Por: Renato Drummond Tapioca Neto
No dia 15 de abril de 2019, o mundo inteiro se solidarizou com o incêndio na Catedral de Notre-Dame, em Paris. Símbolo do nacionalismo francês, o edifício em estilo gótico começou a ser construído no século XII e desde então permaneceu de pé, quando a França era sacudida por uma série de conflitos. Nem mesmo a Guerra dos Cem anos com a Inglaterra (1337 a 1453), as guerras religiosas do século XVI, a Revolução Francesa, a Guerra franco-prussiana, ou Primeira e a Segunda Guerra Mundial conseguiram demolir esse colosso, imortalizado por Victor Hugo na obra que encantou gerações: O corcunda de Notre-Dame. Dá até para imaginar o Quasímodo chorando, enquanto seu lar era consumido pelas chamas. Para aqueles que tiveram a oportunidade de conhecer a catedral, de se encantar com seus vitrais coloridos, com as relíquias que remontavam à época de Jesus Cristo, ou se emocionar com belíssimo canto gregoriano ecoando pelas paredes do prédio, certamente foi um grande choque e uma tristeza infinita assistir suas paredes e o teto desabando, enquanto os bombeiros faziam o máximo possível para apagar o fogo. A tragédia, por sua vez, nos faz lembrar de outra perda irreparável, que sofremos no ano passado: o incêndio do Museu Nacional.
Antigo Paço de São-Cristóvão, o Museu Nacional foi a residência oficial da família imperial brasileira durante o século XIX. Ali ocorreram alguns dos eventos mais significativos da história do Brasil, como a criação da nossa primeira constituição. No período republicano, o prédio foi transformado em museu e abrigava um dos maiores acervos de peças do mundo, com mais de 20 milhões de itens que remontavam ao período jurássico. Entre os artigos em exposição, talvez o mais valioso fosse o crânio de Luzia, o mais antigo já encontrado no Brasil, cuja descoberta ajudou a redefinir as teorias sobre o povoamento da América do Sul durante o Paleolítico. Por anos, a instituição sobrevivia com uma renda bastante pequena e, em mais de uma ocasião, chegou a fechar suas portas, devido à falta de recursos. Até que no dia 2 de setembro de 2018, o pior aconteceu. Possivelmente ocasionado por uma falha no sistema elétrico, o incêndio logo se alastrou por todo o edifício. Centenas de milhares de anos de história foram consumidos numa única noite, enquanto assistíamos, conforme já pregava Aristides Lobo, bestializados, às vãs tentativas de conter o avanço das chamas. Ao amanhecer do dia 3, muitos tomaram conhecimento do caso. Alguns, souberam da existência do Museu Nacional pela primeira vez.

Incêndio ocorrido na Catedral de Notre-Dame, no dia 18 de abril de 2019.
Enquanto espaço não-formal de educação, o Museu Nacional cumpria uma missão importantíssima: instruir os jovens de hoje naquilo que eles não podem ou não deveriam esquecer. Lidos apenas nos livros didáticos, assuntos como o Antigo Egito, Grécia Clássica, América pré-colombiana, África, entre outros, possuem um caráter bastante artificial. Agora imagine uma aula dentro das galerias do antigo Museu, através da maior coleção egípcia da América Latina, ou de salas contendo afrescos originais de Pompéia. Já pensou também numa aula de biologia, observando a belíssima coleção de crustáceos que costumava ficar exposta na instituição? Infelizmente, essa oportunidade se foi. Lembrar essa perda é como se recebêssemos um soco no estômago, bastante difícil de suportar. O mesmo pode ser dito sobre a belíssima catedral de Notre-Dame, que foi palco de tantos eventos grandiosos. Imagine uma tarde ensolarada do dia 24 de abril de 1558, onde uma jovem Mary Stuart penetrava a nave da catedral, toda vestida de branco, para se casar com o delfim, Francisco de Valois. Ou 14 anos mais tarde, no dia 18 de agosto de 1572, quando a rainha Margot, irmã de Francisco, se casava com Henrique IV de Navarra, cujas bodas serviram de pretexto para um dos maiores massacres de protestantes da história: a fatídica noite de São Bartolomeu.
Todavia, o que os incêndios na Catedral de Notre-Dame e no Museu Nacional nos dizem sobre a valorização do patrimônio histórico em nosso país? As comparações começaram a surgir assim que os valores arrecadados para a restauração da catedral foram revelados. Em apenas três dias, o montante, que já ultrapassou a casa dos 3 bilhões, é infinitamente maior do que as doações arrecadadas para a reconstrução do Museu, que desde o desastre no ano passado permanece em estado crítico, com seus escombros parcialmente escavados. Mas, diferentemente do Museu Nacional, a catedral de Notre-Dame se tornou um símbolo da cultura e da identidade francesa. Daí a preocupação urgente do governo da França e de entidades filantrópicas em restaurar esse monumento. A situação, em comparação, é ilustrativa da crise patrimonial que enfrentamos no nosso país. Quando milhões de dinheiro da verba publicada são aplicados na reforma de estádios de futebol e arenas, e uma quantidade ínfima na cultura, então estamos falando de uma sociedade que relega instituições como o Museu Nacional ao segundo ou terceiro plano, para valorizar outras coisas. Essa constatação se torna tão mais pertinente, quando observamos que não se trata apenas de um caso isolado. Há anos, galerias e exposições têm fechado suas portas nesse país, por falta de assistência, privando-nos assim do acesso a milhares de peças que muito dizem sobre nosso passado e formação social.

Incêndio no Museu Nacional, ocorrido em 2 de setembro de 2018.
Em tempos de crise de identidade, quando abarrotamos os arquivos de itens sem os quais nosso acesso ao passado seria bastante limitado, instituições como museus funcionam como uma espécie de guardiãs da chamada memória nacional. Vivendo numa espécie de presente contínuo, onde as coisas possuem um caráter cada vez mais efêmero, para não dizer descartável, a sociedade moderna transforma tais instituições num repositório de quase tudo aquilo que, no presente, consideramos digno de se recordar. O museu se torna, dessa forma, um lugar de memória, conforme já dizia Pierre Nora. Ele nasce do sentimento de que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, manter celebrações, notariar atas, porque essas operações não são naturais. Se o que eles defendem não estivesse ameaçado, não seria necessário construí-los. Se ainda vivêssemos as lembranças que eles envolvem, sua existência teria pouca ou quase nenhuma utilidade. Por outro lado, caso a história não se apoderasse deles para transformá-los e petrificá-los, eles tampouco se tornariam lugares de memória. O tempo dos lugares é justamente esse em que deixamos de viver sob a intimidade de uma memória, para nos submetermos à visão de uma história reconstituída (NORA, 1993, p. 13).
Para alguns, o que concebemos hoje como memória é a vastíssima constituição de estoque material daquilo que nos é impossível lembrar, mas que poderíamos um dia ter a necessidade de lembrar, como os arquivos públicos, por exemplo. Segundo Pierre Nora:
O sentimento de um desaparecimento rápido e definitivo combina-se com o exato significado do presente e com a incerteza do futuro para dar ao mais modesto dos vestígios, ao mais humilde testemunho a dignidade virtual do memorável. Já não lamentamos o bastante, em nossos predecessores, a destruição ou o desaparecimento daquilo que nos permitia saber, para não cair na mesma recriminação por parte de nossos sucessores? A lembrança é passado completo em sua reconstituição a mais minuciosa. É uma memória registradora, que delega ao arquivo o cuidado de se lembrar por ela e desacelera os sinais onde ela se deposita como a serpente sua pele morta (NORA, 1993, p. 14-15).
Aliado a isso, o medo de que esse dano, assim como ocorreu em outras ocasiões, seja esquecido por todos. Em 2013, o Museu Paulista da USP, mais conhecido como Museu do Ipiranga, em São Paulo, fechou suas portas para reformas na estrutura do prédio. Desde então, permanece isolado e pouco se tem comentado sobre o problema. Tempos depois, em 2015, o Museu de Língua Portuguesa, também em São Paulo, sofreu um grande incêndio. Na época, muitos ficaram chocados. Hoje, ninguém comenta mais o caso. Outras instituições, como o Museu Nina Rodrigues, um dos mais importante em Salvador, foram fechadas por falta de recursos. Fica então a pergunta: de quem é a culpa? Apontar o dedo para as autoridades públicas supostamente responsáveis pela manutenção desses espaços já se tornou quase lugar comum. Difícil mesmo é reconhecer que nós também compartilhamos essa carga, ou pelo menos deveríamos. Uma pesquisa recente constatou que o Museu do Louvre, em Paris, teve mais visitantes brasileiros em 2017 que o próprio Museu Nacional, no Rio de Janeiro. O que ilustra o descaso com que nós, brasileiros, tratamos as instituições culturais do nosso país. Quando abandonamos o patrimônio nacional, quando o desvalorizamos, estamos assim abrindo brechas mais e mais largas para que desastres como o que ocorreu no ano passado se tornem cada vez mais frequentes.
O problema do Brasil é CULTURAL. Todos ficam preocupados com a política. Precisamos de uma nova revolução cultural, como a que aconteceu há 30 anos, quando as idéias comunistas se infiltraram na cultura nacional. Agora precisamos reverter esse processo.
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Muito bom seu artigo. Concordo com tudo que escreveu. Infelizmente nosso povo não valoriza a cultura, por isso está se tornando um povo imbecilizado, principalmente pelos últimos governos que tivemos e que resumiu a nossa cultura a filmes medíocres e músicas de fank. A música clássica então, sofreu demais com isso. Quase perdemos duas das principais orquestras do RJ – a Filarmônica e a Sinfônica, que foram extremamente prejudicadas pela corrupção que quase acabou nosso estado e, principalmente, a cidade do Rio de Janeiro. Dificilmente isso será sanado.
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Gostei muito do artigo. Lamento que no Brasil se Ligue tão pouco a bens culturais.
O romance de Vitor Hugo chama~se “Notre Dame de Paris”! Corcunda de Notre Dame é o nome do filme de desenhos animados
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