Por: Renato Drummond Tapioca Neto
Em 1769, enquanto o rei Luís XV da França e a imperatriz Maria Teresa do Sacro-Império negociavam os termos do contrato de casamento do delfim Luís Augusto (futuro Luís XVI) com uma arquiduquesa da casa d’Áustria, a jovem princesa Maria Antonia passava por um intenso processo de “afrancesamento”, que incluía o estudo da História e da língua francesa. Seu corpo juvenil, então em fase de desenvolvimento, deveria ser moldado nos parâmetros exigentes de Versalhes. A cada etapa desse processo, o rei solicitava um retrato da futura delfina, para comprovar o sucesso da empreitada. No ano seguinte, com 15 anos incompletos, ela partiu de Viena para se casar com um rapaz que ela havia conhecido apenas através de pinturas e adentrar em um universo decadente, habitado por nobres nada simpáticos à esposa do próximo soberano. Tudo nela precisava ser alterado, inclusive o nome, que passou a ser Marie Antoinette (em português, Maria Antonieta). Nos seus anos iniciais em Versalhes, a delfina precisou se adaptar aos inúmeros cerimoniais da corte, como o lever e ou coucher, fazendo com que ela se queixasse à mãe por meio de cartas de que era obrigada a pôr rouge diante dos olhos de todo mundo.

Retrato da jovem delfina Maria Antonieta, pintado em 1771 por Joseph-Siffred Duplessis.
Ser a futura rainha da primeira monarquia cristã da Europa exigiu da jovem Maria Antonieta inúmeras provações, principalmente quando o assunto era sua imagem. Afinal, a aparência dos herdeiros do trono deveria ser publicamente construída por cabeleireiros, modistas e alfaiates, de forma a representar o brilho da coroa francesa. Muitos retratos foram pintados de Antonieta durante essa fase pelas mãos habilidosas de pintores como Joseph Ducreux, Jean-Baptiste Charpentier e Joseph Krantzinger, mas nem todos são conhecidos por nós hoje. Recentemente, o palácio de Versalhes adquiriu um retrato original da delfina comissionado pelo rei Luís XV quando ela tinha 16 anos, em 1771. A tela em questão, que segundo os especialistas esteve “desaparecida” por mais de 100 anos, apresenta uma adolescente de feições cândidas e olhar inquisitivo. Na imagem, o processo de “afrancesamento” da arquiduquesa austríaca estava completo: seus cabelos estão empoados e ela usa um vestido com corpete azul bebê, drapeado com musselina branca. Nenhuma joia da vasta coleção que a delfina recebeu aparece na pintura, o que empresta à tela um aspecto mais descontraído.
O retrato era propriedade de uma família oriunda da região de Essonne, que não tinha a menor ideia de que a pessoa na tela se tratava da última rainha da França Absolutista, em seus anos como delfina. Acredita-se que o rei Luís XV encomendou a tela para presentear a mãe da jovem, a imperatriz Maria Teresa. A intenção original do artista Joseph-Siffred Duplessis, responsável pela tela, era pintar um retrato equestre de Maria Antonieta. Mas, como o número de sessões de pose foram insuficientes para completar a ideia do pintor, ele preferiu concluir o quadro apenas com o busto da princesa. Sabe-se que mais duas versões foram reproduzidas a partir desse retrato, hoje infelizmente desaparecidas. Durante o processo revolucionário, diversos quadros de nobres e membros da família real foram destruídos e/ou roubados das mansões aristocráticas onde costumavam ficar expostos. Mas, graças a Grégoire Lacroix, diretor do departamento de Pinturas e Desenhos Antigos da casa de leilões Aguttes, a tela foi identificada como a delfina da França. É possível que ela tenha sido pintada no ateliê de Duplessis com a ajuda de seus discípulos, algo muito comum nas oficinas de arte daquele período.

O retrato em questão era propriedade de uma família oriunda da região de Essonne, que não tinha a menor ideia de que a pessoa na tela se tratava da última rainha da França Absolutista.
Os proprietários que queriam vender a pintura se referiam a ela como La Petite Marquise (“A Pequena Marquesa”). Grégoire Lacroix foi então contatado por eles e, para surpresa do especialista, ele se deparou com um original da futura rainha da França:
Os traços da modelo me fizeram pensar em Maria Antonieta. Fizemos uma pequena pesquisa e conseguimos encontrar o esboço em Versalhes feito por Duplessis. Estudando a história desta comissão, pudemos identificar o fato de ele ter feito várias pinturas, inclusive uma que desapareceu há cem anos.
Depois de identificada como a esposa de Luís XVI, a tela foi rebatizada como Retrato da Dauphine da França, Marie-Antoinette de Lorraine-Habsbourg (1755-1793). A obra possivelmente fazia parte da coleção da Marquesa de Ganay. Porém, conforme mencionado acima, era comum que telas como essa desaparecessem ao longo do tempo, seja através de saques ou então vendidas a novos proprietários que não conheciam a história por trás do quadro. Segundo Lacroix:
Acontece cerca de uma vez por semana neste campo. Encontramos obras e, muitas vezes, os proprietários não conhecem a história delas, especialmente considerando os acontecimentos históricos de mais de 100 anos – a Revolução Francesa, os movimentos nos castelos … Muitos castelos franceses foram esvaziados durante a Revolução e as coisas se dispersaram e perderam a identidade.
Depois que a autenticidade da tela foi comprovada, ela foi posta em leilão pela casa Aguttes. O valor da peça foi originalmente estipulado entre 20 mil e 30 mil euros (respectivamente 127.856,63 e 191.785,80 reais, em câmbio atual), uma vez que as obras de Duplessis são geralmente vendidas por valores entre 10 mil e 20 mil euros. Qual não foi a surpresa dos leiloeiros quando o Palácio de Versalhes arrematou o quadro por nada menos que 175.500 euros (aproximadamente 1.121.744,43 de reais, em câmbio atual)? Ou seja, cinco vezes mais do que o valor previsto pela Instituição. Passados mais de 220 anos desde que a Revolução atravessou os portões dourados de Versalhes, o retrato da jovem delfina finalmente está voltando para casa!
Fonte: The Connexion – Acesso em 17 de dezembro de 2021.