Por: Renato Drummond Tapioca Neto
No Canadá, o movimento antimonarquista começa a ficar cada vez mais expressivo. Desde 2018, estátuas da rainha Vitória foram alvo de pichações por grupos reacionários à ideia da manutenção do regime no país. Para grande parte deles, o período vitoriano representou uma Era de Imperialismo e extermínio dos povos nativos de diversas partes do globo. De muitas formas, a soberana corporificou essa época, que acabou sendo batizada com seu nome. Seu rosto estava estampado em selos, cédulas, periódicos ilustrados e esculpido em estátuas comemorativas, erguidas em locais públicos. Com o término da Segunda Guerra Mundial, a ideia republicana ganhou maior número de adeptos nessa parte do continente americano, que viam na manutenção de uma família real a permanência das mesmas políticas colonialistas de outrora, embora imbuídas de uma nova roupagem. No dia 1 de julho, quando geralmente se comemora a fundação do Canadá pelas colônias britânicas em 1867, estátuas da rainha Vitória e de sua trineta, a rainha Elizabeth II, foram derrubadas de seus pedestais.

Estátua da rainha Elizabeth II, derrubada de seu pedestal.

Face da estátua da rainha Elizabeth II contra o chão.
Com efeito, o Canadá foi um dos países membros da atual Comunidade de Nações Britânicas (forjada a partir das cinzas do antigo Império Britânico) que a rainha Elizabeth mais visitou em seu reinado de quase 7 décadas. Em várias dessas passagens pelo país, ela foi recebida com uma mistura de rostos amistosos e faces insípidas. Em 1964, por exemplo, quando a rainha fez uma viagem diplomática a Quebec, ela foi recepcionada de costas por alguns canadenses contrários à ideia de uma monarquia no século XX. Esses protestos, embora não atingissem a maioria da população, se intensificaram com o passar do tempo, chegando às primeiras décadas do século XXI com maior força, manifestada pela derrubada de monumentos em locais públicos. Estátuas e placas comemorativas erguidas em ruas, praças e avenidas são lugares onde a humanidade procura cristalizar a memória, num esforço coletivo ou individual para que as gerações futuras não se esqueçam do passado. Essas práticas não nascem de uma vontade espontânea e sim de uma atitude artificial por parte dos seres humanos, que, vivendo constantemente sob o signo da mudança, temem que o movimento de aceleração do presente acabe consumido as lembranças do que já se foi.
Ainda nesse ano, estátuas da rainha Vitória foram pichadas no Canadá com palavras que demonstram o sentimento das novas gerações por uma mudança de paradigmas políticos. Com efeito, a rainha Elizabeth II tem plena consciência desse movimento e é sabido que o governo canadense já demonstrou intensão de romper com a Comunidade de Nações após a morte da monarca. O governo britânico, por sua vez, desaprovou a derrubada dos monumentos: “Obviamente, condenamos qualquer desfiguração das estátuas da rainha”, disse um porta-voz. O ataque às estátuas na cidade de Winnipeg aconteceu logo após a descoberta de um cemitério de centenas de crianças não identificadas, sepultadas em antigas escolas indígenas. “Nenhum orgulho no genocídio”, gritava uma multidão enquanto o monumento da rainha Vitória era desfigurado. Conforme dito anteriormente, o rosto da soberana acabou sendo associado a um momento extremamente delicado da história canadense, quando a colonização dizimou centenas de povos nativos por um processo de aculturação e de conflitos armados, algo que já vinha acontecendo desde que o país era possessão francesa.

Estátua da rainha Vitória derrubada de seu pedestal.

Cabeça da estátua da rainha Vitória, encontrada no rio Assiniboine, em Winnipeg, por Kayaker Tom Armstrong no dia 2 de julho de 2021.
Não obstante, um dos genros da rainha Vitória, John Campbell, 9.º Duque de Argyll, casado com a princesa Louise, chegou a Governador-Geral do país entre os anos de 1878 e 1883. O porta-voz do governo britânico acrescentou: “Nossos pensamentos estão com a comunidade indígena do Canadá, após essas trágicas descobertas e acompanhamos esses assuntos de perto e continuamos a nos envolver com o governo do Canadá nas questões indígenas”. Durante os séculos XIX e XX, cerca de 150.000 crianças indígenas foram retiradas de suas famílias e forçadas a frequentar escolas inglesas, imbuídas da missão de evangelizá-las e assim integrá-las à sociedade dita “civilizada”. Esse processo também ficou conhecido como “o fardo do homem branco” e foi usado como desculpa para desapropriar comunidades de suas terras ancestrais e usar os povos conquistados como mão-de-obra na nascente indústria. Através de uma educação doutrinária, as crianças teriam um papel importante na nova sociedade que os britânicos pretendiam construir no Canadá. Em 2015, uma Comissão da Verdade e Reconciliação, organizada para avaliar esse episódio, classificou-o como “genocídio cultural”.
De acordo com as estatísticas, cerca de 6000 crianças morreram enquanto frequentavam essas escolas. Muitas vezes alojadas em instalações mal construídas, os alunos e alunas adoeciam com facilidade e acabavam morrendo por insalubridade. Em todo o país, as celebrações do dia 1 de julho foram canceladas e as estátuas de personagens ligadas ao imperialismo, erguidas nos locais onde essas instituições existiam, foram atacadas. Há quem veja tais ataques a monumentos públicos como um ato de vandalismo. Afinal, pichar e derrubar estátuas não tem o poder de apagar o que já foi feito. Contudo, essa não é uma atitude inédita. Desde os tempos antigos, nomes de reis e imperadores malquistos pela sociedade eram apagados de ruas; seus monumentos eram derrubados e seus restos mortais destruídos. Esse fenômeno era conhecido no direito romano como damnatio memoriae, ou condenação de memória. Nessa lógica, apagar qualquer lembrança ligada ao indivíduo era como se ele jamais tivesse existido. Isso pode ser melhor exemplificado em tempos recentes pela derrubada da estátua do escravocrata britânico, Edward Colston, de seu pedestal na cidade de Bristol.

Manifestante fazendo protesto sobre o pedestal onde antes se erguia a estátua da rainha Vitória.
Todavia, é preciso ressaltar que a rainha Vitória nunca governou de fato. Conforme bem definiu o jornalista Walter Bagehot no século XIX, o trabalho da monarca consistia em apoiar as políticas dos Premiês, ser consultada, aconselhar e advertir. O mesmo se aplica à sua trineta, Elizabeth II. Desde a Revolução Inglesa no século XVII que os soberanos exercem o cargo de Chefes de Estado, ou seja, eles apenas representam a Nação. Ao longo de seu reinado, Vitória viu seus poderes sendo cada vez mais limitados pelo Parlamento. Por outro lado, a soberana nunca se manifestou de forma contrária às políticas imperialistas na África e na Ásia promovidas durantes os mandatos de seus Primeiros-Ministros, especialmente Benjamin Disraeli e William Gladstone. Portanto, ao derrubarem e desfigurarem monumentos dedicados à rainha, é o corpo político de Vitória Regina que está sendo atingido e não seu corpo pessoal, Vitória Hanôver. Na qualidade de Chefe de Estado, ela foi assimilada como um símbolo do imperialismo britânico, algo que os canadenses não querem mais enaltecer na memória coletiva do país. Além disso, foi também durante o reinado de Vitória que foram firmados os acordos entre o governo britânico e as primeiras nações indígenas do Canadá para fundação das escolas.
Dessa forma, no protesto que aconteceu na cidade de Winnipeg, milhares de manifestantes aplaudiram quando a estátua da soberana foi pichada com os dizeres “éramos crianças” e derrubada de seu pedestal. Em entrevista à emissora canadense CBS, uma das ex-alunas desses colégios (que existiram por 165 anos até 1996), Belinda Vandenbroeck, disse: “Ela [a rainha Vitória] não significa nada para mim, exceto que suas políticas e seu colonialismo é o que está nos comandando neste minuto enquanto você e eu falamos”. Uma marcha em apoio às crianças indígenas mortas aconteceu nesta quinta-feira, dia 1 de julho de 2021, em Toronto, centro financeiro do país. Enquanto isso, outra passeata ocorria em Ottawa, levantando a hashtag #CancelCanadaDay (Cancele o Dia do Canadá). Para o Primeiro-Ministro, Justin Trudeau, as recentes descobertas dos restos mortais “nos pressionaram com razão a refletir sobre os fracassos históricos de nosso país”. Segundo ele, ainda existem muitas injustiças contra os povos indígenas no Canadá. Atualmente, a polícia local está investigando os responsáveis pela derrubada dos monumentos dedicados às duas rainhas.
Fontes:
BBC News – Acesso em 2 de julho de 2021.
CNN – Acesso em 2 de julho de 2021.
Winnipeg News – Acesso em 2 de julho de 2021.
Bibliografia Consultada:
BAIRD, Julia. Vitória, a rainha: a biografia íntima da mulher que comandou um império. Tradução de Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Objetiva, 2018.
CARTER, Miranda. Os três imperadores: três primos, três impérios e o caminho para a Primeira Guerra Mundial. Tradução de Manuel Santos Marques. Alfragide, Portugal: Texto Editores, 2010.
HOBSBAWM, Eric J. A era dos extremos: o breve século XX. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
HOBSBAWM, Eric J. A Era dos Impérios, 1875-1914. Tradução de Sieni Maria Campos e Yolanda Steidel de Toledo. 17ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução de Bernrado Leitão. – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1994.
MARR, Andrew. A real Elizabeth: uma visão inteligente e intimista de uma monarca em pleno século 21. Tradução de Elisa Duarte Teixeira. São Paulo: Editora Europa, 2012.
É lamentável!! Mas essas manifestações infelizmente existem até hoje!!
CurtirCurtir
Eu não os culpo, o que aconteceu nas Residential Schools foi desumano! Muitos First Nations sofrem com uso desenfreado de alcool e drogas devido aos traumas e maus-tratos.
CurtirCurtir