Vitória I do Reino Unido é certamente a soberana mais biografada da história da Inglaterra. De Agnes Strickland, no século XIX, a Julia Baird, em 2016, ela aparece como sujeito numa série variada de livros, escritos nos últimos 180 anos. A julgar pela quantidade de títulos que anualmente são lançados sobre ela, parece que o tema ainda não se esgotou. Em termos de sucesso editorial, talvez se compare apenas a Maria Antonieta, cujo mundo privado e influências na cultura ocidental já foi explorado por biógrafos a partir dos mais diversos pontos de vista. O interesse em torno de Vitória é grande não apenas por ela ter representando e, em muitos sentidos, corporificado o período da história que leva seu nome, como também pela quantidade de filmes e séries que romantizam sua pessoa, transformando-a assim em objeto de culto para muitos fãs e admiradores. Porém, a nova pesquisa desenvolvida em torno dessa figura tem apresentado novas informações que em muito ajudam a desconstruir essa aura romântica, a exemplo do apoio que a monarca deu às políticas imperialistas de seus Premiês e as tensões vivenciadas por ela no âmbito doméstico. Esse contraste entre a esfera pública e a privada, por sua vez, é o que dá corda à recente biografia escrita pela jornalista e historiadora Julia Baird, “Vitória, A Rainha” (2018).

Julia Baird
Formada em Jornalismo e com PhD em História pela Universidade de Sydney, Julia Baird começou sua carreira trabalhando no “The Sydney Morning Herald” e depois no “New York Times”, no qual possui uma coluna. Além de ter atuado como editora do “Newsweek”, ela também escreveu para o “The Guardian”, “The Washington Post” e atualmente apresenta um programa de notícias chamado “The Drum”, da ABC TV (Austrália). Membro do Shorenstein Center on Media, Politics and Public Policy da Universidade de Harverd, Baird ainda é autora de “Media Tarts: How the Australian Press Frames Female Politicians” (2004) e “Phosphorescence: On awe, wonder and things that sustain you when the world goes dark”, lançado neste ano. Publicado em 2016, “Victoria, The Queen: An Intimate Biography of the Woman Who Ruled an Empire” foi o seu primeiro livro de caráter biográfico, fruto de anos de pesquisa nos Arquivos Reais, assim como em outros centros de documentação. Com uma escrita leve e, alguns momentos, divertida, ela apresenta fatos até então pouco conhecidos sobre a rainha Vitória e o contexto político e social no qual ela viveu. No ano de 2018, o livro ganhou uma bela edição pela Editora Objetiva, um selo do Grupo Companhia das Letras.
O lançamento de “Victoria, The Queen”, por sua vez, veio sanar uma grande lacuna nos estudos sobre a monarca aqui no Brasil. Desde a publicação da obra de Anka Muhlstein, em 1999, que o nosso mercado editorial carecia títulos mais relevantes. A primeira biografia da soberana que circulou nas livrarias do país foi a de Lytton Strachey, que até hoje serve de guia para muitos autores. Apesar do pouco acesso que teve a fontes mais sólidas, Strachey conseguiu produzir um retrato bem acurado da personalidade de Vitória. Muitos livros escritos depois caíram na mera repetição de suas palavras, como a obra de Edith Sitwell, traduzida em 1945 pela Editora José Olympio e desde então nunca mais reeditada aqui. Em 1987, a Editora Nova Cultural lançou uma coleção de paradidáticos intitulada “Grandes Líderes”, com um volume de 80 páginas dedicado à rainha, escrito por Deirdre Shearman. Assim sendo, a obra de Baird pode ser considerada a biografia mais completa da soberana publicada no Brasil nos últimos 100 anos. A edição possui um ótimo acabamento, com páginas impressas em papel pólen soft e boa diagramação, além de contar com caderno ilustrado. Na capa, uma reprodução do retrato da jovem rainha, pintado por Franz Xaver Winterhalter.
Com tradução de Denise Bottmann, a narrativa de Baird, conforme o próprio subtítulo do livro sugere, privilegia a vida privada da soberana, revelada através de cartas e de seus diários pessoais. A autora ressalta que muitas das fontes referentes à monarca foram editadas por sua filha Beatrice e outros funcionários reais, que deliberadamente omitiram detalhes importantes do seu cotidiano, como sua relação com Albert e seus dois favoritos, John Brown e Abdul Karim. Muitos documentos originais da época foram adulterados e depois destruídos, para que a população guardasse na memória apenas a imagem da soberana imponente e não a da mulher insegura, que se sentia intimidada na presença de pessoas mais inteligentes e nutria forte ciúme dos filhos. Felizmente, algumas fontes conseguiram escapar ao crivo dos editores e é a partir desses vestígios que Julia consegue construir uma análise que abarca o privado e o pitoresco na história da soberana. A obra se divide em cinco partes, dedicadas a fases diferentes da vida da biografada, desde sua infância reclusa no palácio de Kensington, passando pelos primeiros anos de reinado, seu casamento com Albert, a viuvez, até a década mais gloriosa de seu governo, quando sua imagem servia de figura de proa para construção do império.

A rainha Vitória, por Franz Xaver Winterhalter.
De todas elas, talvez as partes mais interessantes para o leitor e a leitora sejam as duas primeiras, pois demonstram com mais precisão a juventude da rainha e os conflitos vivenciados por ela no âmbito doméstico. Para muitos de nós, a imagem mais forte de Vitória é a da viúva de Windsor, eternamente de luto pela morte do marido e com uma expressão carrancuda nas fotos. Nos esquecemos, porém, da criança impetuosa que queria ler livros que sua mãe não permitia e que gostava de imitar as pessoas; da jovem rainha inexperiente, que confundia teimosia com força; ou da esposa que não estava inicialmente disposta a dividir seus poderes com o príncipe consorte e se envolveu em vários desentendimentos com ele por causa disso. Todas essas facetas da vida de Vitória permanecem parcialmente nubladas pelo trabalho de romantização levado à cabo por novelistas e diretores, quando não por membros de sua própria família. Nesse sentido, Julia Baird elaborou um trabalho de desconstrução, com base em cartas e livros de memórias de pessoas que conheceram a rainha nessa fase de sua vida e que deixaram registrado um retrato bem diferente daquele que estamos acostumados a ver. Essa parte da narrativa contempla os primeiros 40 anos da vida da monarca, até que a morte de Albert em 1861 transformou completamente a situação.
Por outro lado, Julia Baird pouco tem a dizer sobre o relacionamento da rainha Vitória com outras cabeças coroadas do continente, especialmente as soberanas que reinaram no mesmo período, como Isabel II de Espanha e Maria II de Portugal. Esta última, por sua vez, conheceu Vitória em 1827 e depois se tornou aparentada com ela pelo casamento. Também senti certa carência no que tange ao envolvimento da monarca com os Orleans e com os Bonaparte. Após a queda do rei Luís Felipe na França, em 1848, Vitória ofereceu asilo à família real na Inglaterra, o que não a impediu, contudo, de manter uma relação amistosa com Napoleão III e sua esposa, Eugenia de Montijo. Não obstante, as últimas três partes do livro parecem se dedicar mais à situação social e política da época, com foco na relação da rainha com seus Premiês, em especial Disraeli e Gladstone. Em muitos sentidos, parece que a vida da soberana se torna ponto de partida para um estudo prosopográfico, que leva em conta as biografias de políticos britânicos e outras personalidades importantes do período, como Flonrence Nightingale. Uma atenção especial também é dada aos conflitos em que o império se envolveu durante o longo reinado de Vitória, como a crise de fome na Irlanda, as insurreições trabalhistas, a Guerra da Crimeia, a Guerra dos Bôeres, entre outras.

Capa da edição brasileira do livro de Julia Baird, “Vitória, a Rainha”.
Com efeito, apenas nos capítulos finais é que a autora retoma o tom mais intimista da biografia, fornecendo mais detalhes sobre a relação complexa da rainha com seus filhos e netos, bem como com outros membros de sua corte e estrangeiros, entre eles o indiano Abdul Karim, mais conhecido como munshi, seu professor de hindustani. Os detalhes dos momentos finais da vida de Vitória são particularmente muito interessantes. Baird conseguiu ter acesso aos relatórios do médico que atendeu a soberana nos seus últimos anos de vida, o dr. Reid, e trouxe para seus leitores informações até então inéditas sobre suas últimas vontades e de como ela desejava ser enterrada. Com quase 560 páginas, o obra de Julia Baird nos convida assim a fazer uma interessante viagem sobre o mundo público e privado de uma das monarcas mais fascinantes da história, celebrada em diversos filmes e seriados contemporâneos. Com seu faro jornalístico aliado a uma metodologia de análise e escrita rebuscada, a autora produziu um livro que muito tem a contribuir para os estudos recentes realizados sobre a vida e a época de Vitória, sem se perder nos devaneios românticos que ainda hoje cercam sua pessoa.
Renato Drummond Tapioca Neto
Graduado em História – UESC
Mestre em Memória: Linguagem e Sociedade – UESB