Por: Renato Drummond Tapioca Neto
Assim como no passado, a África possui algumas famílias reais espalhadas pelo continente, que sobreviveram ao imperialismo do século XIX e da primeira metade do século XX. Embora esse processo brutal tenha destruído culturas milenares, imposto um novo credo religioso a uma gama variada de povos – agrupados artificialmente em novos países/colônias – e extraído ilegalmente suas riquezas, muitos grupos conseguiram oferecer resistência e preservar parte de suas tradições ancestrais. Após a Segunda Guerra Mundial, observamos o surgimento do panafricanismo e de outros movimentos nacionalistas, que lutavam por liberdade e independência. Uma das nações que tomaram parte nessas lutas foi o antigo reino de Buganda, localizado na África Oriental e que fora colonizado pelo Reino Unido em 1894. Em seguida, ele se tornou parte da Commonwealth, até conquistar sua definitiva emancipação política no ano de 1962 como a República da Uganda. Porém, uma porção do antigo reino de Buganda permaneceu intacta, com um governo semiautônomo. Localizado na região central do país, que inclui sua capital, Campala (onde ficam os antigos túmulos reais na colina de Kasubi, considerados patrimônio da humanidade), ali reinam Kabaka Ronald Muwenda Mutebi II e sua rainha consorte, Nnabagereka Sylvia Nagginda.

A rainha Sylvia Nagginda
A luta contra o neocolonialismo foi marcada por uma série de conflitos, que dizimou grande parte dos poderosos reinos da África Subsaariana, da Oriental e do Sul. Muitas dessas feridas até hoje não foram cicatrizadas, despertando um forte sentimento de identidade nacional no período que se seguiu ao processo de descolonização. Muitos dos líderes que encabeçaram movimentos de resistência tiveram acesso a uma educação privilegiada fora do continente, em países da América e da Europa, retornando depois para sua terra natal com o conhecimento e a vontade de contribuir para o desenvolvimento de sua nação. Uma dessas líderes foi a rainha Sylvia. Tendo vindo ao mundo no dia 9 de novembro de 1964, em Londres, Sylvia Nagginda Luswata foi a primeira filha nascida da união entre Mulumba Luswata de Nkumba com Rebecca Nakintu Musoke. Sendo assim, ela pertencia a duas das famílias mais importantes da região de Uganda. Com apenas três meses de vida, ela retornou para a terra ancestral de seus pais, onde foi apresentada à sua família. Sua tia Joyce Nabbosa Sebugwawo, prefeita de Rubaga, viu na pequena sobrinha “alguém com futuro”: “Sempre achei que ela teria um lar cheio de alegria”. Porém, ela jamais imaginou que a criança um dia seria rainha de Buganda.
“Eu sabia que ela teria um bom lar”, enfatizou Joyce. Sua família tinha boas conceções com o novo governo e o futuro da bebê parecia promissor. Outra tia, Eve Nasejje Ssebugwawo, se recorda que a mãe de Sylvia, Rebecca Nakintu, era enfermeira, tendo recebido treinamento em Londres. Como o custo de vida na capital inglesa era muito alto para o casal, e devido às exigências do trabalho de seus pais, que não conseguiam dar a assistência necessária para a filha recém-nascida, eles então decidiram enviá-la para a África, onde ela seria criada pelos avós. Depois disso, pais e filha só se reencontrariam quando Sylvia já tinha atingido a maioridade. A primeira lembrança que os parentes da atual rainha de Buganda têm dela é a de uma bebê desembarcando no aeroporto de Sebugwawo acompanhada de uma enfermeira. Esse era o início da aventura de uma mulher, cuja vida atravessaria três continentes. Joyce Nabbosa, casada com Daniel Ssebugwawo (irmão do pai de Sylvia), recorda-se que a criança permaneceu por muito tempo na casa deles até os quatro anos de idade: “Ela era uma bebê muito quieta. Uma vez alimentada, Sylvia chupava o dedo com satisfação. Você podia fazer uma visita e nunca saber que tinha uma bebê lá”. Depois que seus tios se mudaram para Fort Portal, a criança ficou sob os cuidados dos avós, em Bufulu Nkumba.
A casa que Sylvia passou a residir era uma mansão, ou antes um “grande bangalô de tijolos”, como suas tias apelidavam carinhosamente a casa do pai. Seu avô, Mzee Nelson Ssebugwawo, era uma homem muito respeitado na região e transmitiu para a neta muito do conhecimento de seus ancestrais, assim como a memória das feridas parcialmente não cicatrizadas que o colonialismo deixara recentemente naquele país. Podemos então considerar que essa fase marcou o início da formação da consciência política da criança, que se transformou numa bela jovem, dedicada aos estudos e fluente em mais de um idioma. Sua educação se iniciou na Escola Primária Lake Victoria (nome que faz referência à antiga soberana do Reino Unido), considerada uma instituição de elite, em Entebbe. Devido ao status privilegiado de sua família, Sylvia, que era a menina dos olhos do velho Mzee Nelson, ia para a escola sentada no banco traseiro de seu carro, conduzido por um motorista particular. Apesar disso, seus parentes afirmaram que ela nunca foi uma moça apegada a bens materiais ou com manias de grandeza. Pelo contrário! O cotidiano alegre da casa, habitada por seus primos mais velhos, tios e agregados, ofereceu a ela memórias felizes, a despeito da ausência de seus pais.

A rainha Sylvia e o rei Ronald Muwenda Mutebi II de Buganda, em 1999.
Após concluir o Ensino Fundamental com ótimas notas, ela ingressou na Escola para Garotas Wanyange. Era então uma jovem bastante reservada, que cumpria com todos os horários impostos pela disciplina de seu avô, principalmente durante as orações noturnas, das quais todos na casa tinham que participar. Sua tia Nasejje diz que a sobrinha “parecia guardar muito para si mesma, mesmo quando menina”. Já sua cunhada, a Sra. Sebugwawo, com quem Sylvia normalmente passava o período das férias, afirma que a atual rainha era uma pessoa bastante descontraída e acessível. “Ela tinha um tipo especial de simpatia”, embora sua maior qualidade fosse a capacidade de se dedicar com afinco aos deveres. Entre suas atividades favoritas, ela gostava de cantar e cozinhar, razões pelas quais sua cunhada julgou que Nagginda seria uma excelente dona de casa. Algo que nem sequer passava pela cabeça dela! Em vez disso, resolveu dar continuidade aos seus estudos em outro continente. Uma vez concluído o Ensino Médio, ela foi para os Estados Unidos, ingressando na City University of New York, na qual recebeu o diploma de bacharel em Artes. Em seguida, obteve o grau de mestre em Artes com extensão em Comunicação pelo Instituto de Tecnologia de Nova York.
No total, Sylvia Nagginda passaria 18 anos residindo na América do Norte, onde atuou como Consultora Oficial de Informação Pública e Consultora de Pesquisa na Sede das Nações Unidas. Entre idas e vindas a Uganda para reencontrar a família, ela teve a oportunidade de reencontrar seus pais, agora divorciados. Ela havia revisto Mulumba quando estava em Gayaza, mas só teve a oportunidade de conhecer sua mãe, Rebecca, quando se mudou para Nova York. A partir de então, as duas permaneceriam em contato uma com a outra pelo resto dos anos. Numa de suas visitas a Uganda, a família percebeu o quanto que a moça ainda mantinha um comportamento reservado, especialmente no que dizia respeito à sua vida amorosa. “Você não poderia perguntar a ela sobre ter um namorado ou não”, recorda-se Nasejje, hoje uma senhora idosa. O que eles não sabiam é que foi nos Estados Unidos que Nagginda começou um relacionamento com o rei (Kabaka) de Buganda. A experiência em três continentes havia dotado a mulher com um caráter mais decidido e franco. Sylvia falava abertamente sobre as coisas que não considerava justas e sobre seu desejo de contribuir para o progresso da terra de seus antepassados, na qual ela fora acolhida com apenas três meses de vida.

Fotografia tirada no dia do casamento da rainha Sylvia Nagginda com o rei Ronald Muwenda Mutebi II de Buganda, em 1999.
A memória do holocausto dos povos de Uganda a deixou completamente aversa a qualquer iniciativa que levasse ao conflito armado, muito menos a atitudes que ela considerava grosseiras e impositivas. Por fora, ainda era a mesma garota amigável e introspectiva de sempre. Mas, por dentro, havia se tornado uma mulher com determinação de aço. Foram essas as qualidades que tanto atraíram o rei Ronald Muwenda Mutebi II de Buganda. Os dois acabaram se casando em 1999. A partir de então, Sylvia Nagginda passou a atender pelo título de Nnabagereka, termo equivalente a rainha consorte no idioma local. Sua cunhada ainda guarda a memória de quando a notícia do casamento chegou aos ouvidos da população: as pessoas vieram aos milhares para cumprimentá-la e foram então impedidas por um oficial excessivamente zeloso, que afirmou que a futura rainha não deseja ser incomodada. Sylvia, porém, reagiu de outra forma, pedindo para que ele deixasse o povo passar (“Baleke bajje”). Humildemente, ela lhes agradeceu pela visita e pelos tributos prestados. A partir desse ponto, a nova rainha deu início a uma verdadeira cruzada em defesa dos direitos humanos, da igualdade racial e de condições mais dignas para seus súditos e de outros povos da África, tornando-se uma forte liderança dentro do movimento negro africano.
Com efeito, a rainha Sylvia é uma árdua defensora do desenvolvimento humano com base na herança cultural, sendo também a primeira soberana de Buganda a fundar um escritório na sede do reino, Bulange contribuindo para a administração do país. Em 2000, ou seja, um ano depois de se tornar rainha, ela criou a Nnabagereka Development Foundation, que realizada ações de caridade junto a crianças em situação de vulnerabilidade, jovens e mulheres. Por meio dessa instituição, muitos indivíduos conseguiram ter acesso à alimentação, moradia e a uma educação de qualidade. Através de programas e projetos sociais, a fundação busca capacitar seus ingressantes a recuperar seu patrimônio cultural. Graças à sua iniciativa, a rainha foi escolhida como Embaixadora da Boa Vontade do Fundo de População das Nações Unidas em Uganda; Portadora da Tocha Para os Objetos do Milênio (ODM3); Embaixadora do Mama Club (organização que presta auxílio a mães portadoras de HIV/AIDS), além de Campeã da Campanha no combate ao HIV/AIDS pediátrica. Entre outras atribuições, Sylvia Nagginda é patrona do Hospice Africa Uganda, do Fundo Internacional da Infância (Uganda), do Programa Para a Comunicação e Educação em Saúde Acessível e do Conselho de Turismo de Uganda.

A rainha com a ministra das finanças Maria Kiwanuka, uma amiga próxima, e o ministro da Justiça e Assuntos Constitucionais de Buganda, Apollo Makubuya.
No ano de 2004, a rainha deu à luz sua única filha com o rei Ronald, a princesa Katrina Sarah Ssangalyambogo. A soberana também é uma das fundadoras da associação African Queens and Women Cultural Leaders Network, que tem por objetivo a “melhoria de vida de mulheres e crianças na África”, além de membro do Conselho Africano de Filantropia e do Conselho de Consultores do Fórum Global de Pensadores. Atualmente com 58 anos, Sylvia não demonstra cansaço e continua com seu trabalho social de forma intensa. Participante ativa no Ministério da Saúde de Uganda, ela busca melhores condições de tratamento para crianças portadoras de deficiência, sendo também colaborada da UNAIDS, da UNICEF e da OMS, entre outras organizações civis voltadas para o bem-estar da população africana. Sua trajetória, que se iniciou na Inglaterra, dentro de um contexto marcado por movimentos de descolonização e que atravessou os mares, levando-a até a América e de volta à África, forneceu àquela mulher o conhecimento e a vontade de mudança necessárias para ocupar o lugar em que ela está hoje. Dentro de um contexto internacional marcado por racismos, intolerância religiosa, desigualdades de gênero e de classe, a rainha Sylvia Nagginda de Buganda se constitui em um valioso bastião na luta contra as injustiças sociais.
Referências:
Global Landscapes Forum. Her Royal Highness Sylvia Nagginda. – Acesso em 24 de Janeiro de 2023.
HOBSBAWM, Eric J. A era dos extremos: o breve século XX. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
Monitor. Sylvia Nagginda: The girl who became queen. – Acesso em 24 de Janeiro de 2023.
Network of African Queens and Women Cultural Leaders. HRH The Nnabagereka, Sylvia Nagginda. – Acesso em 24 de Janeiro de 2023.
SILVÉRIO, Valter Roberto (Org.). Historia geral da África: século XVI ao século XX. Brasília: UNESCO, 2013.