Margaret Ann Neve: a impressionante vida da primeira mulher supercentenária da história!

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

Em 4 de agosto de 1997, falecia em Arles, na França, Jeanne Calment, aos 122 anos e 164 dias de vida. Atualmente, ela encabeça a lista das cem pessoas mais longevas já registradas pela história, no Guinness World Records. Nascida em 21 de fevereiro de 1875, na mesma cidade francesa onde daria seu último suspiro, Jeanne veio ao mundo pouco depois da guerra franco-prussiana, que estabeleceu a Terceira República em seu país. Tendo vivido em dois séculos diferentes, ela testemunhou alguns dos principais eventos da Idade Contemporânea, entre os quais duas grandes guerras mundiais, a Revolução Russa, o declínio dos grandes impérios coloniais, o início e o fim da Guerra Fria, a ascensão dos movimentos sociais, a contracultura, a dissolução da União Soviética, entre tantos outros fatos deixaram sua marca no tempo. Todas essas informações lhe chagavam na pacata cidade de Arles, primeiro através dos jornais, depois do rádio, seguido pela televisão e, por último, pela internet. Aos 122 anos, Jeanne havia se tornado uma memória viva daquilo que o historiador Eric Hobsbawm denominou de “o breve século XX”, no seu livro A Era dos Extremos. Por outro lado, tão interessante quanto a história de Jeanne e a de Margaret Ann Neve, primeira mulher supercentenária da qual dispomos de registros documentais, que viveu em três séculos diferentes e que, na velhice, dizia ser capaz de se recordar dos tremores provocados pelos ventos da Revolução Francesa e como isso afetou sua vida cotidiana, na não tão conhecida Ilha de Guernesey, localizada no Canal da Mancha.

Margaret Ann Neve, aos 100 anos, em 1892.

Nascida no dia 18 de maio de 1792, na cidade de Saint Peter Port (Guernsey, Ilhas Anglo-Normandas), Margaret Ann Harvey era a mais velha de sete irmãos e provinha de uma família que impressiona por seu histórico de longevidade. Dizem que sua mãe teria vivido até os 99 anos, falecendo no ano de 1871. Tendo vivido em três séculos diferentes, ela testemunhou alguns dos eventos históricos mais importantes, decorridos em 5 reinados diferentes da Grã-Bretanha: George III, George IV, William IV, Vitória e Edward VII. Já em idade avançada, ela afirmava que era capaz de se recordar dos tumultos da Revolução Francesa, em suas diversas fases, além das Guerras Napoleônicas. Na época de seu nascimento, a Ilha de Guernesey era um protetorado britânico, embora não fosse considerada parte do Reino Unido. A população podia se comunicar em dois idiomas: o normando, que era ensinado em algumas escolas, e o inglês, falado pela maioria da população. Enquanto na França era proclamada a Primeira República, seguida pela fase do Terror em 1793, que ceifou as vidas de milhares de franceses, incluindo o rei Luís XVI e a rainha Maria Antonieta, no Reino Unido ocorria a primeira Revolução Industrial, marcada pela invenção da máquina à vapor e pelo tear hidráulico, responsáveis por transformar a Inglaterra na maior potência econômica do mundo, até a Primeira Guerra Mundial. O pai de Margaret, por sua vez, era um rico mercador, que prosperou com o comércio e a navegação na Ilha, devido à importância portuária da cidade de Saint Peter Port.

Em 1807, quando Margaret tinha apenas 15 anos, ela sobreviveu a um perigoso naufrágio durante uma tempestade na praia de Chesil, localizada no oeste de Weymouth. A região, por sua vez, é marcada por uma paisagem bastante acidentada, devido aos seixos e depressões submarinas, que fizeram sua embarcação colidir com as rochas e afundar. Depois de ter sobrevivido a esse trágico episódio, em vez de se casar, Margaret foi enviada para Bristol, na Inglaterra, onde estudou Literatura e Poesia. Sua educação foi concluída em Bruxelas, tornando-se fluente em francês e italiano, além de compreender perfeitamente o alemão e o espanhol (também era capaz de ler o Novo Testamento em grego). Margaret só foi desposada aos 31 anos (idade considerada ultrapassada pela mentalidade da época), com um membro da família Neve, John. Os dois permaneceram juntos por 1/4 de século, vivendo na Inglaterra, até a morte dele, em 1849. Em seguida, Margaret retornou para sua terra natal, em Guernesey. Sua existência coincidiu com um dos principais inventos do século XIX: a máquina fotográfica. Os registros que sobreviveram de Ann sempre a apresentam sorridente, ao contrário da expressão austera que muitas pessoas adotavam ao posar para as lentes de um fotógrafo. Numa de suas imagens conhecidas, podemos vê-la no auge dos seus 100 anos, ao lado do pequeno Henry John Harvey. Talvez, uma das maiores bênçãos em ter uma vida tão longa como a de Margaret seja a de ver sua família crescendo até a terceira ou quarta geração. Por outro lado, a longevidade vem acompanhada com o fardo de ter que lidar com a dor de ver seus entes queridos partindo antes de si.

Em uma das imagens conhecidas de Margaret, podemos vê-la no auge dos seus 100 anos, ao lado do pequeno Henry John Harvey. Sempre com um sorriso no rosto!

Mulher bastante intrépida, Margaret teria visitado o campo de Waterloo logo depois da batalha que definitivamente derrotou Napoleão Bonaparte, em 1815, na companhia de sua diretora na escola para moças da Inglaterra. Ali, ela recolheu alguns souvenires do conflito, que mais tarde deu ao famoso General prussiano, Blücher, quando retornou para Londres. Por ocasião de sua lua de mel com John Neve, Margaret retornou ao local, que atualmente é um importante ponto turístico. Depois de viúva, Margaret fez várias viagens ao exterior na companhia de sua irmã, Elizabeth, sendo a última delas em 1872, quando ela tinha 80 anos, na cidade de Cracóvia, na Polônia, então parte do Império Austro-Húngaro. Por ocasião do seu aniversário de 108 anos, Ann foi encontrada por um repórter do The Times fazendo marmelada de manhã cedo. Sempre ativa, dizem que ela adoeceu pela primeira vez aos 105 anos de idade, contraindo uma gripe, seguida por uma bronquite três anos depois. Naquele período, ela já havia se tornado uma celebridade, em decorrência de sua espantosa longevidade. Nunca época em que os índices de mortalidade eram tão altos, a longevidade de Ann causou impacto em muitas pessoas. Pouco antes de morrer, ela se gabava de ainda ser capaz de subir em árvores e colher maçãs frescas direto do pomar, afirmando que a fruta era muito mais saborosa quando arrancada diretamente do pé.

Sempre bem disposta e feliz, pouco antes de Margaret Ann Neve completar 109 anos, o periódico Clarence e Richmond Examiner expôs sua dieta para uma vida longa, em matéria publicada no dia 19 de fevereiro de 1901:

Ela não é abstêmia, mas toma um copo e meio de xerez velho no jantar do meio-dia e um pouco de uísque fraco e água no jantar. Na dieta, ela não se restringe muito, mas sempre se opôs a comer ou beber entre as horas regulares das refeições, e até mesmo o chá da tarde foi rigidamente excluído de seu programa doméstico. Ela sempre foi madrugadora e nunca se permitiu nenhum ‘mimo’ ou autoindulgência, mas mostrou uma força de vontade um tanto espartana ao recusá-los.

Em 4 de abril de 1903, Margaret Ann Neve faleceu tranquilamente em Guernsey, dois anos depois, cercada por sua família, aos 110 anos de idade! Ela testemunhou o início e o fim da Era Vitoriana e a ascensão da classe burguesa pós-revolução francesa (da qual era um membro); observou as maravilhas da Revolução Industrial, como a locomotiva, o barco á vapor, a máquina fotográfica, o telégrafo e a invenção do automóvel. Sobreviveu a quatro monarcas britânicos, estando viva quando a rainha Vitória nasceu em 19 de maio de 1819 e quando a soberana deu seu último suspiro, em 22 de janeiro de 1901. Do outro lado do Canal da Mancha, viu Napoleão I ascender ao poder e cair, assistiu à restauração monárquica dos Bourbon e sua queda em 1830. Tinha quase 40 anos quando Luís Felipe de Orléans se tornou rei dos Franceses e 56 quando ele foi derrubado do trono. Em seguida, assistiu a tomada do poder por outro Napoleão, o terceiro de seu nome, em 1851 e o fim do Segundo Império Francês, em 1870, com a implantação da República. Entrando nos primeiros anos do século XX, Margaret testemunhou o início da chamada Era Eduardiana, falecendo antes que a Europa fosse tragada pelo conflito que mudaria para sempre o panorama geopolítico do mundo. Porém, as consequências dessa guerra é uma história que só a francesa Jeanne Calment, a mulher mais longeva do mundo, poderia contar!

Fotografia de Margaret Ann Neve, tirada em 1902, poucos meses antes de sua morte.

Bibliografia:

HOBSBAWM, Eric J. A Era das Revoluções, 1789-1848. Tradução de Maria Tereza Teixeira e Marcos Penchel. 32ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013.

HOBSBAWN, Eric J. A era dos impérios, 1875-1914. Tradução de Sieni Maria Campos e Yolanda Steidel de Toledo. 17ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.

HOBSBAWN, Eric J. Era dos extremos: o breve século XX: 1941-1991. Tradução de Marcos Santarrita. 2ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Sites:

 “The Harvey Family”. Priaulx Library. 2005. – Acesso em 04 de abril de 2023.

 “Guernsey (Channel Islands) chamber of commerce, members in 1808-9”. – Acesso em 04 de abril de 2023.

“Obituary”. The Times. 6 April 1903. p. 10. – Acesso em 04 de abril de 2023.

“The Late Mrs Neve” (PDF). The New York Times. 19 April 1903. – Acesso em 04 de abril de 2023.

Jump up to:a b “Her Hundred-and-eighth Birthday”. The Pall Mall Gazette. 18 May 1900. p. 3. – Acesso em 04 de abril de 2023.

Unexampled Longevity”. The Pall Mall Gazette. 18 June 1899. p. 21. – Acesso em 04 de abril de 2023.

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