Baseado no romance homônimo de Philippa Gregory, “The Other Boleyn Girl” (2003), filme que leva o mesmo título da obra em questão, consiste em mais uma singular produção da BBC inglesa, com cerca de 90 minutos de duração, que traz o irreverente período Tudor como palco do antagonismo entre duas irmãs, Maria e Ana Bolena, disputando pelo prêmio maior: o amor do rei. Na pele destas, respectivamente, estão as incríveis Natascha McElhone e Jodhi May, responsáveis por transcender às telas o ímpeto do contraste entre amor fraternal e inveja. Porém, aliado à performance das protagonistas, se faz viva a carência estética de um filme que tinha chance de ser tão popular quanto a versão mais recente do mesmo.

The Other Boleyn Girl (2003)
Dirigido por Philippa Lowthorpe e produzido por Ruth Caleb, “The Other Boleyn Girl” surpreende o indivíduo, a priori, pelo modo como foi filmado, com a mesma técnica que se usa em documentários, deixando assim as cenas cansativas e pouco convincentes. Logo na abertura tem-se uma apresentação dos personagens Ana e Maria: elas dialogam com o espectador e falam de suas vidas e aspirações para o futuro; algo pouco comum em filmes de temática histórica. Contudo, ambas as atrizes atendem perfeitamente aos pré-requisitos dos personagens (Jodhi May, por exemplo, se destaca pelos olhos grandes, rosto oval, maçãs do rosto altas e lábios carnudos – características de Ana Bolena).
Feito as considerações iniciais, adentremo-nos no contexto da obra, que traz boas adaptações das passagens descritas pela autora Philippa Gregory em seu livro. A primeira delas que merece aqui ser enfatizada é o séquito de damas da rainha Catarina de Aragão, que incluíam as irmãs Bolena, a costurarem e bordarem para sua senhora (momentos como esse são bem constantes no livro). No papel da soberana encontra-se Yolanda Vazquez, que apesar de manter com segurança a integridade do personagem, pouco interage no filme e suas falas são quase escassas. Todavia, o chocante em sua presença é o figurino que lhe foi atribuído, principalmente a recriação do capelo inglês, que em nada lembra aqueles pintados por Hans Holbein e que figuram em outras produções similares.
Quanto aos capelos franceses, abundantemente usados por Ana, estes sim apresentam uma perfeita forma circular ditada pelos padrões da estética renascentista, porém destituídos de pérolas e/ou pedras preciosas. Esse último aspecto, que se passa quase despercebido, foi uma jogada interessante da equipe de figurino, pois contrastaram a imagem de Ana, de comportamento e indumentária tipicamente francesa, com o restante das ladys que seguiam a moda recatada de Catarina. A seguir, temos a figura do rei Henrique, que ao irromper as portas da câmara da rainha, acompanhado por um círculo de cavalheiros dos quais faziam parte George Bolena (Steven Mackintosh) e William Carey (Anthony Howell), encontra a bela Maria Bolena e de imediato a deseja, despertando o ciúme de sua esposa.

Yolanda Vazquez, como Catarina de Aragão. repare no figurino de gosto duvidoso utilizado pelos atores.
Por trás do monarca inglês, está Jared Harris (filho do ator Richard Harris – o Dumbledore dos dois primeiros filmes da série Harry Potter – e esposo de Emilia Fox, que Interpretou Jane Seymour no filme “Henry VIII” – 2003). A caracterização de Henrique foi uma das melhores, pois o retrataram como um homem jovem e viril e depois decadente e obeso rei, já pelos momentos finais da trama. Seu interesse por Maria mostrou-se a oportunidade ideal para a família Bolena ascender na corte e para tal a jovem teria que empenhar-se, conforme se ficou decido na reunião clandestina destes, presidida pelo duque de Norfolk, tal como descreve a personagem Maria do livro “A Irmã de Ana Bolena”:
“Organizaram uma reunião de família na luxuosa casa de meu tio em Londres. Reunimo-nos em sua biblioteca, onde livros de capas escuras abafavam o ruído das ruas. […] Discutíamos negócios de família, segredos de família. Ninguém, a não ser um Howard, podia se aproximar.
Eu era o motivo e o tema da reunião. Eu era o centro ao redor do qual esses eventos girariam. Eu era o peão Bolena que deveria ser deslocado vantajosamente…” (GREGORY, 2010, pags. 25 e 26)
Assim como Philippa descreve, coube a Ana a tarefa de preparar Maria para os encontros com o rei, e a George, seu irmão, escoltá-la até o leito real. Porém, a moça não parecia satisfeita com a missão que lhe confiaram, nem tampouco sua irmã pretendia ficar em segundo plano. Acontece que Ana manteve um caso amoroso com o nobre Henry Percy e pretendia unir-se a ele. Durante essa fase, era uma mulher apaixonada e com grandes expectativas com relação ao amor, mas precipitou-se e cedeu sua virtude ao jovem com insensatez, sendo, por conseguinte, surpreendida pela sua irmã, que contou tudo o que vira a seus pais.
O acontecimento que acaba de ser descrito, afigura-se tanto no filme em questão quanto no super bem-produzido “The Other Boleyn Girl” de 2008 (no Brasil “A Outra”), de elenco mais escalado, com estrelas como Natalie Portman, Scarlett Johansson e Eric Bana. Seguindo a lógica destas duas produções, esse foi o ápice da rivalidade entre Ana e Maria. Entretanto, Philippa Gregory descreve a passagem de uma forma diferente:
“No dia seguinte, Ana entrou correndo no nosso quarto, a cara pálida.
– Veja isto! – sussurrou e jogou o pedaço de papel na cama.
Querida Ana, não posso vê-la hoje. Milorde cardeal sabe de tudo e fui chamado para lhe dar explicações. Mas juro que não vou desapontá-la.
– Oh, meu Deus! – exclamei baixinho. – O cardeal sabe. O rei vai saber também…” (GREGORY, 2010, pag. 128)
De acordo com a autora, e assim também o afirmam biógrafos como Antonia Fraser, não foi Maria quem desvelou o segredo de sua irmã e sim as artimanhas do Cardeal Wolsey, que a propósito não aparece nessa versão de 2003, sendo esta uma das grandes lacunas do filme, já que ele é um dos personagens elementares do livro.

Steven Mackintosh, como George Bolena.
Após o incidente, Ana foi banida para o castelo de Hever para redimir-se de sua má conduta. Um ano se passa, Maria engravida e a outra garota Bolena deveria retornar à corte para fazer com que Henrique não desvie sua atenção da amante, que não podia lhe entreter devido à condição de gestante. Todavia, não era intenção de Ana ficar mais uma vez à sombra de sua irmã e acabou sendo ela quem seduziu o rei e o manteve. Interessante nesse processo eram as mesuras que ela fazia perante Henrique, de forma a mostrar seu avantajado colo. Mesmo um cortesão classificando a verdadeira Ana Bolena como tendo seios pequenos, suas inclinações e expressões de desejo e luxuria no longa conferem com as descrições de “A irmã de Ana Bolena”.
Faz-se necessário também ressaltar que o filme, tal qual o livro, apresentam a história sobre a ótica de Maria Bolena. Ela é a narradora. Por tanto os fatos são condicionados pela sua interpretação. Sendo assim, a figura dela é retratada de forma singela e romântica, enquanto Ana é caracterizada como alguém movida por ambição e falsas pretensões, o que na verdade não se sucedeu. Os filhos de Maria, Henrique e Catarina Carey, foram então mandados para o castelo de Hever, na medida em que ela era mantida na corte para ocupar o papel que outrora fora de sua irmã: vesti-la e perfumá-la para o rei.
O telespectador, com certeza, também sentirá falta da presença de Jane Bolena, a infame Jane Rochford, que tanto no livro quanto na versão de 2008 é uma personagem de destaque, uma vez que fora a responsável por conceder a difamatória prova de incesto contra sua cunhada, mas que não aparece nesta presente adaptação. Outro ponto desfavorável consiste na escassa referência ao cisma religioso da Inglaterra, que fez Henrique romper com Roma para conseguir o divórcio de Catarina de Aragão e casar-se com Lady Pembroke. Também não é verossímil o rei e sua marquesa terem consumado a união na Inglaterra, pois segundo estatísticas, nessa época eles estavam em Calais para um encontro com o rei Francisco I da França.
Como todos sabem, Catarina de Aragão foi então banida da corte e Ana Bolena coroada rainha da Inglaterra. A partir daí, as roupas da nova consorte real se apresentam de forma mais requintada, os capelos adornados de jóias e no pescoço se encontra as famosas pérolas com o icônico pingente “B” de Bolena. No entanto, tal mutação de vestuário não se dá de forma sutil, pois em um instante a vemos em vestes paupérrimas, como se para salientar a condição de pobreza de sua família, que de pobres não tinham nada, e em outro ela ostenta todo o esplendor da nobreza, que nem mesmo apareceu quando se tornara a favorita do rei. Já Maria, que recentemente enviuvara, temendo que sua irmã arrumasse-lhe outro casamento arranjado, fugiu para as terras do homem que a escoltava em suas viagens de verão para ver seus filhos: William Stafford (Philip Glenister).
Stafford é a típica figura do cavaleiro cortês, lutando pelo amor da donzela que não lhe encorajava. Porém, a esta altura, Maria acolhe seu amor e proteção ao assumir compromisso com o homem. Mas ao contrário das versões cinematográficas de 2003 e 2008, onde William aparece desde o início da trama, em “A irmã de Ana Bolena” ele só se faz presente no meio desta, mais precisamente quando Norfolk o incube da tarefa de levar Maria para ver seus filhos e trazê-la de volta. Não é de se surpreender, então, que Ana não veria com olhos afáveis aquela união e como castigo baniu sua irmã da corte. No filme, porém, ela permanece ajudando-lhe no que for preciso.
Após o nascimento da princesa Elizabeth, há um hiato no desenrolar dos acontecimentos, que avançam para o ano de 1536, com Henrique interessado em Jane Seymour e a rainha desesperada para conceber um filho homem. Desse contexto deriva o maior erro do filme, um equívoco que nem mesmo Philippa Gregory ousou abordar estritamente: Ana, certa de que não teria mais um filho rei, recorreu ao seu irmão para obter um varão por meio duma relação incestuosa. Divergindo também da recente versão de 2008, na qual Maria repudiou a intenção de sua irmã, que no final não se concretizou, em “The Other Boleyn Girl” (2003) ela aparece com uma das articuladoras do mal fadado plano.
No livro que deu origem ao roteiro, Maria apresenta uma série de desconfianças quanto ao que poderia ter acontecido entre Ana e George enquanto estava fora, mas em nenhum momento afirma que os dois fizeram amor. Na nota do final do romance, a autora se explica:
“… Obedeci à tese original de Warnicke de que o círculo homossexual de Ana, inclusive seu irmão George, e seu último aborto criaram um clima em que o rei pôde acusá-la de bruxaria e de práticas sexuais perversas.” (GREGORY, 2010, pag. 625)
E assim aconteceu… Ana foi acusada de incesto com seu irmão e adultério com outros cortesãos, entre eles o tocador de alaúde Mark Smeaton, que no filme é um cantor e só aparece durante os momentos finais da trama.
Uma vez encarcerada na torre, Ana recebe a visita e o consolo de sua irmã, tal como acorreu em “A Outra” (2008). Diante disso e de tudo que já foi exposto, pode-se concluir que a última versão da presente história afigura-se mais como uma releitura do roteiro da primeira, do que como uma produção intrinsecamente baseada no romance de Gregory, já que nele Maria não vista a rainha deposta. A trama se encerra com um vislumbre da Londres do século XXI, com a narradora contando que ao longo dos anos, pessoas visitariam o lugar de execução de sua irmã, enquanto ela vivera o resto de seus dias ao lado de seus filhos e do homem que amava. Só que mesmo neste simplório desfecho, a produção comete mais um deslize ao mostrar Henrique Carey mais velho que Catarina, deixando de evidenciar também que quando da morte de Ana, Maria já havia tido uma filha com Stafford.
Todavia, para uma produção que se baseia e uma obra literária, “The Other Boleyn Girl” (2003) até tenta manter-se na linha de pensamento da autora do romance, mas assim como em outros, a Diretora Philippa Lowthorpe não poupou esforços para apresentar também a sua visão dos fatos, mesmo sendo ela equivocada e atemporal. Não fossem as míseras 750 mil libras investidas na produção, o longa-metragem poderia ser tão grandioso quanto seu sucessor. Porém, vale à pena assistir, se você, assim como eu me propus neste estudo, tiver o interesse de estabelecer uma comparação entre o livro e os dois filmes que dele derivam. Além do mais, contêm excelentes atores que atendem com otimismo as prerrogativas de seus personagens, salvando o que os demais recursos (a técnica de filmagem sendo o principal deles) não conseguiram suprir.
Renato Drummond Tapioca neto
Graduando em História – UESC
Confira abaixo uma das cenas do filme:
Texto publicado originalmente em: O Diário de Ana Bolena
Referências Bibliográficas:
FRASER, Antonia. As Seis Mulheres de Henrique VIII. Tradução de Luiz Carlos Do Nascimento E Silva. 2ª edição. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010
GREGORY, Philippa. A Irmã de Ana Bolena. Tradução de Ana Luiza Borges. 4ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2010