“É uma revolta?” – “Não, senhor. É uma Revolução!” – Como Luís XVI e Maria Antonieta reagiram à notícia da queda da Bastilha

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

14 de julho de 1789 foi mais um dia comum em Versalhes. Nobres e cortesãos passeavam pelas longas galerias do palácio, enquanto os representantes do povo conferenciavam na antiga quadra de tênis, transformada em Assembleia Nacional. A rainha Maria Antonieta permanecia ocupada com seus assuntos particulares, enquanto o rei Luís XVI praticava seu esporte favorito, a caçada. Parece que os resultados não foram muito bons para o monarca, pois mais tarde ele anotou rien (nada) no seu Journal, em referência à caça mal sucedida. No final da noite, terminada a cerimônia de deitar, Luís pôde finalmente dormir. Assim terminou mais um dia corriqueiro na corte mais luxuosa da Europa. Porém, na madrugada seguinte, ouviu-se no quarto do rei uma inquietação, vinda diretamente das antecâmaras. Sem qualquer permissão, o duque de Liancourt, nobre com tendências liberais, invadiu os aposentos de Luís XVI para lhe entregar uma preocupante notícia: uma multidão furiosa havia invadido a fortaleza da Bastilha em busca de armamento e pólvora. Sem compreender direito a intensidade da mensagem, talvez por estar ainda sonolento, o rei simplesmente perguntou: “é uma revolta? ”. A resposta de Liancourt foi mais do que imediata: “Não, Senhor. É uma revolução!”.

Embora Luís certamente desconsiderasse o peso real daquelas palavras naquele momento, foi assim que a monarquia francesa, personificada na figura do rei, tomou conhecimento do seu iminente fim. Horas antes, em Paris, uma multidão enfurecida pela presença das tropas reais na antiga capital do reino e pela demissão no ministro das finanças, Jacques Necker, havia tomado de assalto o Hôtel des Invalides e se apoderado dos mosquetes que ali estavam guardados. Faltava apenas uma coisa: a pólvora, que poderia ser encontrada numa antiga fortaleza medieval, prisão lendária por ser considerada um antro de tortura e mortes indizíveis, e que era vista um símbolo do poder absolutista do rei da França. Por volta das 9 da manhã do dia 14, podia-se ouvir em meio a essa multidão, repetidas vezes, o grito: “à Bastilha”. Foi para lá que os revoltosos se dirigiram, sitiando o edifício. Apesar dos seus esforços para deter a turba, o governado da Bastilha, De Launay, não conseguiu contê-la. O lugar estava quase desocupado, exceto pela presença de poucos presos. Vários guardas foram assassinados, incluindo o próprio De Launay, que foi brutalmente esfaqueado e teve sua cabeça espetada numa lança, posta em desfile no meio da multidão. Essa tradição se tornaria bastante popular nos próximos anos.

Com a Bastilha tomada e aos poucos demolida, o povo de Paris deixava uma mensagem clara aos seus soberanos. Não era apenas aquela fortaleza, que por tantos anos atemorizou a população, que eles pretendiam derrubar, mas todos o sistema de privilégios feudais do antigo regime. Era o início da maior revolução da história ocidental. Na opinião de Stefan Zweig:

Apenas com a Revolução Francesa propriamente dita o conceito de “revolução” adquiriu aquele significado abrangente, indômito e histórico hoje utilizado por nós. Somente o tempo cunhou-o em sangue e espírito, e não a primeira hora. Curioso paradoxo então: não foi porque Luís XVI não entendeu a revolução que ela se tornou para ele tão funesta, e sim o contrário, o fato de esse homem de talento medíocre se esforçar de maneira comovente para entendê-la (2013, p. 235).

Muito se tem gracejado a respeito da primeira reação do rei à notícia da queda da Bastilha. Contudo, é fácil julgar suas atitudes e/ou o que ele deveria ter feito, quando se está na confortável posição de uma longa distância temporal e com um abrangente conhecimento dos fatos subsequentes. Como bom conhecedor de História, e leitor assíduo de David Hume[1], Luís XVI talvez tenha percebido algum sinal da avalanche que se seguiria àquele indício de tempestade.

Duquesa de Polignac, por Élisabeth Louise Vigée Le Brun.

Mas, e quanto à rainha? A reação de Maria Antonieta foi registrada por sua primeira dama camarista, Madame Campan. Nas semanas antecedentes, o sono de Antonieta fora perturbado pela doença do delfim Luís José, morto aos sete anos no dia 4 de junho. Na noite de 14 para 15 do mês seguinte, porém, ela dormiu tranquilamente, para acordar no meio do caos que as notícias vindas de Paris provocaram na corte. O povo nas ruas clamava não só pela recontratação de Necker, como também por “morte a Artois[2] e aos Polignac”. Era bem conhecido o excesso de atenções coma as quais Maria Antonieta cobria sua amiga favorita, Yolande Gabrielle, duquesa de Polignac, bem como à sua família. Muitos cartunistas do período se aproveitaram dessa relação de amizade para acusar a rainha de lesbianismo e coloca-la como protagonista de certas caricaturas, nas quais ela liderava verdadeiras orgias sexuais no Petit Trianon, ao lado de suas amigas Polignac e Lamballe. Desesperada, Antonieta rogou à favorita para que esta partisse imediatamente, “para escapar da fúria dos meus inimigos”. Ao atacar Yolande, os parisienses na verdade pretendiam atingir a própria soberana. Por medo ou por receio, ela queimou muitos documentos confidenciais, entre eles os que contabilizavam as somas em dinheiro dispensadas aos Polignac ao longo dos anos.

Com efeito, o medo que a rainha demonstrou pela vida de sua amiga evidencia o quão relevantes e perigosos ela julgava os acontecimentos do dia 14. Do contrário, não teria se deixado amedrontar tão rapidamente. Em vista do ódio despertado pela duquesa de Polignac, Maria Antonieta considerou necessário que a família dela (marido e filhos) partissem para a fronteira suíça o quanto antes. Outros príncipes de sangue, como Condé e Conti, além do conde e da condessa d’Artois, também foram aconselhados a fugir. A princípio, Yolande se recusou a ir embora. A rainha, por sua vez, lhe disse: “não sejas vítima de teu apego por mim e de minha amizade por ti”. Com a ajuda do marido, ela conseguiu convencer a duquesa. Luís XVI já havia dado ordens para a partida de Condé e d’Artois e faria o mesmo com a família Polignac. O duque e a duquesa fugiram disfarçados de criados, levando três dias e três noites para chegar na Suíça. Ali, Yolande adotou o pseudônimo de “Madame Erlanger”, que utilizaria para se corresponder com os monarcas. Nunca mais a rainha e a “mais terna de suas amigas” voltariam a se ver[3]. Nas suas Memórias, Madame Campan relata a inquietação da rainha nas noites seguintes, especialmente após a partida do abade de Vermond, seu conselheiro e antigo preceptor.

Maria Antonieta, por Adolf Ulrik Wertmüller (1788)

Com a ausência da favorita e de outros cortesãos que integravam seu círculo íntimo, Maria Antonieta se viu cada vez mais isolada em Versalhes. Nesse contexto, cabe-nos perguntar: por que a rainha também não partiu junto com os filhos? Como de longe era a pessoa mais impopular da corte, sua vida corria mais perigo do que qualquer outra. A resposta para isso se encontra no conceito de dever de uma rainha consorte. “Por mais assustada que ficasse com o espectro sinistro de sua impopularidade e apreensiva de que pudesse acontecer o pior, Maria Antonieta estava decidida a preservar sua posição de esposa do rei e mãe do delfim”, explica Antonia Fraser, biógrafa de Antonieta (2009, p. 317). Ela só partiria se fosse acompanhada pelo rei. Chegou a ser cogitada uma fuga da família real para Metz, uma das fortalezas mais inexpugnáveis da Europa, localizada na banda oriental da França, às margens do Morsela. Essa sugestão foi feita pelo barão de Breteuil e endossada pelo conde d’Artois. Segundo Madame Campan, a rainha chegara a concordar com o plano e ordenara que começassem a embalar suas coisas. Luís XVI, porém, logo foi convencido do contrário e decidiu ficar, frustrando assim as expectativas da esposa. Posteriormente, o rei se arrependeria dessa decisão em carta ao conde Fersen: “perdi a minha oportunidade e ela nunca mais voltou”.

Em vez de fugir para Metz, como era o desejo da rainha, Luís XVI, a pedido da Assembleia Nacional, decidiu ir a Paris em 17 de julho, com a intensão de promover a calma. Maria Antonieta foi deixada em Versalhes, em estado de grande agitação, temendo nunca mais ver o marido. Estado esse que foi agravado pelo fato do rei ter dado ao seu irmão, o conde de Provance, plenos poderes em sua ausência como lugar-tenente geral do reino. Enquanto o rei estava em Paris, Antonieta se trancou com os filhos no quarto, temendo pela vida do pai das crianças. Madame Campan relatou que “um silêncio de morte reinava por todo o palácio e era grande o temor de todos nós”. Porém, o medo da rainha, naquele momento, não se concretizou. Para seu alívio, Luís retornou a Versalhes mais tarde naquele dia. Ainda segundo Madame Campan, o rei repetia várias vezes que “felizmente, não houve derramamento de sangue, e juro que, por minha ordem, jamais correrá uma gota de sangue francês” (apud CAMPAN, 2008, p. 183). Se por um lado a chegada a salvo do rei encheu sua família de alegria, por outro, Luís foi obrigado a fazer uma série de concessões consideradas pelo duque de Dorset como “humilhantes”, como a nomeação de Bailly para prefeito de Paris e de La Fayette como comandante da Guarda Nacional.

Luís XVI, por Antoine-François Callet, (1786).

Os eventos decorridos no primeiro mês da Revolução marcaram o prelúdio do fim da monarquia absolutista na França. O Grande Século de Luís XIV havia ficado definitivamente para trás. No seu lugar, instaurara-se a incerteza, o medo e a insegurança. Como consequência disso, Luís XVI e Maria Antonieta ficaram mais próximos do que alguma vez foram nos anos anteriores do seu casamento. Até o dia 5 de outubro, tinha-se a impressão de que as coisas mais uma vez haviam se estabilizado em Versalhes. Aos poucos, os monarcas foram retomando suas atividades diárias, tentando fazer de conta que a situação estava sob controle. Aquela era a calmaria que geralmente precede uma grande tempestade.  No dia 6, porém, a família real foi escoltada por uma multidão enfurecida até as Tulheiras, em Paris, onde passariam a viver. Nunca mais regressariam ao elegante palácio de Versalhes, que durante 100 anos foi o centro da vida luxuosa na Europa. Ali o despotismo conheceu seu momento de ápice, como também o seu declínio. A partir do dia 14 de julho de 1789, as vidas de Luís XVI e Maria Antonieta mudariam para sempre. Aos poucos, eles foram forçados a admitir que a Revolução era um fato. Ao depredarem a Bastilha, e com ela fazerem ruir a sociedade do antigo regime, o povo enfim tomou consciência do seu poder para mudar o curso da história.

Referências:

CAMPAN, Madame. Memórias. Tradução de Carlos Vieira da Silva. Lisboa: Aletheia, 2008.

CARLYLE, Thomas. História da Revolução Francesa. Tradução e prefácio de Antônio Ruas. 3ª ed. São Paulo: Melhoramentos, [196-].

FÉLIX, Joël. María Antonieta y Luis XVI: biografía política de la pareja real. Tradução de Silvia Kot. Buenos Aires: Ateneo, 2008.

FRASER, Antonia. Maria Antonieta. Tradução de Maria Beatriz de Medina. 4ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2009.

GONCOURT, Edmond e Jules de. Maria Antonieta. Tradução de Celestino da Silva. Rio de Janeiro: Vechi, [19–].

HASLIP, Joan. Maria Antonieta. Tradução de Eduardo Francisco Alves. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989.

LEVER, Evelyne. Maria Antonieta: a última rainha da França. Tradução de S. Duarte. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

MICHELET, Jules. História da Revolução Francesa: da queda da Bastilha à Festa da Federação. Tradução de Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras/Círculo Do Livro, 1989.

PRICE, Munro. A queda da monarquia francesa: Luís XVI, Maria Antonieta e o barão de Breteuil. Tradução de Julio Castañon. Rio de Janeiro: Record, 2007.

SEWARD, Desmond. Marie Antoinette. Nova Iorque: St. Martin’s Press, 1981.

VINCENT, Bernard. Luís XVI. Tradução de Julia da Rosa Simões. Porto Alegre: L&PM Editores, 2007.

ZWEIG, Stefan. Maria Antonieta: retrato de uma mulher. Tradução de Irene Aron. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

Notas:

[1] Autor de História da Inglaterra.

[2] Carlos, conde d’Artois, irmão de Luís XVI e futuro rei Carlos X da França.

[3] Yolande faleceu em 9 de dezembro de 1793, em Viena, pouco depois de saber da morte de Maria Antonieta.

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