Catherine Duchemin: a primeira mulher a entrar para a Academia Real de Pintura da França!

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

“Pela maior parte da história, ‘anônimo’ foi uma mulher”, disse a famosa escritora inglesa Virginia Woolf, referindo-se à invisibilidade do trabalho feminino ao longo dos tempos, seja na literatura, na ciência, ou nas artes. No entanto, as mulheres contribuíram para a formação cultural das sociedades em todas as Eras, a despeito das barreiras impostas ao seu gênero. Escritoras, artistas e eruditas deixaram sua marca no tempo, embora seus nomes muitas vezes não tenham sobrevivido à posteridade. Esse processo de apagamento, por sua vez, nada tem de natural. É uma ação política, levada à cabo pelo pelas forças do patriarcado, que criaram o estereótipo da Amélia: “bela, recatada e do lar”. Mulheres que aspirassem a uma carreira profissional nos países do ocidente e do oriente, muitas vezes, eram masculinizadas e tratadas como indivíduos que buscavam fugir na norma hegemônica. Daí a necessidade de, na maioria dos casos, apagar o seu nome. Quando o sucessor da rainha Hatshepsut no Egito ordenou a destruição de todos os templos e textos contendo a narrativa do reinado da soberana, por exemplo, sua intenção era riscá-la da História. Contudo, sua memória resistiu, assim como a de outras mulheres que viveram séculos depois, como no caso da pintora Catherine Duchemin.

Litogravura representando Catherine Duchemin, atribuída a
Sébastien Bourdon.

Nascida em 12 de novembro de 1630, pode-se dizer que o amor de Catherine pelas artes surgiu quando ela ainda estava no berço. Seu pai, Jacques Duchemin, tinha feito renome como escultor durante o reinado de Luís XIII. Ele e sua esposa, Elisabeth Hubault, viviam numa modesta residência na rue Saint-Martin, localizada na paróquia parisiense de la Boucherie. Sendo assim, podemos supor que Catherine recebeu suas primeiras aulas de desenho no ateliê de seu pai, enquanto o observava em seu trabalho com modelos vivos. Certamente, a jovem se destacou bastante nos seus primeiros esboços, fazendo com que Jacques procurasse para a filha um mestre de pintura. Infelizmente, a história não dispõe de registros acerca de quem teria ministrado as primeiras aulas com o pincel para a primeira mulher que entraria para a Academia Real de Pintura e Escultura. Acreditava-se que ela era aluna no estúdio de Nicolas Baudesson – teoria essa que recebeu apoio do pesquisador Auguste Jal no século XIX. Contudo, nenhum documento contemporâneo comprova essa suposição. A história de vida de Catherine Duchemin parece encoberta por uma espeça neblina, através da qual podemos enxergar apenas contornos não definidos. Muito do que se sabia sobre ela desapareceu com o tempo.

Com efeito, parece verossímil que Auguste Jal estivesse procurando uma fissura factual para imaginar o primeiro encontro entre Catherine e seu futuro marido, o escultor François Girardon, que era aluno no irmão de Nicolas Baudesson, Antoine. Por outro lado, a família Duchemin e os Girardon não eram desconhecidos entre si. É possível que residissem em localidades próximas e frequentassem o mesmo comércio, além de estarem conectados pela arte. Dessa forma, o casamento entre a jovem Catherine e François parecia um bom enlace. O pai da noiva era um escultor, enquanto o noivo estava no caminho para imprimir seu nome nesse gênero artístico. Assim, em 23 de outubro de 1657, quando a filha dos Duchemin tinha 27 anos, ela se casou com Girardon. O que chama a atenção é a idade da noiva quando de seu matrimônio, uma vez que, para os padrões da época, Catherine poderia ser considerada madura demais para o casamento. O que teria então provocado tal atraso? Podemos supor que, durante sua juventude, ela passara o tempo aprimorando sua técnica no desenho e na pintura, sendo, portanto, malvista por outros homens do período. Afinal, uma mulher que se dedicava às artes como forma de sustento não era tida como um partido desejável.

“Natureza-morta com frutos e flores”, tela atribuída a Catherine Duchemin.

À época de seu casamento com François, os Girardon e os Duchemin já viviam na rue Cléry, na paróquia de Saint-Eustache. Um ano depois do matrimônio, o marido de Catherine foi escalado para redecorar o belíssimo château de Vaux-le-Vicomte (que pertencia originalmente ao Superintendente das Finanças de Luís XIV, Nicolas Fouquet, sendo depois confiscado pela Coroa após a prisão de seu proprietário, acusado de traição). Enquanto isso, Catherine continuou a refinar sua técnica, pintando principalmente flores e natureza-morta, gênero no qual ela obteria grande destaque. Conforme ressalta Susie Hodge:

Embora naturezas-mortas estivessem representadas nos afrescos de Pompeia desde o século I, o termo só foi usado no século XVII. […] Arranjos pintados de objetos cotidianos foram criados em muitas culturas diferentes, mas só por volta de 1650 é que o tema passou a ser chamado de still-leven na Holanda: still quer dizer imóvel e leven significa natureza, ou em francês nature morte. Apesar de nunca ter sido o gênero mais importante, a natureza-morta tem sido com frequência o mais realisticamente retratado, e na Holanda do século XVII, juntamente com a paisagem e o retrato, tornou-se extremamente popular por refletir o recente enriquecimento das classes intermediárias (2021, p. 175).

Ao que tudo indica, o trabalho de Catherine Duchemin com naturezas-mortas ganhou tamanha notoriedade, que ela foi aceita como membro da Académie Royale de Peinture et de Sculpture, tornando-se a primeira mulher na História da Arte a conseguir tal feito. Depois dela, as portas estavam abertas para que outras artistas assumissem um lugar dentro da Academia.

De acordo com os registros, o convide para o ingresso de Catherine na Académie Royale, em 14 de abril de 1663, partiu do próprio Luís XIV, após meticuloso estudo da obra da artista feito pelos peritos da Instituição. A peça que teria garantido a entrada de Catherine foi uma tela medindo 1,30m x 97cm, retratando um ramo de flores. Assim sendo, “seguindo a intenção do rei de conferir sua graça a todos aqueles que se destacam nas artes de Pintura e Escultura, e a todos aqueles julgados dignos, sem distinção de sexo”, a esposa do escultor François Girardon recebeu a honraria diretamente do monarca. Conforme ressalta Susie Hodge:

A Académie Royale de Peinture et de Sculpture (Academia Real de Pintura e Escultura), em Paris, foi fundada em 1648 durante o reinado de Luís XIV. Em 1795 ela se fundiu à Académie de Musique (fundada em 1669) e à Académie d’Architecture (fundada em 1671) para formar a Académie de Beaux-Artes (Academia de Belas Ates). Rejeitando os estilos de vanguarda, treinando os artistas (em sua escola, a École des Beaux-Arts) e escolhendo quem poderia expor no Salão anual, a Académie ditava os padrões da arte por toda a França. […] A primeira participante do gênero feminino foi eleita em 1663, e somente outras quinze mulheres foram eleitas durante os oitenta anos seguintes. Em 1706, as mulheres foram completamente banidas, mas, em 1720, durante uma temporada em Paris, Rosalba Carriera pintou um retrato em pastel do jovem Luís XV e, em virtude disso, foi convidada a ingressar na Académie. […] Durante anos, somente quatro mulheres eram admitidas de cada vez, para manter o número sob controle. Os membros tinham permissão para ensinar e para expor suas obras no Salão (2021, p. 180).

Dessa forma, podemos dizer que Catherine Duchemin (nome com o qual ela assinava suas telas, em detrimento do seu sobrenome de casada, Girardon), obteve um grande feito, ao furar a bolha de uma Instituição que privilegiava abertamente artistas do gênero masculino e ignorava o trabalho de muitas mulheres talentosas, que precisavam se esconder sob pseudônimos para terem suas obras apreciadas, ou simplesmente permitirem que elas fossem atribuídas a um artista anônimo, exemplificando o que Virgínia Woolf diria séculos mais tarde.

“Vaso de flores”, tela atribuída a Catherine Duchemin.

Não obstante, contribuiu para o ingresso de Catherine, a despeito do seu talento inegável, o fato de ser membro de uma família de escultores (seu pai e seu marido), além de atender aos requisitos estipulados em 1663 para uma vaga na Academia, que obrigava “todos aqueles que são capazes de servir a Sua Majestade” a se candidatarem. Isso certamente levou Catherine a apresentar suas telas, o que não desmerece de forma alguma seu talento e o fato de ser a primeira mulher admitida numa Academia oficial na história da França. Assim, o precedente para outras artistas estava aberto, incluindo posteriormente nomes como o de Élisabeth Vigée-Lebrun, Adélaïde Labille-Guiard, Madame Vien, Anna Dorothea Therbusch, entre outras no século XVIII. No caso de Catherine, deve ter sido particularmente difícil para ela conciliar sua carreira com a de esposa e mãe de família. Pouco após seu casamento com François Girardon, até o ano de 1673 ela teve cerca de 10 filhos. Não se sabe se todos eles sobreviveram à primeira infância, tampouco os problemas de saúde que a mãe certamente desenvolveu ao engravidar numa idade de risco. O fato é que, até sua morte, no dia 21 de setembro de 1698, em seu alojamento no Louvre, seu nome havia caído no ostracismo.

Dois anos após sua morte, uma amigo da família, Florent Le Comte, afirmou que Catherine havia largado seu ofício para se dedicar ao cuidado dos filhos. Não obstante, o prestígio de seu marido como escultor aumentava na medida em que Catherine era obrigada a interromper seu trabalho em decorrência das sucessivas gravidezes. Assim, quando ele assumiu a direção da Academia em 1674, a nova posição social do casal exigia de Catherine abnegação de seu ofício em prol da carreira de Girardon, fazendo com que ela desistisse do trabalho remunerado. Segundo E. Le Brun-Dalbanne:

Catherine Duchemin, após o casamento, deixou claro que não tinha mais nada a desejar, porque ainda segurava seus pincéis por um tempo. Após isso, depois de ter sido recebida como acadêmica, isto é, quando chegou à mais alta honra que uma mulher poderia reivindicar, dedicou-se indivisamente ao marido e aos filhos, mais preocupados com o seu bem-estar e de sua sábia direção do que com seus sucessos como artista (DALBANNE, 1876, p. 11, apud LELY, 2004).

Na história dos ocidentes, se tornou comum o provérbio “por trás de todo grande homem existe uma grande mulher”. Assim, Catherine acabou se tornando mais um exemplo de artista excepcional, que se viu obrigada a renunciar aos seus talentos para trabalhar em prol da carreira de seu marido. Embora sua passagem pelo mundo das artes tenha sido curta, ela foi uma das poucas pintoras de seu tempo a receber elogios em diversos compêndios literários sobre mulheres célebres e em dicionários onomásticos do século XVIII. Como testemunho de seu talento, algumas de suas telas profissionais ainda existem, embora a maioria tenha se perdido com o tempo, certamente por não terem sido assinadas pela artista.

Retrato da artista Catherine Duchemin, pintado no século XVII por autor desconhecido (anteriormente atribuído a Sébastien Bourdon).

Tendo falecido aos 67 anos, existe ainda na Igreja de Sainte-Marguerite, na rue Saint-Bernard, em Paris, os fragmentos do que uma vez fora um belíssimo monumento funerário dedicado em memória da artista. O esboço, por sua vez, foi planejado por seu marido, François Girardon, e inclui um grupo de anjos esculpidos sobre mármore em tamanho natural, velando sobre um grande sarcófago branco, em cima do qual jaz um Cristo envolto em sua mortalha, com uma Virgem Maria chorando pela morte do filho amado. Sem dúvidas, uma belíssima homenagem para uma mulher que desafiou padrões e imprimiu seu nome na arte francesa. Destarte, como testemunho de sua notoriedade, existem dois retratos da artista feitos ainda em seu tempo de vida, que deixaram para a posteridade suas feições e atributos. Um deles é uma litogravura e o outro é uma tela em tamanho natural, anteriormente atribuída a Sébastien Bourdon. Esta última apresenta Catherine sentada defronte um cavalete que sustenta uma tela. Com uma das mãos, ela segura uma paleta de cores e com a outra um pincel. A obra, que acaba de ser adquirida pelo Palácio de Versalhes, apresenta Catherine olhando com uma expressão serena e um sorriso cândido para o observador, enquanto se dedica à atividade que acabaria imortalizando seu nome na História da Arte.

Referências Bibliográficas:

HODGE, Susie. Breve História da Arte. São Paulo: Olhares, 2021.

_. Breve História das Artistas Mulheres. São Paulo: Olhares, 2021.

LELY, Sandrine. Catherine Duchemin. 2004 – Acesso em 12 de junho de 2022.

Um comentário sobre “Catherine Duchemin: a primeira mulher a entrar para a Academia Real de Pintura da França!

  1. Olá Renato, gosto muito de pintura mas nunca tive conhecimento dessa pintora, Catherine Duchemin. Gostei muito de conhecê-la através da sua página. Até então a única pintora que eu conhecia era Artemisia Gentileschi, também filha de um pintor famoso, Orazio Gentileschi, do período Barroco italiano. Foi muito bom acrescentar Catherine Duchemim ao meu conhecimento de pintura. Estou inscrita na sua página há muito tempo e tenho grande admiração por você.

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