José de Alencar e os ‘Perfis de Mulher’: Lucíola, Diva e Senhora

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

Em 1862, com a publicação de Lucíola, José de Alencar dava início à sua serie dos chamados “perfis femininos”, que incluiriam ainda os romances Diva, de 1864, e Senhora, publicado quase uma década depois. As três obras vieram ao público assinadas por uma certa G.M., senhora idosa, cujo único papel nos romances foi o de compilar suas histórias. Conforme ressalta Valéria de Marco, em maio de 1861, Alencar entrou no parlamento para cumprir seu primeiro mandato, que terminaria dois anos depois. Decidiu, entretanto, perseverar na sua carreira de romancista, embora escondido sob um pseudônimo (1986, p. 32). Os três romances seguem a mesma fórmula utilizada por romancistas franceses como Alexandre Dumas e Balzac, dos quais Alencar era assíduo leitor: inicialmente as obras são marcadas por situações de conflito/quebra, seguida por uma reparação/solução. Em todos os três, o enredo gira em torno de um jovem casal, que precisa enfrentar certos obstáculos sociais, como a questão financeira, no caso de Diva e Senhora, por exemplo, e o aspecto (i)moral da prostituição, no que se refere Lucíola. Caso o casal queira permanecer unido, precisam então superar essas barreiras.

Lucíola, primeiro perfil de mulher do autor, é contado sob a perspectiva da personagem Paulo, que se recorda em cartas enviadas à G.M. de seu relacionamento com uma famosa cortesã do império, anos antes da escrita dos eventos narrados, mais precisamente em 1855. Ao evocar o passado, Paulo vai ressignificando sua própria vida, preenchendo as lacunas de suas lembranças e, assim, dando um novo sentido à experiência da qual se recorda. As memórias da personagem são mediadas pelo objeto de que trata a obra, uma imagem ou esboço de mulher, o que norteia tanto o fluxo narrativo, quanto a própria organização das lembranças. Lucíola, assim como Diva, pode ser visto como uma espécie de texto memorialístico, redigido na primeira pessoa, em que os narradores se posicionam como responsáveis pela exibição dos acontecimentos, em diálogo aberto com o leitor, no qual expõem suas opiniões, embora nem sempre estejam muito crentes na precisão de suas lembranças, conforme podemos entender pela fala de Paulo no epílogo da obra: “essas páginas foram escritas unicamente para a senhora. Vazei nelas toda a minha alma para lhe transmitir um perfume de mulher sublime, que passou na minha vida como sonho fugace. Creio que não o consegui” (ALENCAR, 1998, p. 127).

“Em 1862, com a publicação de Lucíola, José de Alencar dava início à sua serie dos chamados “perfis femininos”, que incluiriam ainda os romances Diva, de 1864, e Senhora, publicado quase uma década depois.” (Detalhe da tela de Franz Xaver Winterhalter)

De acordo com Le Goff, como propriedade de conservar certas informações, a memória “remete‐nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas” (1994, p. 423). Escrevendo anos depois do ocorrido[1], Paulo constantemente atualiza as suas lembranças, medindo o impacto que aquelas experiências tiveram na sua vida, no instante em que as coloca no papel. Ao fazê-lo, a personagem ficcionaliza suas próprias memórias, mediante o processo de escrita e preenchimento de lacunas das quais aparentemente não se recorda, atualizando as lembranças e lhes dando nova importância. Ao escrever suas memórias, o narrador seleciona, apaga e/ou ressalta certos aspectos de suas vivências passadas, criando assim um simulacro de sua existência, exercendo uma função de editor das próprias lembranças. O romance é composto das “reminiscências do narrador”, que tenta reconstituir o passado, evocando lugares e objetos ligados à mulher da qual se recorda[2], como os fios de cabelo, que cortou do cadáver da amada, o aspecto detalhado dos vestidos que costumava usar, ou os ambientes que ela frequentava, como o teatro, a rua do Ouvidor, ou mesmo a própria casa, onde ocorriam os encontros amorosos dos dois.

Em Lucíola, Diva e Senhora, a memória é trabalhada por José de Alencar no seu aspecto coletivo, já que está ligada a um determinado grupo, nesse caso, à elite imperial, e não apenas a um indivíduo. No terceiro dos três perfis, por sua vez, podemos falar ainda em memória das práticas relacionadas ao casamento, que fornece ao autor a matéria que seria transformada ficcionalmente no texto, conforme discutiremos no capítulo 3. Trata-se, nesse caso, de uma memória ligada à sociedade rica, não aos membros das camadas mais populares que habitavam o Brasil oitocentista. Os ambientes descritos por Alencar, o vestuário das personagens, os locais de sociabilidade, pertencem mais ao universo dos ricos, com os quais o autor convivia, do que ao povo.

Ao se recordar de seu passado com Lúcia, Paulo não pode deixar de se referir a outras personagens que também faziam parte daquela vivência, como o Sá, o Cunha, o Couto e o Rochina, que tiveram ligações íntimas com a cortesã antes dele e frequentavam os mesmos ambientes, como o teatro e a Rua do Ouvidor. A presença dessas personagens funciona como uma espécie de lembrete a Paulo da vida pregressa de sua amada, que, apesar de passar ao longo da obra por um processo de regeneração espiritual, não conseguiu apagar de si a lembrança da cortesã, que dançava seminua na casa do Sã, interpretando o papel de uma bacante. A memória coletiva construída em torno de Lúcia/Maria da Glória não deixava cair no esquecimento a cortesã que existia dentro dela. A própria personagem dizia possuir uma espécie de dupla-personalidade:

Aquele esquecimento profundo, aquela alheação absoluta do espírito, que eu sentira da primeira vez, continuou sempre. Era a tal ponto que depois não me lembrava de coisa alguma; fazia-se como que uma interrupção, um vácuo na minha vida. No momento em que uma palavra me chamava ao meu papel, insensivelmente, pela força do hábito, eu me esquivava, separava-me de mim mesma, e fugia deixando no meu lugar outra mulher, a cortesã sem pudor e sem consciência, que eu desprezava, como uma coisa sórdida e abjeta (ALENCAR, 1998, p. 111).

Por mais que a personagem tentasse manter um estado de pureza espiritual, seu corpo atuava como uma lembrança da vida que ela precisou levar para salvar sua família da doença e depois para sobreviver. A sociedade não permitiria que Paulo ou Maria da Glória se esquecessem que um dia ela havia sido Lúcia, a cortesã do império: “a lama deste tanque é meu corpo: enquanto a deixam no fundo e em repouso, a água está pura e límpida” (ALENCAR. 1998, p. 104). Para a personagem, porém, o repouso que ela tanto almejava só viria com a morte, conforme veremos no capítulo 2.

Após compilar suas memórias, que seriam publicadas pela senhora G.M., Paulo avalia o impacto que a relação com Lúcia teve em sua vida:

Há seis anos que ela me deixou; mas eu recebi a sua alma, que me acompanhará eternamente. Tenho-a tão viva e presente no meu coração, como se ainda a visse reclinar-se meiga para mim. Há dias no ano e horas no dia que ela sagrou com sua memória, e lhe pertencem exclusivamente. Onde quer que eu esteja, a sua alma me reclama e atrai; é forçoso então que ela viva em mim. Há também os lugares e objetos onde vagam seus espíritos; não os posso ver sem que o seu amor me envolva como uma luz celeste (ALENCAR, 1998, p. 136).

Os lugares frequentados pelos amantes, bem como os objetos compartilhados por ambos, dispostos no tempo e no espaço, teriam o poder de evocar em Paulo uma lembrança mais vívida de Lúcia. Paulo envia a G.M uma mecha de cabelo da amada, para que sua interlocutora tenha uma noção de como ela poderia se parecer em vida, caso o relato de sua aparência não tenha sido satisfatório: “há nos cabelos da pessoa que se ama não sei que fluido misterioso, que comunica com nosso espírito”, uma vez que a mecha estaria “impregnada de seiva e da fragrância da criatura angélica, lhe revele o que eu não pude exprimir” (ALENCAR, 1998, p. 127). Nessa passagem, espírito e memória em Alencar são entendidos como uma só força, aproximando-o um pouco do sentido bergsoniano, exposto mais acima, embora a memória trabalhada pelo romancista ultrapasse as barreiras da subjetividade.

“Os três romances seguem a mesma fórmula utilizada por romancistas franceses como Alexandre Dumas e Balzac, dos quais Alencar era assíduo leitor: inicialmente as obras são marcadas por situações de conflito/quebra, seguida por uma reparação/solução” (Detalhe da tela de Frans Xaver Winterhalter)

O segundo perfil de mulher criado por José de Alencar, Diva, segue a mesma fórmula consagrada de Lucíola. Nesse romance, publicado dois anos após o primeiro perfil, nos deparamos novamente com duas personagens já conhecidas: Paulo, que compila o relato do amigo Dr. Augusto Amaral; e G.M, que supostamente o publica em forma de romance. Numa espécie de bilhete endereçado a G.M., Paulo cita alguns trechos de um que Amaral lhe enviou, que dizia o seguinte:

Adivinho que estás muito queixoso de mim, e não tens razão.

Há tempos me escreveste, pedindo-me notícias de minha vida íntima: desde então, comecei a resposta, que só agora concluí: é a minha história numa carta.

Foste meu confidente, Paulo, sem o saberes; a só lembrança da tua amizade bastou muitas vezes para consolar-me, quando eu derramava neste papel, como se fora o invólucro de teu coração, todo o pranto da minha alma (ALENCAR, 1998, p. 10).

O início do romance, com a apresentação da carta a G.M. onde o narrador-personagem apresenta as circunstâncias em que aquelas memórias foram escritas, funciona como uma espécie de truque narrativo, bastante comum em outros romances do período. Antes do início da obra, apresenta-se a transcrição da carta, cuja intenção é criar um efeito de verdade, fazendo com que o leitor acredite que aquele é um testemunho real, embora não deixe de fazer parte do enredo, sendo, portanto, ficção. Alencar constrói sua trama em ambientes reais, como o Cassino, onde ocorriam os bailes nos quais Emília dançava. A descrição da geografia do Rio de Janeiro, seu clima, suas casas, ruas e lojas produzem no romance a verossimilhança de uma situação. A corte fluminense se torna o palco para uma trama fictícia, que, apesar disso, tenta convencer o leitor de sua possível veracidade. Essa estratégia foi repetida cerca de dez anos depois, em Senhora, que, apesar de não ser narrado em primeira pessoa como os outros dois perfis, baseia-se num suposto relato recebido e compilado por G.M.

Em Senhora, José de Alencar mistura pessoas reais com personagens imaginários. Um exemplo disso é o pintor Pedro Américo, autor do quadro “independência ou morte”, que teria executado os retratos de Aurélia e Fernando. No prefácio ao leitor, Alencar tenta novamente convencê-lo da veracidade da narrativa:

Este livro, como os dois que o precederam [Lucíola e Diva], não são da própria lavra do escritor, a quem geralmente os atribuem.

A história é verdadeira; e a narração vem de pessoa que recebeu diretamente, e em circunstância que ignoro, a confidência dos principais atores deste drama curioso.

O suposto autor não passa rigorosamente de um editor. É certo que tomando a si o encargo de corrigir a forma e dar-lhe um lavor literário, de algum modo apropria-se não da obra, mas do livro (ALENCAR, 1997, p. 15).

Nessa passagem, Alencar se escusa da responsabilidade como autor da obra, arrogando para si a mera função de “editor” do relato. Nesse caso, o trabalho exercido por ele se assemelha aos das personagens Paulo, em Lucíola, e Augusto, em Diva.

Por outro lado, José de Alencar ressalta que, naquelas páginas, “encontram-se muitas vezes exuberâncias da linguagem e afoitezas da imaginação, a que já não lança a pena sóbria e irrefletida do escritor sem ilusões e sem entusiasmos” (ALENCAR, 1997, p. 15). Aqui o narrador expunha com maior sinceridade o poder criativo que a imaginação teve sobre o processo de compilação da história, diferentemente do que ocorre nos perfis anteriores. Em Lucíola e Diva, a narrativa está condicionada às impressões pessoais que os narradores/personagens têm das suas vivências, embora o espaço temporal entre aquilo que foi vivido e aquilo que está sendo contado altere substancialmente estas impressões que restaram do passado. Tanto Paulo quanto Augusto tentam manter uma certa fidelidade aos acontecimentos, embora façam uma escolha arbitrária dos fatos rememorados. A memória é assim manipulada de forma a servir às necessidades das personagens.

Na qualidade de “editores” de suas próprias vidas, Paulo (Lucíola) e Augusto (Diva) pretendem reconstituir o passado, usando uma linguagem essencialmente romântica. Com efeito, eles não se recordam dos fatos exatamente como eles aconteceram, e sim como acham que ocorreram. Ao evocar as lembranças, eles tentam organizar as imagens de uma forma coerente e em conformidade com seus propósitos: narrar a experiência vivida ao lado da mulher amada. Suas recordações são assim moldadas pelos vários grupos do qual fizeram parte na vida, seja o familiar, o acadêmico ou o profissional. A reconstrução do passado, feita pelos narradores dos romances aqui analisados, por mais cristalinas que sejam suas lembranças, já não são mais a mesma imagem de quando foram experimentadas. À medida que os anos foram passando, a percepção que temos das coisas vai se alterando. Isso é mais válido para o caso de Lucíola e Diva, do que de Senhora. O passado tal qual ocorreu é uma coisa impossível de viver novamente.

Diferentemente de Lucíola e Diva, a linguagem de Senhora é marcada pela ironia. O relato é contado sob o ponto de vista de um terceiro, não de uma testemunha ocular:

– Já li a Diva, disse depois de corresponder ao cumprimento.

– Então? Não é uma mulher impossível?

– Não conheço nenhuma mulher assim. Mas também só podia conhecê-la Augusto Sá, o homem que ela amava, e o único ente a quem abriu sua alma.

– Em todo caso é um caráter inverossímil.

– E o que há de mais inverossímil que a própria verdade? Retorquiu Aurélia repetindo uma frase célebre. Sei de uma moça… Se alguém escrevesse sua história, diriam como o senhor: “É impossível! Esta mulher nunca existiu”. Entretanto, eu a conheci.

Mal pensava Aurélia que o autor de Diva teria mais tarde a honra de receber indiretamente suas confidências, e escrever também o romance de sua vida, a que ela faz alusão (ALENCAR, 1997, p. 171).

A passagem acima se configura noutra estratégia utilizada por Alencar para produzir um efeito de verdade na sua obra, de modo que a ficção passe aos olhos do leitor como não-ficção. Ao citar-se na terceira pessoa, o autor rebate algumas críticas feitas à Diva, ao mesmo tempo em que faz referência às circunstâncias em que teria recebido as lembranças de Aurélia, transformando-as depois em romance. A fala da personagem Aurélia é interessante, pois ela revela que a Emília retratada em Diva estava condicionada à visão subjetiva de Augusto. O mesmo poderia ser dito de Lúcia em Lucíola. Paulo colocava a amada numa espécie de pedestal, embora a memória construída em torno dessa personagem divergisse da opinião de outras pessoas que a conheceram, como o Sá, o Couto e o Rochinha.

“Tenho-a tão viva e presente no meu coração, como se ainda a visse reclinar-se meiga para mim” (tela de Franz Xaxer Winterhalter)

A construção dos cenários nos romances de ficção urbana de José de Alencar, por sua vez, é outro elemento que contribui para essa jogada do autor, de criar um fundo de veracidade para as duas histórias, embora jamais tenham abandonado sua característica ficta. Por esse motivo, os romances alencarianos são algumas vezes tomados como fonte parcial para se analisar a sociedade de corte no Rio de Janeiro imperial. Se estudadas sob em perspectiva comparada, elas podem oferecer um ponto de vista interessante sobre a vida na corte, os locais de sociabilidade, e a construção idealista dos papeis que deveriam ser desempenhados por homens e mulheres no período,

Notas:

[1] Tanto em Lucíola, como em Diva e Senhora, a história é narrada anos depois que aqueles acontecimentos se passaram, o que é exposto no início de cada romance. Em Lucíola, Paulo inicia suas memórias da seguinte forma: “A primeira vez que cheguei no Rio de Janeiro foi em 1855” (ALENCAR, 1998, p. 13). No último capítulo, ele diz: “Há seis anos que ela [Lúcia]” me deixou” (ALENCAR, 1998, p. 128). Em Diva, Augusto principia seu relato dizendo que “Emília tinha quatorze anos quando a vi pela primeira vez” (ALENCAR, 1998, p. 11). Já em Senhora, narrado em terceira pessoa, o espaçamento temporal entre o presente e aquilo que está sendo narrado é indicado pela primeira frase do romance: “Há anos raiou no céu fluminense uma nova estrela” (ALENCAR, 1997, p. 17).

[2] Na opinião de Éclea Bosi, “na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstituir, repensar, com imagens de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve‐se duvidar da sobrevivência do passado “tal como foi”. Nesse caso, a lembrança seria uma “imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual” (BOSI, 2003, p. 55).

Notas sobre as Referências Bibliográficas:

O texto acima foi extraído da dissertação de mestrado de Renato Drummond Tapioca Neto, escrita sob orientação do professor Dr. Marcello Moreira, no Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade. Para uma referência completa das fontes utilizadas para a escrita desse texto, acesse: http://www2.uesb.br/ppg/ppgmls/wp-content/uploads/2017/08/Disserta%C3%A7%C3%A3o-Renato-Drummond-Tapioca-Neto.pdf

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