Por: Renato Drummond Tapioca Neto
Durante o período moderno, a Europa e outras partes do mundo assistiram simultaneamente a uma sucessão de reinados cujos representantes máximos foram mulheres. Seja na qualidade de regentes ou governando em seu próprio nome, diversas rainhas e imperatrizes comandaram tropas, criaram leis e conduziram seus territórios em tempos de abundância e de crise, contribuindo assim para desconstruir o imaginário enraizado pela tradição greco-romana de que mulheres eram incapazes de reinar sozinhas. Já durante a Idade Média, podemos identificar uma grande quantidade de condessas, duquesas e outras nobres administrando terras e propriedades de suas famílias. Excepcionalmente, alguma podia chegar ao poder, como ocorreu com Margaret I da Dinamarca e da Noruega no final do século XIV, bem como com Isabel I de Castela e Leão em 1474. Contudo, foi com Elizabeth I da Inglaterra que as bases para uma monarquia feminina começaram a ser definidas dentro do antigo estado absolutista. Através de seu incentivo às artes e à literatura, ela conseguiu criar um modelo de governo que foi seguido por muitos outros monarcas do continente e além. Tendo passado por situações difíceis antes de vestir a Coroa, Elizabeth jogou com a condição feminina para conduzir suas políticas e firmar importantes acordos diplomáticos.

Retrato da coroação de Elizabeth I, por artista desconhecido.
Histórica e biblicamente falando, a imagem do rei é masculinamente construída. Sua virilidade era sinalizada sempre por um porção de elementos fálicos, tais como espadas, punhais e codpieces, conforme podemos observar nas telas que Hans Holbein pintou para Henrique VIII durante a primeira metade do século XVI. Não obstante, essa imagem também deveria ser ressaltada em situações de demonstração de força e violência. Um rei forte e viril era aquele que vencia muitas batalhas e que duelava com adversários em torneios de justas. Quando a morte vinha numa situação como essa, como ocorreu com Henrique II da França em 1559, não era sinônimo de desonra e sim de heroísmo. Uma estátua equestre podia então ser erguida com o perfil do soberano esculpido em pedra. Já as rainhas consortes costumavam ser retratadas com elementos que denotavam sua retidão de caráter e fertilidade. Um véu preso por uma coroa de rosas brancas as relacionava à figura bíblica de Maria, enquanto um buquê de flores vermelhas podia ser segurado na altura do ventre, simbolizando o sangue da menstruação associado à capacidade de gerar herdeiros. Mas, no caso de uma rainha que também era rei, a situação mudava bastante. Não podiam ser retratas como as consortes tradicionais, tampouco da mesma forma que os soberanos homens que as precederam no trono.
No caso de Elizabeth I, as possibilidades de ela chegar ao poder eram bem remotas. Em 1536, após a morte de sua mãe, Ana Bolena, decapitada sob acusações de traição, adultério e incesto, ela perdeu o status de princesa e ficou conhecida apenas como Lady Elizabeth. Vivia quase sempre afastada da corte, na sua propriedade em Hatfield, onde era educada de acordo com a tradição renascentista. Sabia falar vários idiomas, mesmo sem nunca ter saído da Inglaterra e, apesar da pouca idade, foi dito que também era capaz de responder as cartas do rei com a mesma seriedade de uma “mulher de quarenta”. Em 1543, a jovem foi readmitida na linha de sucessão atrás de seus irmãos, Eduardo e Maria. Durante o reinado desta última, Elizabeth chegou a ser encarcerada na Torre de Londres e submetida a severos interrogatórios por ter seu nome envolvido em conspirações que tinham por objetivo derrubar a rainha do trono. Como nada de conclusivo se pode provar acerca de sua culpabilidade, ela foi posta em liberdade vigiada. No ano de 1558, porém, herdou a coroa de sua irmã, que morreu sem filhos aos 42 anos. Por aquela época, os melhores exemplos de monarcas do sexo feminino nos quais Elizabeth podia se inspirar eram Isabel de Castela e Maria I. Ela então preferiu dar seguimento ao plano de governo do reinado anterior, exceto no que tocava às questões religiosas.
Na época em que Elizabeth ascendeu ao trono, outros dois países da Europa também eram regidos por mulheres: a Escócia, com Mary Stuart e a França, com a rainha-mãe Catarina de Médici. Essas três soberanas tiveram que lidar com diversos ataques à sua sexualidade, principalmente vindos de líderes religiosos como John Knox, que pregava contra a “monstruosidade” do governo feminino. Mas, no caso de Elizabeth, ela aparentemente tirou partido dessa situação para virar o jogo ao seu favor. Na opinião de Lisa Hilton:
A própria Elizabeth ficava feliz em jogar com as convenções relativas ao gênero quando convinha ao seu “fraco e débil” corpo de mulher, mas convenção não é fato, assim como retórica não é realidade. É possível que o conceito de diferença entre os sexos da época fosse consideravelmente mais elástico e sofisticado, e muito menos restritivo que o do século XXI. Na prática, o gênero de Elizabeth era significativo no tocante a determinadas áreas – na organização de sua casa, por exemplo, ou em sua inaptidão para liderar as tropas em batalha –, mas a formação intelectual de Elizabeth, em particular a influência da “nova ciência”, granjeou-lhe uma imagem principesca em nada limitada pela feminilidade. Ela via a si mesma, em primeiro lugar, como um príncipe, no sentido de que a realeza, na percepção típica de seu tempo, não levava o gênero em consideração (2016, p. 13-4).
Vendo a si mesma como príncipe, Elizabeth I lançou mão de elementos simbólicos que representassem sua capacidade de governar como rei. Para tanto, a moda teve um papel fundamental na composição dessa imagem. Em vários retratos, a soberana aparece utilizando roupas largas, com ombreiras e armações nas costas, que davam uma aparência maior ao seu corpo esguio. Espadas e punhais também podem ser vistos em algumas dessa telas, embora a monarca desse preferência a livros, globos e outros símbolos que ressaltassem sua inteligência. Em moedas e camafeus, seu busto aparece em perfil, com uma expressão severa na face, similar à que podemos observar nas representações dos imperadores romanos. Um recurso que também foi utilizado por Cleópatra VII do Egito durante a antiguidade clássica.

Elizabeth I da Inglaterra, por Nicholas Hilliard.
Curiosamente, atrelado a esses elementos se nota uma associação da figura da soberana à da Virgem. Elizabeth também podia ser vista em véus e roupas brancas, cercada por uma moldura de flores. Foi assim que ela criou o estereótipo da “rainha virgem”, casada apenas com seu reino. A perspectiva de matrimônio com um príncipe estrangeiro era apenas levantada pela monarca quando algum acordo diplomático estava em vista. Assim que conseguia seu intento, Elizabeth declinava da oferta de casamento. Na opinião de Peter Burke, “um Estado centralizado precisa de um símbolo de centralidade. O soberano e sua corte, frequentemente vistos como uma imagem do cosmo, são um centro sagrado ou exemplar do restante do Estado” (2009, p. 23). No meio dessa constelação estava a própria rainha, associada aos astros e divindades da cultura pagã. Ainda de acordo com Burke, “a imagem real era construída também com palavras, faladas e escritas, em prosa e verso, em francês e latim” (2009, p. 28). Na literatura, Edmund Spenser a exaltava como a “rainha das fadas”, enquanto dramaturgos cantavam versos e louvores à sua persona. As artes tiveram então um importante papel na fabricação da imagem que Elizabeth I queria para si e para a Inglaterra. Reino e monarca deveriam ser vistos como um só corpo.
Na primeira metade do século XVI, a arquiduquesa Margarida da Áustria, regente dos Países Baixos, apresentava uma postura bastante parecida com a que Elizabeth adotaria algumas décadas depois. Jogando com a condição feminina, Margarida escreveu ao pai, o imperador Maximiliano, a seguinte carta: “eu sei que não é da minha conta interferir nos seus afazeres, já que sou uma mulher inexperiente em tais casos, no entanto, o grande dever que eu tenho para com vós me encoraja a vos pedir… para tomar cuidado enquanto ainda há tempo” (GRISTWOOD, 2016, p. 40). Elizabeth certamente também teve contado com alguns dos livros escritos por Margarida de Angoulême, rainha de Navarra, notadamente o “Heptameron”. Publicado postumamente em 1558, a autora escreve que “o amor das mulheres está enraizado em Deus e fundado na honra … Mas a maioria do amor (dos homens) é baseado no prazer, tanto que as mulheres, quando não estão cientes das más intenções dos homens, por vezes, permitem-se serem levadas muito longe” (GRISTWOOD, 2016, p. 49). Uma conduta baseada na virtude e na retidão de princípios era então o ideal esperado de uma soberana. A contemporânea de Elizabeth I, a sultana Safiye, escreveu à rainha exatamente nos termos em que ela adorava:
A mais graciosa e gloriosa, a mais sábia entre as mulheres, e eleita entre as que triunfam sob o modelo de Jesus Cristo, a mais poderosa e rica governante, a mais rara entre as mulheres do mundo. … Envio a Vossa Majestade tão digna e doce uma saudação de paz que todos os bandos de rouxinóis e suas melodias não poderão produzir (apud HILTON, 2016, p. 323).
Além da imagem de Maria, uma das personagens associadas ao culto da rainha da Inglaterra por seus súditos, poetas e admiradores (incluindo o líder da Igreja Protestante da Escócia, John Knox), era a figura bíblica de Débora, profetiza que guiou o povo de Israel e é considera uma das maiores lideranças femininas do Antigo Testamento. Elizabeth era amplamente celebrada como a “Nova Débora” durante o seu reinado de 45 anos, tanto em versos quanto em quadros alegóricos. Richard Mulcaster, fundador da lexicografia em inglês, também havia invocado a bíblica Débora num cenário montado para a recepção da rainha em Fleet Street. Segundo ele, a associação servia para “fazer [Elizabeth] se lembrar de consultar o valoroso governo de seu povo, … de que cabia a homens e mulheres que assim governavam usar a recomendação de um bom conselho” (HILTON, 2016, p. 140).

Elizabeth I, atribuído a George Gower
No plano religioso, a soberana propagou um protestantismo moderado, que a princípio coexistia com a antiga religião católica, embora muito mais para frente a soberana abolisse o culto romano em seus domínios. Em termos lógicos, o estabelecimento de uma igreja anglicana obediente era fundamental para garantir a unidade nacional sob o cetro da rainha. Por outro lado, o poder da pequena nobreza foi aumentando aos poucos, a ponto de se constituir num desafio para a prerrogativa régia. Ao longo do período elisabetano, a Câmara dos Comuns também cresceu, de 300 para 460 membros, muitos deles fidalgos do interior. Segundo nos conta Perry Anderson, “os últimos anos do jugo Tudor se caracterizaram por uma nova recalcitrância e rebeldia no Parlamento, cuja importância religiosa e obstrução fiscal levaram Elizabeth a vender mais domínios régios, para minimizar sua dependência em relação aos parlamentares” (2016, p. 138). Conforme ressalta Antonia Fraser (1999), a rainha também detestava a guerra e ao longo de seu governo fez o possível para se esquivar de um conflito armado direto com alguma potência estrangeira. Quando este bateu à sua porta, na forma da invencível armada espanhola, ela porém não hesitou em vestir armadura e passar em revistas as tropas inglesas localizadas em Tilbury. Foi nessa ocasião em que ela teria proferido as palavras que se tornaram imortais nos seus lábios: “posso ter o corpo de uma fraca e febril mulher, mas tenho o coração e o estômago de um rei”.
Com efeito, Anderson esclarece que no absolutismo “o Estado era concebido como patrimônio do monarca e, portanto, seus títulos de propriedade podiam ser obtidos por uma união de pessoas” (2016, p. 41), através do casamento, por exemplo. Em última instância, a legitimidade do poder do rainha provinha de sua dinastia, e não do território. Daí a necessidade constante de Elizabeth ressaltar que era filha do rei, a despeito de sua mãe decapitada. Conforme dito anteriormente, a soberana nunca se casou e, por isso, jamais dividiu seu poder com qualquer consorte. Enquanto uns viam na construção da imagem da “rainha virgem” uma fraqueza feminina, a soberana edificou tal estereótipo de forma a lhe servir como escudo. Na opinião de Antonia Fraser:
As diferenças da Rainha para com outras súditas era a pedra angular de sua autoapresentação, elaborada ou talvez simplesmente sentida pelo instinto de um gênio da arte. Suas armas nessa autoapresentação eram duas. Primeiramente, ela trabalhava sobre sua natureza feminina para promover uma delicada, requintada imagem de uma dama que precisava ser protegida – e a deusa que deveria ser adorada. Em segundo, ela apresentava a si mesma como “príncipe”: como muitas peças de sucesso de composição da propaganda, a segunda parte estava diretamente em contradição com a primeira (1999, p. 209-10).
Por outro lado, isso não impediu que ataques à sua sexualidade fossem feitos por embaixadores estrangeiros, que exageravam na relação entre a rainha e seus cortesãos favoritos, especialmente Robert Dudley. Se fosse homem, a presença de amantes de forma alguma causaria embaraços para Elizabeth. Um elemento importante na fabricação da imagem masculina do rei era a virilidade, que podia ser demonstrada tanto através da violência como também enquanto potência sexual. Um monarca que tinha vários filhos com sua esposa e com suas amantes dava testemunho público de sua capacidade procriadora. No caso de uma rainha reinante, nem tanto.

O famoso “The Rainbow Portrait”, que mostra a soberana idosa retratada como mulher jovem.
Elizabeth insistiu na exaltação de sua castidade até quando pode participar de seu jogo matrimonial na Europa. Quando ficou claro que seu corpo não era mais capaz de gerar um sucessor, ala passou a investir na imagem da “Glorianna”, mãe de seus súditos. O culto mariano católico parecia então encontrar correspondente na exaltação da figura da soberana protestante inglesa. À medida que envelhecia, Elizabeth continuava insistindo que seus pintores a retratassem sempre como uma mulher jovem, ou o que os historiadores chamam de “máscara da juventude”. Conforme Bernini certa vez observou, “o segredo nos retratos é aumentar a beleza e emprestar grandiosidade, diminuir o que é feio ou mesquinho, ou até suprimi-lo, quando é possível faze-lo sem incorrer em servilismo” (apud BURKE, 2009, p. 36). Na medida em que a imagem política da soberana deveria ser uma produção coletiva, pintores, alfaiates, escultores e poetas contribuíam de forma significativa para ela. Elizabeth sempre dava preferência a artistas ingleses, para exaltar seu patriotismo e identificação com o reino. Sempre ciosa de suas prerrogativas régias e levando em conta seu sexo, ela expressou perfeitamente sua posição num discurso ao Palamento: “posso ser naturalmente considerada apenas um corpo, embora com a permissão de [Deus], um corpo político para governar”.
Referências Bibliográficas:
ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. Tradução de Renato Prelorentzou. São Paulo: Editora Unesp, 2016.
BURKE, Peter. A fabricação do rei: a construção da imagem pública de Luís XIV. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
FRASER, Antonia. The Warrior Queens: Boadicea’s Chariot. UK: Arrow, 1999.
GRISTWOOD, Sarah. Game of Queens: the women who made sixteenth-century Europe. Nova York: Basic Books, 2016.
HILTON, Lisa. Elizabeth I: uma biografia. Tradução de Paulo Geiger. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.
Muito bom. Gosto muito de História.
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Ela foi realmente uma grande rainha, mas teve a sorte ou esperteza de escolher bons conselheiros e contou muito com Whalziram (?) Não estou certa quanto a grafia do nome desse conselheiro e espião.
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