SCHIFF, Stacy. As bruxas: intriga, traição e histeria em Salem. Tradução de José Rubens Siqueira. Rio de Janeiro: Zahar, 2019.
O ano de 1692 foi bastante conturbado na Colônia da Baía de Massachusetts, na Nova Inglaterra, mais especificamente na aldeia e na cidade de Salem. Entre janeiro e setembro daquele ano, catorze mulheres, cinco homens e dois cachorros foram enforcados sob acusações de feitiçaria e de manter relações com o diabo, protagonizando, assim, um dos maiores julgamentos de bruxa dos quais a história tem registro. A desastrada aplicação da justiça acabou condenando à prisão e à forca pessoas inocentes, cujo único pecado foi ter antagonizado com famílias de pastores, magistrados e donos de terra pertencentes à classe governante. Os séculos, por sua vez, se encarregaram de petrificar esse episódio na memória nacional estadunidense, como um dos maiores pesadelos vivenciados pelo país durante o período colonial. Numa época em que a caça às bruxas estava entrando em declínio na Europa, o Novo Mundo se transformou num verdadeiro caldeirão onde fanatismo religioso, misoginia, xenofobia e disputas por terras se misturaram para criar um clima de medo e insegurança, no qual até mesmo o mais devoto dos homens era apontado como seguidor do diabo. Esse é o tema do mais recente livro de Stacy Schiff, The Wiches (Salem, 1692), publicado esse ano no Brasil pela editora Zahar.

Stacy Schiff, autora de “As Bruxas”.
Schiff é uma premiada jornalista e editora, autora de vários livros de não-ficção, bem como colabora regular de algumas publicações do The New Yorker, The New York Times e The Washington Post. Vencedora do prêmio Pulitzer por Vera (2000), um relato sobre a vida de Véra Nabokova, esposa e sócia do escritor Vladmir Nobokov, Schiff também escreveu a biografia de Saint-Exupéry, além de obras como A Great Improvisation: Franklin, France, and the Birth of America (2005). No Brasil, ela é mais conhecida pela bem documentada biografia de Cleópatra, livro que ajudou a desmitificar muito da visão equivocada sobre aquela que foi última rainha do Egito e um dos maiores ícones femininos da história. Seu estilo de escrita é fluido e elegante. Sem abandonar o rigor acadêmico, Schiff vai construindo sua narrativa quase como um romance, sem dar ao leitor muitas pistas do que vai acontecer no final do livro, de modo que somos convidados a trilhar o caminho rumo ao desfecho da trama junto com a autora. Esse estilo de escrita já foi adotado por outros biógrafos de sucesso, como Antonia Fraser, Robert K. Massie e Mary Del Priore. Em The Witches (Salem, 1692), Schiff repete a fórmula, apresentando-nos a um dos mais cruéis episódios da história americana.
Publicada no Brasil com o título de As Bruxas: intriga, traição e histeria em Salem, com tradução de José Rubens Siqueira, a obra é dividida em 12 capítulos, que se distribuem em 321 páginas, incluindo notas, índice onomástico e uma breve descrição de cada personagem citado no livro, o que facilita bastante a leitura e compreensão do mesmo. As Bruxas é lançado no país num momento particularmente singular e bastante oportuno, quando o preconceito, a intolerância religiosa e o fanatismo espalham uma verdadeira onda de caos na nossa sociedade. Assim sendo, relembrar os eventos ocorridos em Salem pode ser um exercício bastante revelador da nossa realidade e para onde estamos caminhando. O clima de traição e histeria vivenciado pelos colonos da Baía de Massachusetts em 1692 pôs na fogueira velhas rivalidades que culminaram numa onda de perseguições, violência e morte. Não muito diferente do que vivenciamos atualmente, muito embora as bruxas tenham trocado a vassoura e o chapéu pontudo por uma pasta e um colarinho branco. O ódio levado a cabo pelos puritanos fez com que simples mulheres, muitas das quais bastante religiosas, se transformassem em bodes expiatórios para as frustrações de pastores, que, através da política do medo, passaram a enxergar o dedo do diabo por trás de cada evento suspeito na colônia.
No ocidente cristão, a bruxaria aparece onde a lógica não era capaz de explicar o porquê de determinadas coisas. Assim, roubos, desaparecimentos, doenças, pragas, comportamentos estranhos em animais, eram facilmente imputados a algum homem e/ou mulher que não fizesse parte da comunidade local, um outsider, como diria Norbert Elias. Stacy Schiff apresenta ao leitor uma descrição muito interessante sobre o imaginário da bruxaria no século XVII:
“A bruxa é alguém capaz de fazer ou parecer fazer coisas estranhas, para além do poder conhecido da arte e da natureza comum, em virtude de uma confederação com maus espíritos”. Por meio de pactos, as bruxas assumiam o poder de se transformar em gatos, lobos, lebres, tendo predileção por pássaros amarelos. Podiam ser mulheres ou homens, porém com mais frequência mulheres (SCHIFF, 2019, p. 56).
Quando a sobrinha e a filha de Samuel Parris, pastor não muito bem quisto da aldeia de Salem, começaram a manifestar comportamento inusitado, com convulsões e risadas macabras, o clérigo assombrou os membros da congregação, com afirmações de que bruxas estavam azarando membros de sua família, talvez com o intuito de move-lo da região. Em seguida, as garotas começaram a apontar aquelas que supostamente perturbavam seu sono e lhes causavam machucados. A situação na casa paroquial ganhou, então, contornos mais amplos. Foi a fagulha que faltava para fazer ascender as perseguições contra as mulheres da aldeia.

Entre janeiro e setembro de 1692, catorze mulheres, cinco homens e dois cachorros foram enforcados sob acusações de feitiçaria e de manter relações com o diabo, protagonizando, assim, um dos maiores julgamentos de bruxa dos quais a história tem registro.
Apesar de os homens não estarem isentos da acusação de bruxaria, conforme demonstram as vítimas de Salem, a figura da bruxa é tradicionalmente representada como feminina. Aqui, a misoginia aparece na sua forma mais escancarada. Concebida enquanto “sexo frágil”, à mulher se atribuía a culpa pelo pecado original, que provocou a expulsão de Adão do paraíso. Dessa forma, as filhas de Eva eram supostamente mais suscetíveis às artimanhas do diabo, que, na Nova Inglaterra, era observado como um “homenzinho de preto”, ou um “porco negro”, que costumava perturbar os mais fracos de fé. O Malleus Maleficarum, livro lançado em 1487 por Heinrich Kraemer e James Sprenger, que ensinava os padres a identificar e punir as feiticeiras, dizia que “quando uma mulher pensa sozinha, ela pensa em uma maldade”, precisando, dessa forma, do amparo masculino para não caírem nas garras de Satã e emergirem como uma força perigosa e dominadora. Assim sendo, a bruxaria identificada ao gênero feminino cumpria um propósito bem específico: impedir que as mulheres se desviassem do caminho da casa e da maternidade e adentrassem na esfera política. Os julgamentos de Salem, por sua vez, são um vívido exemplo dessa constatação.
Um dos aspectos mais interessantes do livro de Stacy Schiff é a rede de conexões que a autora consegue identificar entre os juízes e os acusadores. De Samuel Parris a John Hathorne e Cotton Mather, todos tinham algum tipo de parentesco, seja ele próximo ou distante, fosse de sangue ou pelo casamento. Não obstante, muitos dos acusados, com raras exceções, estavam envolvidos em processos por disputas de terras com algum membro da rede de conexões dos juízes e magistrados locais, o que deixa a entender que grande parte dos processos foram movidos por fins econômicos e não puramente religiosos. Contudo, discordo da opinião de Schiff, quando ela associa o desempenho das garotas convulsas ao de uma paciente de histeria do final do século XIX e início do XX, uma vez que o comportamento histérico era geralmente atribuído a mulheres que manifestavam abertamente sua sexualidade, numa época em que os corpos eram aprisionados por uma série de convenções sociais, que delimitavam os papeis para cada gênero. A histeria atribuída à mulher foi a forma encontrada pela medicina e pelas autoridades públicas para puni-la, num período em que histórias de bruxas eram melhor representas nos livros infantis, como O Mágico de Oz, do que aceitas como uma crença real.

Capa da edição brasileira de “As Bruxas”, publicada pela editora Zahar.
Dessa forma, a medicina fez no século XIX aquilo que os tribunais de bruxas fizeram no período Moderno. Quando o ano de 1692 se aproximava do fim, a população da cidade de Salem e da aldeia de mesmo nome concluiu que as perseguições haviam chegado longe demais, com quase metade dos habitantes encarcerada para investigação. A virada do ano novo trouxe consigo o silêncio, como se aquelas pessoas quisessem esquecer o que havia acontecido. Um passado que as envergonhava. Conforme ressalta Stacy Schiff, essa estratégia funcionou durante uma geração, mas não por muito tempo. Com a chegada do século XVIII, a caça às bruxas praticamente chegou ao fim. As autoridades públicas encontrariam outras formas de perseguir, torturar e matar aqueles que incomodavam. Entretanto, o interesse na bruxaria permaneceu. A literatura, o teatro e o cinema se apropriaram do caso de Salem e de outros semelhantes, transformando-os em elementos da cultura pop e exemplo da barbárie humana. A obra de Schiff surge, assim, num momento ideal, pois, enquanto prevalecer na sociedade o discurso de ódio, manifestado através de atos de preconceito e intolerância, o episódio das bruxas de Salem será constantemente revisitado, para testemunhar até onde pode chegar a perversidade do homem.
Renato Drummond Tapioca Neto
Graduado em História – UESC
Mestre em Memória: Linguagem e Sociedade – UESB
A militância foi desnecessária.
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Sou sua seguidora e tenho uma observação. Está faltando um “t” no título do livro: é wiTches.
Abraços,
Elisa
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Excelente tinha deixado latente no meu e-mail porque sabia que não ia me decepcionar!Parabéns pela resenha.
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Excelente!Tinha deixado latente no meu e-mail porque sabia que não ia me decepcionar, parabéns pela resenha!!!!
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Adorei. Gostaria muito de ler um artigo seu sobre o Malleus Maleficarum.
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