Por: Renato Drummond Tapioca Neto
Em 1361, D. Pedro I de Portugal organizou para sua finada esposa, Dona Inês Pires de Castro, um grandioso funeral como nunca se vira antes na história daquele país. O corpo daquela que foi declarada rainha depois de morta encontrou repouso em um magnífico túmulo no Mosteiro de Alcobaça, ricamente ornamentado com cenas da Paixão de Cristo em alto relevo, que se misturam a representações da vida da própria morta. Seis anos depois, o rei se juntaria à consorte em um túmulo de igual lavra. Os dois monumentos fúnebres se constituem na mais sublime expressão da arte gótica, esculpidos para durarem por toda a eternidade. Infelizmente, os corpos de Pedro e Inês, passadas tantas atribulações em seu tempo de vida, tiveram o merecido descanso perturbado nos séculos vindouros. Em 1 de agosto de 1569, o rei D. Sebastião, alimentado pela narrativa lírica inesiana, ordenou que os dois sarcófagos fossem abertos na presença dos monges que viviam no Mosteiro. Porém, essa não seria a última vez em que os remanescentes humanos ali sepultados tiveram seu sono interrompido. Durante a invasão francesa em Portugal no ano de 1810, os monumentos foram vilipendiados de forma irreparável, incluindo os despojos do rei e da rainha póstuma.

Detalhe da efígie tumular de Dona Inês de Castro, no Mosteiro de Alcobaça. O túmulo foi vandalizado por soldados franceses em 1810.
Segundo a crônica de Rui Pina e de Fernão Lopes, Dona Inês de Castro foi decapitada no dia 7 de janeiro de 1355, por ordens do rei D. Afonso IV de Portugal. Em seguida, o corpo e a cabeça foram sepultados numa cova rasa na Igreja de Santa-Clara-a-Velha, em Coimbra. Como não era costume embalsamar os despojos das rainhas portuguesas – não sendo Inês uma soberana na época de sua morte –, então é possível que os remanescentes humanos já estivessem em avançado estado de decomposição quando foram transladados para Alcobaça, em 1361. Assim que os soldados franceses levantaram a tampa de seu sarcófago em 1810, constaram que o crânio estava seccionado exatamente na altura das vértebras do pescoço. À semelhança do que os revolucionários fizeram com os cadáveres dos reis franceses sepultados na Basílica de Saint-Denis em 1793, os soldados de Napoleão desmantelaram os ossos da rainha póstuma e os atiraram numa sala contígua do Mosteiro. Já o corpo de D. Pedro I, que estava embalsamado, foi envolvido em um manto de cor púrpura e retirado de seu túmulo. Os dois monumentos funerários foram depredados. O nariz da efígie de Dona Inês foi partido, assim como as asas de alguns dos querubins que circundavam sua figura.

Relicário de bronze, reproduzindo o túmulo de Dona Inês. O paradeiro da peça permaneceu desaparecido por mais de 200 anos, até ser arrematava em um leilão pelo cineasta João Rocha.
Não obstante, as cenas entalhadas em alto relevo nas laterais dos túmulos também foram vandalizadas, sem qualquer consideração pela memória das pessoas ali sepultadas. Apenas com a desocupação do Mosteiro pelas tropas francesas foi que os monges iniciaram seu trabalho de restauração nos monumentos sepulcrais. O crânio de Dona Inês, que ainda continha alguns fios dos famosos cabelos louros, reuniu-se ao restante de seus ossos e foi colocado novamente para repousar em sua sepultura, outra vez selada. Até o ano de 1956, os dois sarcófagos foram movidos periodicamente de lugar na igreja, quando regressaram para sua posição original no transepto, um de frente para o outro. Na ocasião em que o Mosteiro de Alcobaça foi invadido, a família real se encontrava refugiada no Brasil. Segundo uma informação publicada no jornal francês Le Magasin pittoresque de 1858:
Nos dias 25 ou 2 de setembro de 1810, o túmulo que Dom Pedro havia erigido em Alcobaça para a vítima dos três cavaleiros ruins (‘) havia sido violado indignamente. Aquela que era rainha somente após sua morte e que iria servir para inspirar as palavras dos poetas; estava ali abandonada desoladamente em partes ao chão, entre os entulhos tristes, foi quando um pobre monge Bernardino do convento foi furtivamente recolher estes belos cabelos, que os séculos não haviam por assim dizer, danificado, além dos exageros dos poetas do século XVI. Esses belos cabelos pareciam verdadeiros fios de ouro, e era o único tesouro encontrado entre os ossos quebrados pelos homens ímpios que revistavam os túmulos reais às vésperas da batalha do Bussaco. O monge que tinha estes cabelos louros entregou-os ao Marquês de Borba, um dos regentes do reino, e em Lisboa, foi decidido que o precioso cabelo atravessaria o oceano e seria oferecido ao Príncipe Regente, que por dois anos encontrou um asilo em Rio de Janeiro. O Marquês, ciente da viagem de um parente, aproveitou a oportunidade para enviá-los ao novo destino, e entregou ao fiel Conde de Linhares, que se comprometeu a oferecê-los ao regente (v. 26, p. 355).
De acordo com a publicação do jornal, ao chegar no Rio de Janeiro o ministro levou ao Paço de São Cristóvão a caixa contendo os fios de cabelo de Dona Inês para serem entregues a D. João. No instante em que o invólucro foi aberto na presença do príncipe regente, uma poderosa rajada de vento abriu com ímpeto todas as portas e janelas do edifício, soprando para longe o precioso conteúdo do relicário. Dizem que D. João teria ficado tão amedrontado que, interpretando aquilo como um aviso de mau agouro, teria se escondido com medo da tempestade tropical que se avizinhava. Enquanto isso, o conde de Linhares gritava desesperado aos escravizados ocupados no jardim do pátio para que viessem em seu auxílio, na esperança de recuperar os fios de cabelo caídos da caixa. Dizem que ao ouvir a palavra “caído”, os cativos acreditaram que um raio de fato havia atingido os aposentos de D. João, gerando assim um caos total. Quando a algazarra finalmente foi controlada, “o ministro de Estado havia fechado a caixa, mas os cabelos de Inês já haviam ido embora”.

O cineasta João Rocha exibindo as fotos do relicário na recente edição da obra de Maria Leonor Machado de Sousa.
Da forma como foi narrada pelo Magasin pittoresque, a cena ganha tons de uma verdadeira comédia pastelão. Sabemos que existem pelo menos dois relicários com fios de cabelo de Dona Inês. Um dos quais se encontra na coleção de Jorge Pereira de Sampaio. Já a famosa caixa enviada para D. João VI no Brasil, permaneceu desaparecida por mais de dois séculos até ser arrematada num leilão em 2016 pelo cineasta João Rocha (sobrinho de Glauber Rocha): “Fui buscar outra peça que havia comprado, quando vi a caixa relicário em um canto, quase esquecida. Senti algo diferente e enquanto não consegui arrematar a caixa, não parei de pensar nela. Meu sócio Rafael Vieira não acreditou quando eu disse: isso é algo muito importante, eu já vi isso!”. O invólucro de bronze reproduz exatamente a arte do túmulo de Dona Inês de Castro, no Mosteiro de Alcobaça. Segundo João: “Foram meses de obsessão; noites em claro, debruçado na internet, entrando em contato com grandes museus e instituições do mundo todo. Após alguns meses, recebi uma primeira resposta positiva”. A curadoria do Mosteiro respondeu ao cineasta, dizendo que aquela caixa se tratava de uma relíquia da rainha póstuma de Portugal. “Foi aí que gelei, meu coração disparou”, conta João.

Comparação entre o túmulo de Dona Inês e o relicário outrora perdido.
Mais impressionante ainda foi valor que o reputado cineasta pagou pela relíquia: 500 reais! “No leilão me deparei com uma caixa em bronze, muito antiga, esverdeada e que lembrava uma antiga tumba gótica com a efígie de uma rainha deitada em cima da tampa. Percebi que já havia visto aquilo em algum lugar, possivelmente quando estive na Europa.”, relatou João Rocha para a Revista Ponto Jovem. “Eu sabia que estava diante de algo muito importante”, disse ele. “Tinha um ninho de insetos preso dentro da caixa com um pedaço de fio de cabelo. Até procuramos o laboratório Biofutura, que realiza perícia de DNA, para tentar comparar as amostras, mas infelizmente o pedaço do fio estava contaminado e era muito pequeno para os testes”. Após a confirmação da importância da peça pela direção do Mosteiro de Alcobaça, João foi encaminhado para a importante filóloga Maria Leonor Machado de Sousa, autoridade nos estudos inesianos e autora da obra Inês de Castro: um tema português na Europa. Maria Leonor, que é vice-presidente da assembleia geral da Fundação Inês de Castro, ajudou a resolver o enigma de João. Após vários estudos, a autenticidade do relicário foi finalmente publicada no relatório de atividades da Fundação, em 2018.

A autenticidade do relicário foi confirmada pela Fundação Inês de Castro, em 2018.
Em seguida, Maria Leonor convidou João para colaborar com a 3ª edição revista e atualizada de seu livro, em cujo caderno ilustrado aparecem as imagens do relicário de bronze de Dona Inês, outrora perdido. Atualmente, o cineasta está trabalhando em um novo documentário sobre a rainha póstuma de Portugal, reunindo depoimentos de autoridades no assunto, como a própria Maria Leonor. O filme pretende contar a narrativa dos amores de Pedro e Inês à luz de pesquisas recentes na área da filologia, literatura, dos estudos de gênero e sexualidade. A história da dama galega que conquistou o coração do príncipe de Portugal encantou o imaginário coletivo através das deliciosas palavras de Luís Vaz de Camões e Garcia de Resende, passando pela pintura histórica no século XIX, pela televisão e pelo cinema no século XX. Infelizmente, em decorrência do atual cenário pandêmico, a produção do documentário de João Rocha precisou ser um pouco adiada, mas o processo de pesquisa e coleta de depoimentos continua em andamento. Através do trabalho do diretor e de sua equipe, a trajetória de Dona Inês chegará ao grande público de uma forma lúdica e informativa, fazendo jus à celebridade de seu nome, eternizado para sempre no reino da história e no da ficção.
Referências Bibliográficas:
MEGIANI, Ana Paula Torres; SAMPAIO, Jorge Pereira de (Orgs.). Inês de Castro: a época e a memória. São Paulo: Alameda, 2008.
OLIVEIRA, Ana Rodrigues. Rainhas medievais de Portugal: 17 mulheres, 2 dinastias, 4 séculos de História. Lisboa, Portugal: A Esfera dos Livros, 2010.
SOUSA, Maria Leonor Machado de. Inês de Castro: um tema português na Europa. 3ª ed. Lisboa, Portugal: Caleidoscópio, 2020.
VASCONCELOS, António de. História de Portugal: Inês de Castro. Matosinhos, Portugal: QuidNovi, 2004.
Sites:
Grupo de Diários América – Acesso em 2 de junho de 2021.
Revista de Cinema – Acesso em 2 de junho de 2021.
Revista Ponto Jovem – Acesso em 2 de junho de 2021.
Gostaria muito ser informado sobre o andamento do filme sobre Inez de Castro.
CurtirCurtir
Impressionante
…!
CurtirCurtir
O que se percebe e que existiu uma não aceitação dela como rainha . Ela foi morta e a luta para ter direito ao amor real continuou a ponto de ser massacrada no seu fio de cabelo que atravessou o oceano para ser linchada . Que missão linda de Inês de Castro, quanta valentia para este espírito .
CurtirCurtir
Belo texto! Parabéns!!
CurtirCurtir
Estou, desde agora, aguardando ansiosa pelo filme!
CurtirCurtir