A herança de Ana Bolena: a controversa caracterização de uma das rainhas mais famosas da história!

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

Há 483 anos, um evento inédito acontecia na capital do reino da Inglaterra: pela primeira vez na sua história, uma rainha ungida era decapitada sob acusações infames de traição, adultério e incesto. A partir de então, a simples menção de seu nome era suficiente para provocar um silêncio assustador. Os vestígios de sua existência foram quase completamente destruídos, num esforço para fazer como que sua memória sumisse com o tempo e restasse apenas o escândalo. Ana Bolena atravessou os séculos como uma figura bastante controversa, suscitando dúvidas e desentendimentos entre muitos historiadores. Qual teria sido seu envolvimento na reforma da Igreja na Inglaterra? Era ela uma destruidora de lares? Teria sido realmente culpada dos crimes pelos quais foi condenada? A ficção talvez tenha respondido a essas indagações de forma muito tranquila, influenciando, inclusive, a visão de muito acerca dessa personagem. A História, nem tanto! Não estamos muito mais perto de desvendar essa importante figura do que estivéramos no seu tempo de vida. Ana Bolena foi tirada abruptamente dos anais da história inglesa como persona non grata para, tempos depois, reaparecer como mãe da monarca reinante, acrescentando ainda mais na sua lenda.

“Ascensão e queda de Ana Bolena” (arte de Keith Robinson).

Muito do que se sabia sobre a segunda esposa de Henrique VIII foi nublado ao longo dos anos por péssimas interpretações e uso de estereótipos. É como se olhássemos para ela através de um vídeo fumê. Sabemos que ela está ali, mas seus contornos estão demasiado embaçados para que possamos discernir alguma coisa com exatidão. Assim como elas, muitas outras mulheres foram condenadas ao silêncio, por almejar algo além daquilo que a sociedade patriarcal permitia ao sexo feminino. Na opinião de Michelle Perrot (1989, p. 9), “no teatro da memória, as mulheres são sombras tênues”. A autora faz uma alusão ao pouco espaço que a narrativa histórica tradicional reserva às mulheres, em contraste com a cena pública, onde elas pouco aparecem. Para Perrot, essa ausência se deve em grande parte pela carência de fontes oficiais que tratem do sujeito “mulher”, devido aos “poucos vestígios diretos, escritos ou materiais. Seu acesso à escrita foi tardio. Suas produções domésticas são rapidamente consumidas, ou mais facilmente dispersas” (2013, p. 17). Quando a mulher no Antigo Regime aparece inserida no espaço simbolicamente masculino, ou seja, o da política e o da diplomacia, ela se tornava alvo fácil para comentários sexistas.

Muito do que se sabe hoje acerca da segunda esposa de Henrique VIII se baseia em especulações. Particularmente, o período que precede o ano de 1522, quando Ana Bolena retornou para Inglaterra após uma longa temporada nos Países Baixos e na França, é bastante obscuro. Segundo Antonia Fraser (2010, p. 158),

Essa hesitação e confusão quanto à juventude de Ana Bolena tem uma explicação bem simples: ali está uma jovem comparativamente desconhecida, que de repente salta para a fama (ou notoriedade) na idade adulta. Passaram-se mais alguns anos, e ela se tornou uma espécie de ‘não ser’ depois de sua queda. Passou-se uma geração e, vejam só, ela era a mãe do soberano que reinava.

Susan Bordo, autora de um ensaio cultural sobre a rainha Ana, intitulado “The Creation of Anne Boleyn” (2013, p. xiii), afirma que a razão imediata para o sucesso que a personagem possui com o público, principalmente entre os consumidores de filmes como “A Outra” (2008)[1] e da série “The Tudors” (2007-2010) pode ser explicado pelo fato de que a história de sua ascensão e queda é tão instigante, de roteiro inteligente, que pouco se diferencia de uma espécie de novela da vida real. Neste enredo, podemos observar os elementos que compõem um drama histórico de sucesso: o sofrimento de uma esposa na pós-menopausa; a infidelidade de um marido apaixonado por uma mulher mais jovem e sexy; um momento de glória para a amante. De repente a paixão e o desejo acabam e então o círculo se fecha em torno da protagonista, culminando com sua morte. Essa fórmula, por sua vez, foi amplamente aproveitada por poetas e romancistas ao longo de mais de 400 anos. De William Shakespeare, com a peça “Henrique VIII” (2016), até Philippa Gregory e seu best-seller “A irmã de Ana Bolena” (2010), a imagem simbólica da personagem sofreu uma profunda transformação.

Retrato de Ana Bolena, elaborado por Anna e Elena Balbusso, para o romance de Alison Weir.

Na qualidade de mulher solteira que foi alçada ao posto de favorita real, Ana Bolena se distanciava do padrão feminino idealizado de mulher recatada e submissa, reforçado pela moral burguesa no século XIX para se opor à imagem da mulher classes no antigo regime. A noção de gênero, empregada para designar as relações sociais entre os sexos, serve como base pare se entender como a imagem de Ana Bolena, representada como mulher vil, foi construída em oposição ao ideal de recato e passividade esperado de uma rainha da Inglaterra. Segundo Joan Scott (1995, p. 7), essa “é uma maneira de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas dos homens e das mulheres”. Em tais relações sociais, os lugares que deveriam ser ocupados por homens e mulheres eram cultural e socialmente construídos. Para Scott (1995, p. 13), o uso da categoria “gênero” rejeita as explicações do “determinismo biológico implícito, no uso dos termos sexo ou diferença sexual”, introduzindo assim a ideia de que a desigualdade dos lugares sociais e espaços que deveriam ser ocupados respectivamente por homens e mulheres são construídos pela sociedade. Por romper algumas estruturas sociais, Ana Bolena foi executada. Sua morte abriu um precedente sanguinário: se uma rainha ungida podia ser decapitada, isso significava que o sangue dos reis era tão vermelho quanto o de qualquer mortal.

Vários anos depois de sua morte, em 19 de maio de 1536, Ana Bolena permanecia como um mau exemplo a ser seguido e sua execução brutal serviu de lição para aquelas que ambicionassem algo além daquilo que lhes era permitido, como mais tarde provaram sua prima, Catarina Howard, sua cunhada Jane Rochford, a rainha da Escócia, Mary Stuart, e quase três mais tarde, Maria Antonieta, última rainha da França. Todas essas mulheres pagaram com a própria vida por crimes que supostamente haviam cometido em decorrência de uma conduta duvidosa, que desviava do padrões de moralidade aceitos para uma mulher nobre durante o Antigo Regime absolutista. Nas palavras de Jacobus de Cessolis, citado por David Loades (2010, p. 12):

Uma rainha deverá ser casta, sensata, de gente honesta / ter boas maneiras e educar os seus filhos de forma normal / a sua sabedoria não deve resultar apenas em factos e ações, mas também em falar do que deve saber e guardar segredo do que deve permanecer secreto… Uma rainha deve ter boas maneiras e, acima de tudo, deve ser temerosa e recatada…

Desse modo, a herança de Ana Bolena viria para assombrar todas aquelas que transgredissem as normas sociais de suas respectivas épocas. A Revolução Francesa (1789), contudo, foi um momento onde a mulher teve maior espaço para lutar por seus direitos, conforme ressalta Michelle Perrot em “Os Excluídos da História” (2010). A partir daí, as portas estavam abertas para que, um século depois, o movimento feminista ganhasse adeptas (e também adeptos) em todo o mundo.

“The love of kings”: Ana Bolena, por Astera!

Com efeito, como em quase todo movimento que busca na história elementos que legitimem sua luta, o feminismo resgatou do silêncio personagens antes tidas como vis e diabólicas, a exemplo de Cleópatra, Maria I Tudor, Catarina de Médici, Margarida de Valois (a popular rainha Margot), Maria Antonieta e a própria Ana Bolena. Nesse caso, um dos veículos mais utilizados para que esse resgate se tornasse possível fora a literatura. Romances como os de Jean Plaidy, “Assassinato Real” (2000), Norah Lofts, “Ana Bolena” (1976) e “Diário Secreto de Ana Bolena” (2002), de Robin Maxwell, ganharam rapidamente o gosto do grande público, especialmente por trazer para o leitor uma Ana diferente daquela mulher perversa e mal intencionada que era retratada nos despachos do embaixador imperial Chapuys, e que foi ratificada posteriormente por algumas biografias, como a de Garrett Mattingly[2], pois, a partir da segunda metade do século XX, personagens femininas dependentes e passivas já tinham deixado de ser apreciadas pelo público de leitoras e leitores de classe média.

Depois do período de Guerras, Ana Bolena retornou para o mundo da ficção com mais força e independência que antes, com suas qualidades ressaltadas, tais como audácia, confiança e orgulho. Não era mais representada como uma concubina e sim como heroína injustiçada, que pagou com a própria vida por crimes que não cometeu. Nesse sentido, o feminismo foi decisivo para que romancistas e depois biógrafos reinterpretassem o papel da rainha Ana tanto como mulher quanto como soberana dentro da sociedade inglesa do século XVI. Dessa fase, surgem excelentes biografias de autores como Retha M. Warnicke, “The rise and fall of Anne Boleyn” (1998) e Eric Ives, “The Life and Death of Anne Boleyn” (2010). Através filmes como “Ana dos mil dias” (1969), da série televisiva The Tudors (2007-2010) e até mesmo “A Outra” (2008)[3], Ana Bolena saltou do mundo dos livros para o das telas. Sua história passou a ser mais acessível, variando de acordo com a interpretação de cada autor e/ou diretor. Em quase todas essas produções modernas, que abusam da licença poética e da dramatização, podemos observar também uma mulher determinada a conseguir o que queria, representando assim um tipo de força amplamente valorizada pela modernidade. Com isso, a Ana do final século XX deixou de ser a vilã para se tornar num exemplo de heroína trágica para os tempos de hoje.

Referências Bibliográficas

BORDO, Susan. The creation of Anne Boleyn: a new look at England’s most notorious queen. New York: Houghton Mifflin Harcourt, 2013.

FRASER, Antonia. As Seis Mulheres de Henrique VIII. Tradução de Luiz Carlos Do Nascimento E Silva. 2ª edição. Rio de Janeiro: Bestbolso, 2010.

GREGORY, Philippa. A irmã de Ana Bolena. Tradução de Ana Luiza Borges. 4ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2010.

IVES, Eric W. The life and death of Anne Boleyn: ‘the most happy’. United Kingdom: Blackwell Publishing, 2010.

LOADES, David.  As Rainhas Tudor – o poder no feminino em Inglaterra (séculos XV-XVII). Tradução de Paulo Mendes. Portugal: Caleidoscópio, 2010.

LOFTS, Norah. Ana Bolena – o amor de Henrique VIII. Tradução de C. E. Schleier. São Paulo: Mundo Musical Ltda., 1976.

MATTINGLY, Garrett. Catalina de Aragón. Tradução de Ramón de La Serna. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1942.

MAXWELL, Robin. Diário secreto de Ana Bolena. Tradução de Maria do Carmo Romão. Lisboa: Planeta Editora, [2002].

PERROT, Michelle. Práticas da memória feminina. In: BRESCIANI, Maria Stella Martins. A mulher e o espaço público. São Paulo: Marco Zero, 1989, p. 9-18.

PERROT, Michelle.  Os excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. Tradução de Denise Bottmann. 2ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010.

PLAIDY, Jean. Assassinato real: a vida e a morte de Ana Bolena na corte de Henrique VIII. Tradução de Sylvio Gonçalves. Rio de Janeiro: Record, 2000.

SCOTT, Joan. Gênero, uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, vol. 20, nº 2,jul./dez. 1995, pp. 71-99.

WARNICKE, Retha M. The rise and fall of Anne Boleyn: family politics at the court of Henry VIII. UK: Cambridge University Press, 1989.   

Notas:

[1] Dirigido por Justin Chadwick, “A Outra” (2008) é adaptação do romance de Philippa Gregory, traduzido no Brasil como “A irmã de Ana Bolena” (2010) e traz no papel da rainha Ana a atriz Natalie Portman. O filme, entretanto, apresenta ao público uma imagem da soberana bastante estereotipada, como uma mulher má e invejosa, que tomou o rei Henrique VIII (Eric Bana) das mãos de sua irmã, Maria Bolena (Scarlett Johansson).

[2] Optamos por mencionar os títulos das edições traduzidas em português das obras em análise, exceto daquelas que ainda não foram publicadas no Brasil. Nesse caso, transcrevemos o título original. Para maiores informações sobre a representação de Ana Bolena na literatura, ver a monografia de Renato Drummond Tapioca Neto, “A condição da mulher no século XVI: o discurso feminista em The Secret Diary of Anne Boleyn (1997)”, Ilhéus, 2013

[3] Para uma análise mais profunda sobre as representações de Ana Bolena no cinema e na televisão, ver a obra de Susan Bordo, “The Creation of Anne Boleyn” (2013, p. 185-245).

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