Uma das personalidades mais famosas da história, Maria Antonieta de Habsburgo-Lorena, rainha da França, foi e continua sendo objeto de diversas biografias e estudos sobre o processo revolucionário que acabou com o mundo do qual ela fazia parte. Anualmente, novos livros são publicados, exposições e e eventos são organizados, provando com isso que mesmo após sua morte em 16 de outubro de 1793, ela ainda continua tão fascinante quanto certamente o fora em seu tempo de vida. Ou talvez até mais! Recentemente, a autora Catriona Seth, especialista no período iluminista e membro da Academia Britânica e da Academia Real da Bélgica, publicou a obra Marie-Antoinette – Lettres inédites (Maria Antonieta – Cartas Inéditas), que revela um traço mais íntimo e reflexivo da personalidade da soberana por meio de alguns documentos pessoais, como cartas a amigos, até então pouco conhecidas.
À menção do nome “Maria Antonieta”, a opinião pública consegue facilmente compor duas imagens: a de uma rainha tola, de gostos excêntricos e indiferente à situação do povo, bem como a da mulher lasciva, que vivia cercada por vários amantes. Esse painel foi reforçado desde os tempos da Revolução por uma série de publicações sensacionalistas e romances eróticos, que pintavam Antonieta como expressão da decadência do antigo regime. Segundo Catriona Seth, porém, essas imagens são caricaturadas e revelam muito mais da mentalidade da época que as criou, do que sobre a própria soberana. Para alcançar o ser humano por baixo dessas representações, temos, felizmente, a sua correspondência particular, que revela uma mulher bem diferente daquela que a maioria das pessoas acredita conhecer.
O arcabouço documental que serve de base para a composição de Marie-Antoinette – Lettres inédites é quase que inteiramente composto de cartas e bilhetes que a esposa de Luís XVI trocou, em mais de 20 anos, com o embaixador austríaco conde Mercy-Argenteau, que acompanhou a jornada da rainha desde quando ela foi enviada como delfina à França, em 1770. Mercy guardou até mesmo bilhetes simples, com poucas linhas, contendo palavras e frases riscadas pela sua autora, certamente com pressa em escrever. É por meio desses rabiscos que podemos ouvir a voz da soberana, ecoando através dos séculos: sua personalidade, sua maneira de agir frente a determinados impasses, seus interesses e frustrações.
A princípio, Maria Antonieta não era muito chegada à prática de escrever. Tendo sido enviada para a França com apenas 14 anos, ela era muito descuidada com a sua correspondência particular, recebendo por isso várias admoestações de sua mãe, devido à caligrafia descuidada e à escassez de informações, o que a obrigava muitas vezes a ditar suas mensagens para algum escrivão. O gosto pela escrita, porém, chegaria apenas com a maturidade e podemos observar isso nas cartas que ela trocava com Mercy-Argenteau. Durante os anos da Revolução Francesa, quando a família real era mantida prisioneira em Paris, no palácio das Tulheiras, Maria Antonieta usava um correio clandestino para se comunicar com Mercy. A escrita acabou se tornando sua única arma naqueles anos difíceis, para pedir ajuda às potências estrangeiras. Em muitas de suas cartas de conteúdo político, ela chegava a usar uma escrita codificada e tinta invisível.
Os assuntos de que tais cartas tratam vão desde temas triviais, como seu estado de saúde, até assuntos mais políticos, como o escândalo do colar de diamantes. Numa época em que a informação podia demorar semanas até viajar de um país a outro, Maria Antonieta preferia falar mais de si, de suas preocupações, do que sobre sua convivência com o marido, o rei Luís XVI. E para quem achava que a rainha não se interessava por política, ela comenta com o embaixador suas impressões sobre os rumos em a Revolução estava tomando e quais conselhos ela sugeriu ao rei. Numa das cartas, datada de 1791, ela diz o seguinte:
“[…] Você vê toda a minha alma nesta carta.
Eu posso estar errada, mas é a única maneira que ainda vejo para poder ir.
Ouvi o máximo que pude as pessoas dos dois lados, e é de todas as suas opiniões que eu formei a minha.Não sei se será seguido.
Você conhece as pessoas com quem estou lidando: quando você acha que elas estão convencidas, uma palavra, um raciocínio as faz mudar sem que elas suspeitem.
É também por isso que mil coisas não devem ser realizadas.
Finalmente, aconteça o que acontecer, mantenha sua amizade e apego. Eu preciso disso.
E acredite que, qualquer que seja o infortúnio que me persiga, posso ceder às circunstâncias, mas nunca consentirei em algo indigno de mim.
É no infortúnio que sentimos mais o que somos.
Meu sangue corre pelas veias do meu filho, e espero que um dia ele se prove neto digno de Maria Teresa.
Se você puder guardar esta carta para mim, ficarei feliz em recebê-la um dia.”
O conde Mercy era o principal elo de ligação entre Maria Antonieta e sua família na Áustria. A princípio, o papel do embaixador era supervisionar as ações da soberana e relatar tudo para à mãe dela, a imperatriz Maria Teresa. Afinal, o casamento da arquiduquesa com o herdeiro do trono da França tinha como objetivo cimentar uma aliança entre os dois países. Na vasta correspondência da rainha para o diplomata, porém, ela diz se sentir abandonada, mesmo pelos seus parentes mais próximos, cujas reuniões se tornam cada vez mais escassas conforme o passar dos anos. Com efeito, depois que as primeiras pedras da Bastilha foram atiradas ao chão, dando assim início ao maior processo revolucionário da história, Maria Antonieta e o conde Mercy nunca mais se veriam. A revelação dessas cartas, 220 anos depois da Revolução Francesa, por sua vez, só prova que o tema “Maria Antonieta” ainda está longe de se esgotar.