis: do terremoto de Lisboa à independência do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
Sinto imensa admiração e grande respeito e carinho pela imperatriz Leopoldina,portanto foi com interesse que li cada palavradeste interessante artigo do qual gostei bastante. Obrigada por este tecto agradável e exuberante!
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