Wu Zetian: a primeira (e única) mulher a se tornar imperador da China – Parte II

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

De concubina imperial ao posto de imperador, o caminho de Wu Zetian ao poder foi marcado por grandes desafios e muito jogo de equilíbrio, combinados a uma mente de estrategista e, em alguns casos, sangue frio. Embora exercesse grande influência nas decisões do marido, o imperador Gaozong, em público ela procurava manter a imagem de esposa virtuosa e respeitável. Tendo conseguido eliminar seus inimigos, incluindo a antiga imperatriz, Lady Wang, ela havia se tornado de fato a mulher mais poderosa da China medieval. Um exemplo de sua influência sob o império pode ser destacado ainda no ano de 666, quando ela liderou um grupo de mulheres até o Monte Tai (antigo local de cerimônias), e comandou uma série de rituais que, de acordo com o costume, deveriam ser executados por homens. Uma vez que recebera do pai uma educação elevada, para Wu, as barreiras que dividiam os sexos eram menores do que a sociedade de seu tempo estava preparada para aceitar. Sua história nos serve, portanto, para repensar as relações de gênero estabelecidas na China do século VII, visto que Wu começou a desprezar as antigas convenções sociais, que, por sua vez, delimitavam os espaços e papeis que deveriam ser desempenhados por homens e mulheres.

Imagem póstuma da imperatriz Wu.

Com efeito, Wu enxergava esses papeis sob uma ótica diferente. Para ela, não havia motivos significativos que impedissem as mulheres de executar determinadas práticas que, supostamente, pertenciam à esfera de ação masculina. Desse modo, ela não pediu permissão ao marido para guiar aquele grupo de mulheres até o Monte Tai. Não obstante, é creditado a ela a realização de campanhas militares contra a Coréia no ano de 668, que acabariam por reconduzir aquela região à posição de Estado Vassalo da China. Muito embora seu nome estivesse associado à campanha da Coréia, a participação do imperador Gaozong nesses eventos é quase insignificante. Ele havia contraído uma doença que afetou profundamente sua visão[1], de modo que não estava em condições de liderar uma campanha e precisava do auxílio de um leitor para tomar conhecimento das informações contidas nos relatórios de guerra. Esse noticiário, contudo, era sempre supervisionado pela esposa, que ocultava algumas passagens do marido. Quando, em 674, Gaozong assumiu o título de Tian Huang (Imperador do Céu), Wu mudou de nome para Tian Hou (Imperatriz do Céu). Eles governariam juntos até 683, ano da morte de Gaozong.

Após o falecimento do imperador, seu filho com Wu assumiu o trono como Zhongzong. Por intervenção de sua esposa, Lady Wei, o novo imperador se recusou a governar com o auxílio da mãe. O pai da nova imperatriz consorte fora nomeado primeiro ministro, procurando favorecer aos interesses de sua família. Para Wu, essa situação era insustentável. Enraivecida pelo desprezo da nora e a indiferença do filho, ela conseguiu com que Zhongzong fosse acusado de traição e, como punição, fora condenado ao exílio na companhia da esposa. O trono passou então para as mãos do segundo filho de Wu, Ruizong. Este tampouco se mostrara um sucessor a altura do cargo que ocupava, para frustração de sua mãe. Em 690, Wu forçou este segundo filho a abdicar do posto de imperador, assumindo ela mesma o cargo como Wu Zeitan, imperador da China. Foi a primeira (e única vez) em que uma mulher se sentou no trono do dragão, governando diretamente, e não através de homens. A escolha do seu nome como imperador, “Zeitan”, significava “governante dos céus”. “Wu”, por sua vez, poderia ser traduzido como “arma” e/ou “força militar”. Com isso, ela pretendia passar para a população o nítido recado de que uma nova ordem havia chegado ao império.

Uma das primeiras medidas de Wu como governante foi mudar o nome do Estado de Tang para Zhou. Essa era uma prática comum quando uma nova família de governantes chegava ao poder. Cada dinastia de imperadores emprestou seu nome às fases da história da China. Desse modo, Wu dava continuidade a uma tradição milenar, deixando ao mesmo tempo claro que, a partir do seu governo, uma nova era se iniciava. Para garantir sua posse do trono, ela mandou prender cada membro da família real da dinastia Tang, entre eles, o futuro imperador Xuanzong, proclamando-se em seguida a encarnação do Buda Maitreya, para quem ela comissionou a feitura de estátuas nas grutas de Longmen. Os rostos desses monumentos eram executados à imagem na nova imperatriz reinante. Ela pretendia passar a ideia de que era uma governante divina, “enviada dos céus” para liderar a China. No plano político, ela organizou uma força policial secreta, cuja função era mantê-la informada de cada conspiração que pudesse acontecer dentro e fora das fronteiras do seu estado. Graças a isso, ela pode sufocar movimentos de revolta contra sua autoridade antes mesmo que estes fossem deflagrados; livrou-se de oficiais traidores, banindo-os ou executando-os; e reformou toda a estrutura do governo, extinguindo cargos considerados supérfluos e reduzindo os gastos públicos.

Wu favoreceu a ascensão de intelectuais e burocratas de talento, passando por cima das antigas alianças familiares baseadas no dinheiro.

Com efeito, Wu favoreceu a ascensão de intelectuais e burocratas de talento, passando por cima das antigas alianças familiares baseadas no dinheiro. Nenhuma área social permaneceu intocada pelo seu governo. Nem mesmo o alfabeto chinês ficou incólume: foram criados novos caracteres no sistema de escrita, que substituíram os 20 ou 30 caracteres antigos. Muito embora essa reforma tenha sido desfeita após o reinado de Wu, tal evidência nos serve para demonstrar até que ponto a imperatriz chegou na sua intenção de criar uma nova ordem para a China, alterando até mesmo as palavras que eram utilizadas pela classe letrada do período. Wu havia eliminado toda a antiga e extensa burocracia estatal, que separava os desejos do povo dos ouvidos de seus soberanos, possibilitando assim uma forte conexão com seus súditos. Ela possuía uma espécie caixa, onde depositava as petições, e que continha quatro seções: uma para os homens que buscavam cargos no governo; outra para as críticas feitas por cidadãos às decisões judiciais; uma para relatar casos sobrenaturais, estranhos e tramas secretas; e outra para arquivar acusações e queixas.

No plano da educação, ela procurou melhorar o sistema de ensino, com a contratação de professores qualificados. O departamento de agricultura e o sistema de coleta de impostos também passaram por sérias transformações. Pequenos e grandes proprietários foram taxados de acordo com suas posses. Manuais agrícolas foram escritos e distribuídos gratuitamente, ensinando a como cavar o solo e a construir valas de irrigação. Sua equipe fez uma redistribuição da terra, de modo que todos tivessem porções iguais para cultivar. Não obstante, ela estatizou propriedades de particulares e as concedeu aos pequenos agricultores. Sob o reinado de Wu, a produção agrícola havia alcançado números até então surpreendentes para o período. Ela também reformou os exames de admissão de militares, colocando a competência acima dos antigos privilégios aristocráticos. O sucesso da campanha na Coréia havia inspirado a confiança e o respeito dos generais para com sua nova imperatriz, sem questionar qualquer uma de suas ordens. Ela ainda conseguiu reabrir a Rota da Seda, bloqueada por causa da praga de 682. Suas medidas, entretanto, acarretariam forte oposição entre a antiga aristocracia, que daria início a uma campanha de difamação da imagem da imperatriz.

A partir do ano de 697, o poder de Wu Zetian começou a entrar em declínio, na medida em que ela passou a negligenciar certas obrigações de Estado para passar mais tempo na companhia de seus jovens amantes. Entres seus favoritos estavam os dois irmãos Zhang. Boatos de que a imperatriz passava horas trancada com eles bastaram para escandalizar a população, especialmente por causa da idade avançada da monarca, que se deitava com homens muitos mais jovens do que ela. Para os chineses, era aceitável (e até recomendável) que um imperador tivesse concubinas mais jovens. Mas, no caso de Wu, primeira mulher a usar a coroa imperial, a situação mudava drasticamente. Apesar de seu comportamento liberal no que se referia aos papeis sócias de homens e mulheres naquela sociedade, haviam coisas que seus súditos não conseguiam (ou não queriam) tolerar. A crescente histeria em torno da vida privada da imperatriz despertou em Wu um intenso estado de tensão: qualquer pessoa minimamente suspeita de deslealdade ou traição poderia ser banida ou executada. Cansados então do despotismo e arbitrariedade da monarca, seus oficiais arquitetaram um golpe palaciano, assassinando os irmãos Zhang em 704 e forçando Wu a abdicar do trono em favor de seu primogênito, Zhongzong, que estava no exílio com a esposa.

Placa memoria da imperatriz Wu, próximo ao seu túmulo. Os escritos sagrados foram apagados por seus sucessores.

Com a saúde debilitada, Wu Zetian veio a óbito um ano após sua abdicação ao trono do dragão. Seu filho, um monarca fraco, era completamente dominado por Lady Wei, que reinava em seu lugar. A nora tomara assim o exemplo a antiga imperatriz. Entretanto, o clima de descontentamento era favorável para o surgimento de facções adversárias, que pretendiam por Ruizong no lugar do irmão mais velho. Este último chegou ao poder em 710, com a ajuda de sua irmã, a princesa Taiping. Juntos, eles destronaram a imperatriz Wei, que havia assassinado o marido, e condenado toda a sua família à morte. O governo de Ruizong, porém, durou apenas dois anos. Ele desistiu da coroa em nome do filho, Li Longji, que governaria por 44 anos sob o título de imperador Xuanzong. Quanto à imperatriz Wu, apesar de toda a prosperidade que seu reinando trouxe para o país, ela seria lembrada principalmente pelos supostos crimes cometidos contra amigos e familiares. Tanto em vida quanto na morte, ela permanece uma figura controversa. Até hoje, seu túmulo, localizado num lugar simplório e de difícil acesso em Qian County (província de Shanxi) permanece inviolado, seja por salteadores ou por arqueólogos. Ali repousam os restos da primeira e única mulher na história que usou o título de imperador da China.

Leia a primeira parte, clicando aqui!

Bibliografia:

CONLIFE, Ciaran. Wu Zetian, the female emperor of China. 2014. – Acesso em 21 de julho de 2017.

DASH, Mike. The Demonization of Empress Wu. 2012 – Acesso em 21 de julho de 2017.

MARK, Emily. Wu Zetian. 2016. – Acesso em 21 de julho de 2017.

[1] Historiadores levantam a hipótese de Acidente Vascular Cerebral.

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