A princesa dos Palmares: a história de Aqualtune, a combatente avó de Zumbi!

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

É comum pensarmos na história da escravidão no Brasil e dos escravizados trazidos do continente africano como agentes passivos, sofrendo intermitentemente nas mãos de senhores brancos e que receberam a liberdade das mãos de uma princesa loira e de olhos azuis trezentos anos depois. Essa visão, tão arraigada no imaginário coletivo, não poderia ser mais enganosa. Os indivíduos trazidos da África conseguiram estabelecer na América portuguesa importantes laços de solidariedade entre si, irmandades religiosas, e, não raro, reagiram à rotina de trabalhos compulsórios aos quais eram submetidos pela vontade e força de seus patrões. Assim, eles se tornaram agentes construtores de sua própria história, passada ao longo das gerações pela tradição oral. Nesse processo, muitos nomes da liderança negra contra a escravidão desapareceram com o tempo, mas alguns sobreviveram, a exemplo de Zumbi e sua esposa, Dandara. Conta-se também que, 200 anos antes do nascimento da princesa Isabel do Brasil, outra princesa, filha do rei do Congo, teria aportado na colônia na condição de cativa e depois comandado a resistência ao sistema escravista. Ela passou para a história com o nome de Aqualtune, a combatente avó de Zumbi e uma das líderes do famoso Quilombo dos Palmares!

A partir do século XVI, a resistência escrava deu origem no Brasil aos mocambos (palavra que significa esconderijo) ou aos quilombos guerreiros (termo usado principalmente em Angola, para se referir a um acampamento fortificado e militarizado). O uso da palavra se generalizou na colônia com ênfase no século XVIII, a partir do maior agrupamento de quilombos que já existiu por aqui, o de Palmares. Escondidos no meio das matas densas, esse locais ofereciam um modo de vida alternativo para aqueles, corajosos o suficiente, que resistiam à violência das senzalas e aos trabalhos forçados nas lavouras de cana-de-açúcar. As primeiras notícias de formação de quilombos chegaram em Salvador, então capital da colônia, ainda no século XVI e de lá seguiram diretamente para Lisboa. Como se aventurar sozinho pelos caminhos sinuosos da floresta fechada e dos arraiais era por demais arriscado, o jeito mais seguro de escapar da difícil realidade no complexo da Casa Grande era fugindo em bandos, instalando-se seguramente fora do alcance da sociedade escravocrata (em locais ainda não explorados pelos colonizadores), no meio das matas ou então no cenário desolador do sertão. Eram nesses lugares de difícil acesso onde tais agrupamentos geralmente eram fundados.

Mulher do Congo (1861). Fonte da imagem: The New York Public Library.

Teria sido numa dessas fugas organizadas em que a princesa Aqualtune partira para o Quilombo dos Palmares. Não se sabe ao certo a data em que ela nascera, nem quando teria aportado em Recife na condição de cativa reprodutora. Existem pouquíssimos registros documentais acerca de sua existência, de forma que muitos historiadores questionam se ela teria de fato existido, ou não. A versão mais aceita, porém, diz que Aqualtune era uma princesa guerreira, filha do rei do Congo, que liderou um exército de mais de 10 mil soldados contra reinos inimigos. Durante a batalha, ela infelizmente foi capturada e depois vendida como escravizada para navegadores portugueses. Viajando a bordo de um navio tumbeiro, num trajeto que demorava cerca de cinco semanas, Aqualtune conseguiu resistir às tristes condições insalubres do porão da embarcação, acorrentada juntamente com outras pessoas de diferentes regiões da África Central. Durante a travessia, ela convivia dia a dia com dejetos humanos, roedores e insetos que se proliferavam em meio à sujeira e com os corpos doentes das pessoas, muitas das quais acabavam morrendo durante a viagem. Seus cadáveres eram então atirados ao mar, para não gerar mais doenças decorrentes do estágio de putrefação.

Uma vez que sobrevivera à viagem, Aqualtune e seus companheiros aportaram em Recife, um dos principais centros produtores de cana-de-açúcar da colônia e entreposto comercial da América portuguesa. Em seguida, foram colocados à venda, como se fossem mercadorias. Devido à sua boa condição física, a princesa foi comprada com a finalidade de ser uma cativa reprodutora e então enviada para a região de Porto Calvo, no sul das terras pernambucanas. Só podemos imaginar as perturbadoras funções às quais Aqualtune era submetida, trabalhando na lavoura pela manhã e sendo violentada todas as noites com o propósito de gerar novos cativos para alimentar o regime escravocrata. Foi então que ela teria ouvido falar da existência do Quilombo dos Palmares, que oferecia uma existência alternativa para aquele modo desumano de vida. Segundo Schwarcz e Starling:

O quilombo significou uma alternativa concreta à ordem escravista – e, por isso, tornou-se um problema real e bastante amedrontador para a sociedade colonial e para as autoridades, que precisavam combatê-los de modo sistemático. Mas, ao mesmo tempo, o quilombo era parte da sociedade que o reprimia, em função dos diversos vínculos que tinha com os diferentes setores desta. Tais vínculos, de natureza muito variada, incluíam a criação de toda sorte de relações comerciais com as populações vizinhas, a formação de redes mais ou menos complexas para obtenção de informações e, como não poderia deixar de ser, o cultivo de um sem-número de laços afetivos e amorosos que se entrecruzavam nas periferias urbanas e nas fazendas (2015, p. 99).

Graças aos recursos que retiravam das matas, do roçado (milho, mandioca, feijão, fumo, batata-doce) e da criação de animais, as comunidades quilombolas conseguiam subsistir. Sua prosperidade também se dava na medida em que conseguiam manter conexões com as sociedades que se desenvolviam no seu entorno. Essa coexistência, no entanto, nem sempre foi pacífica, com uma comunidade guerreando contra a outra, à semelhança dos reinos africanos. Por outro lado, não raro os quilombos vizinhos podiam se unir em saques organizados a fazendas e a viajantes, a fim de conseguir mais alimentos e víveres.

Graças aos recursos que retiravam das matas, do roçado (milho, mandioca, feijão, fumo, batata-doce) e da criação de animais, as comunidades quilombolas conseguiam subsistir. Sua prosperidade também se dava na medida em que conseguiam manter conexões com as sociedades que se desenvolviam no seu entorno.

Conta a tradição que o Quilombo dos Palmares – a maior comunidade de escravizados fugidos e, possivelmente, a que ofereceu resistência por mais tempo – foi fundado no ano de 1597 por um grupo de 40 cativos que fugiram do mesmo engenho de açúcar em Pernambuco. Eles teriam subido a serra da Barriga, na Zona da Mata, no atual estado de Alagoas, e ali criaram um local de refúgio, no qual podiam reproduzir com segurança as tradições guerreiras de sua terra natal, seus rituais de iniciação e demais práticas e costumes. Como o lugar era rodeado por serras e completamente despovoado, isso proporcionou aos fugitivos uma espécie de muralha natural contra os ataques de inimigos. Diz-se que a palmeira crescia abundantemente na região, fornecendo-lhes material para o trançado de cordas, peças de vestuário, coberturas de casebres, além do palmito, alimento que era extraído diretamente do coração da árvore. Daí teria surgido o nome “Palmares” para batizar aquela comunidade. Embalada por essa narrativa, Aqualtune teria organizado uma fuga de Porto Calvo até Palmares, onde ela soube que um grande contingente vivia livremente. Na época de sua fuga, a princesa estava nos últimos meses de uma gestação, mas nem mesmo sua condição a demoveu da ideia de fugir.

Após se embrenhar pelas matas densas da serra da Barriga, Aqualtune conseguiu encontrar o centro do Quilombo e ali foi reconhecida por sua realeza. Sendo uma princesa, ela recebeu a liderança de um mocambo, que acabou recebendo seu nome. Ainda de acordo com Schwarcz e Starling:

Palmares passou a designar não um único refúgio de escravos, mas uma extensa confederação de comunidades dos mais diversos tamanhos, vinculadas por acordo umas às outras, que conduziam os próprios negócios, dispunham de autonomia e escolhiam seus líderes: o quilombo de Acotirene, cujo nome homenageava a matriarca e conselheira dos líderes quilombolas; o quilombo de Dambrabanga, um de seus principais comandantes militares; o quilombo de Zumbi, título concedido ao líder religioso e militar da comunidade; o quilombo de Aqualtune e o de Andalaquituche, respectivamente, os nomes da mãe e do irmão de Zumbi; o quilombo de Subupira, base militar dos quilombolas; a Cerca Real do Macaco, o maior e mais importante quilombo dos Palmares, onde se localizava seu núcleo político e atuava sua autoridade central, Ganga Zumba, o “Chefe Grande”, que presidia o conselho constituído pelas lideranças dos quilombos e regulamentava os assuntos da guerra e da paz (2015, p. 100-1).

Na qualidade de regente de um quilombo, a princesa Aqualtune ditava suas próprias leis para aqueles viviam sob sua administração. Entre seus muitos filhos, a história registra pelo menos dois de relativa importância para o futuro de Palmares: Ganga Zumba e uma filha, de nome não recordado, que seria a mãe do famoso Zumbi. Outra versão aponta que Aqualtune seria a própria genitora, e não a avó, do lendário herói da resistência negra no Brasil.

Zumbi dos Palmares, descendente da princesa Aqualtune, conforme imaginado pelo artista Antônio Parreiras.

Boa parte da população de Palmares provinha dos atuais Estados do Congo e de Angola. Seus habitantes haviam conseguido reinventar um pedaço da África no Brasil, com uma vida social e politicamente organizada, “administração pública, leis próprias, forma de governo, estrutura militar, e princípios religiosos e culturais que fundamentavam e fortaleciam a identidade coletiva” (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 101). A prosperidade do Quilombo incomodava as autoridades coloniais, que viam sua força de trabalho escoando para a região da Zona da Mata. Tanto, que Palmares era pejorativamente chamado de “república” nos documentos enviados a Lisboa, em referência à sua relativa autonomia do reino e da cultura política portuguesa. Em seu período de maior ascensão, durante a fase de ocupação holandesa na Capitania de Pernambuco, Palmares chegou a abrigar 20 mil pessoas. Nem mesmo os novos colonizadores foram capazes de derrotar o poderio dos quilombolas, protegidos pelas muralhas de serras naturais. Em contraste com a crise de administração na capitania em decorrência da União Ibérica, os quilombos progrediram. Mas, com a separação das coroas portuguesa e espanhola em 1640, as investidas militares contra Palmares se intensificaram.

A princípio, as autoridades coloniais queriam firmar um tratado de paz, com base em um acordo que garantiria a autonomia de Palmares: Ganga Zumba, então o principal líder, concordou em devolver os escravizados fugidos e, em troca, a Coroa daria alforria a todos os membros nascidos na comunidade. O acordo do Recife, como ficou conhecido, porém, opôs Ganga Zumba a Zumbi, abalando assim a unidade política entre os vários quilombos que compunham a comunidade. Assim, teve-se início a fase mais sangrenta da história daqueles povoados. Considerado traidor, Ganga Zumba foi envenenado e seus chefes militares sumariamente degolados. A partir de então, Zumbi lideraria a resistência contra as autoridades portuguesas até o ano de 1694, com a queda da Cerca Real do Macaco. Em 42 dias de cerco, Palmares foi arrasado a ferro e fogo, ocasionando a morte de seu principal líder. Nessa época, Aqualtune também já havia morrido. Não se sabe se de velhice, ou durante o cerco ao seu mocambo no ano de 1677, liderado por bandeirantes paulistas. Assim a história da princesa dos Palmares se tornou lenda, passando do fato ao mito, hoje celebrado pelos versos da cordelista Jarid Arraes: “Quando ela faleceu/ Bem idosa já estava/ Aqualtune sim viveu/ Como líder destacava/ Essa força feminina/ Que a princesa exaltava” (2020, p. 31).

Referências Bibliográficas:

ARRAES, Jarid. Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis. São Paulo: Seguinte, 2020.

GOMES, Flávio dos Santos; LAURIANO, Jaime; SCHWARCZ, Lilia Moritz. Enciclopédia Negra. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

SCHUMAHER, Schuma; BRAZIL, Érico Vital (Orgs.). Dicionários das mulheres no Brasil: de 1500 até a atualidade: biográfico e ilustrado. Rio de Janeiro: Jorge Zagar Editor, 2000.

SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Lestras, 2015.

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