O tiro que saiu pela tangente: a fuga de Varennes e a queda da monarquia francesa – Parte II

Por: Renato Drummond Tapioca Neto

Uma vez afastados de Paris, a família real poderia muito bem se recordar com certa diversão dos acontecimentos passados na noite anterior, quando enganaram a guarda do palácio das Tulherias e fugiram. Tudo começou às 22h30min do dia 20 de junho de 1791: Maria Antonieta ordenou que a governanta dos príncipes, Madame de Tourzel, preparasse as crianças para a viagem. O delfim Luís Carlos, por sua vez, ficou bastante decepcionado ao saber que teria de usar roupas de menina: “Vamos ser artistas de teatro, porque estamos disfarçados”, disse ele à sua irmã, Maria Teresa. Em seguida, a rainha guiou a governanta e os filhos por vários quartos até chegarem a um cômodo envidraçado, que dava para o pátio do Carrossel. Ali, o conde Fersen os aguardava, disfarçado de cocheiro. Depois de entregar os passageiros ao nobre sueco, Maria Antonieta retornou para a sala de estar, onde se reuniu ao rei, o conde e a condessa de Provence e madame Elisabete. Às 23h00min, a família se despediu dos condes com a promessa de se reunirem dois dias mais tarde, no castelo de Thonnelles, residência próxima a Montmédy, que Bouillé havia preparado para eles. Madame Elisabete então partiu para o pavilhão de Flora e o rei e a rainha se retiraram para seus aposentos, para a tradicional cerimônia do coucher.

Ilustração revolucionária, retratando os disfarces da família real. A imagem, porém, não é fidedigna à fontes escritas, uma vez que Maria Antonieta e Madame Elisabete usavam vestidos de seda acinzentada e o delfim Luís Carlos estava vestido como uma garotinha.

Pouco depois de se lavar, Maria Antonieta dispensou todas as camareiras. Uma vez sozinha, foi ao quarto de vestir e colocou um simples vestido de seda cinzenta, com um grande chapéu com véu, que lhe escondia o rosto. Já pronta, deveria seguir pelo mesmo caminho que guiara seus filhos momentos antes. Mas, dessa vez, a travessia não foi tão simples. Havia um guarda posicionado diante da porta que dava acesso aos alojamentos do duque de Villequier. Como o guarda caminhava de um lado para outro, ela calculou o momento exato em que ele estaria de costas e correu silenciosamente até a porta de vidro que dava para o pátio do Carrossel. Para a sua surpresa, o general Lafayette se encontrava bem ali, passando de carruagem. Felizmente, pareceu não reconhecer a rainha em seu disfarce e a deixou passar livremente. Sem dúvidas, seu coração deve ter disparado bastante com a adrenalina daquele momento. Instantes depois, ela estava reunida aos demais membros de sua família. O rei, usando uma peruca negra e chapéu redondo, teve uma fuga bem mais tranquila. Apenas esperou seu criado se retirar para colocar suas roupas burguesas e caminhou discretamente para a rua, sem levantar a mínima suspeita quanto à sua identidade.

Todos a bordo da carruagem, a primeira fase da fuga estava concluída. A família havia conseguido deixar as Tulherias sem levantar a mínima suspeita. Cumprindo o seu papel, Fersen os guiou pelos logradouros de Paris em direção ao centro, na rua Clichy, onde a berlinda que conduziria os passageiros para fora da cidade estava esperando para a troca. Às duas da madrugada, chegaram à barreira de Saint-Martin. Os guardas ali presentes pareceram não dar atenção aos passageiros. Tomando-os por um novo bando de emigrados, os deixaram passar. Fersen os conduziu até Bondy, primeira estação de troca de cavalos. Ali, ele se despediu da família real, prometendo se reunir a ela dois dias depois. Sua parte do plano estava completa. De acordo com Evelyne Lever:

Para Maria Antonieta, que provava o sabor da liberdade reconquistada, […] sua principal preocupação era salvar as vidas dos filhos, a do rei e a sua própria. Preferia arrostar os riscos físicos dessa aventura a continuar a viver sob a ameaça constante de um motim. Para ela, essa escapada frenética em direção a uma cidade da fronteira era simplesmente uma questão particular, embora na verdade fosse um assunto de Estado, e o rei tinha plena consciência disso. Tanto que cometera a imprudência de deixar sobre a escrivaninha, para que todos o visem, um manifesto que justificava sua partida (LEVER, 2004, p. 284).

O dia já clareava às seis da manhã, quando a berlinda cruzava a pequena cidade de Meaux. Às oito, enquanto Luís atacava as provisões de comida, a rainha se divertia com o pensamento de que naquele exato momento, as cortinas de sua cama estariam sendo puxadas, revelando o leito vazio. Longe de Paris, sem ninguém ao seu encalço, eles finalmente descansaram. Não viam necessidade de manter a velocidade do veículo. O rei aproveitou uma parada para esticar as pernas e conversar com alguns camponeses próximos sobre a colheita daquele ano. Na estação de troca de Chaintrix, porém, foram reconhecidos por um jovem aldeão, que os convidou para repousarem um pouco. Sem duvidar da lealdade do súdito, Luís aceitou sua oferta. Na estação, os cocheiros da berlinda comunicaram aos colegas de diligência a grande notícia: a família real havia fugido de Paris e estava a bordo daquele veículo. A informação viajou quase tão rápida quanto a velocidade da luz e logo as pessoas no trajeto tomaram conhecimento da identidade dos passageiros. Às 16h00min, enquanto passavam por Châlons-sur-Marne em direção a Metz, “fomos visivelmente reconhecidos”, conforme recordou Maria Teresa anos mais tarde.

A prisão de Luís XVI em Varennes. Estampa de Jean-Louis Prieur (Museu da Revolução Francesa)

No próximo ponto de parada, em Sainte-Menehould, a berlinda passou por uma turba de habitantes em estado de vigília. Um oficial então se aproximou do veículo e os instruiu a partir dali imediatamente, pois “as coisas não andam nada bem”. Quando deixaram a aldeia, o lugar pipocava com os boatos de que o rei acabara de passar por lá. Foi o bastante para que o conselho municipal decidisse alcançar a berlinda. Dois homens, chamados Drouet e Guillaume, partiram a galope até o próximo ponto de troca de cavalos, em Varennes. Ignorante de toda essa situação, a família real seguiu seu caminho tranquilamente. A calmaria da viagem havia lhes dado uma falsa sensação de segurança. Resolveram dormir. Acordaram perto das 23h00min, quando chegaram a Varennes. Recordando-se do incidente anos depois, a duquesa de Tourzel, disfarçada da baronesa de Korff, escreveu o seguinte:

Na verdade, a nossa situação era horrível; e mais horrível se tornou quando, ao entrar em Varennes, não encontramos cavalos para mudar, nem pessoa alguma capaz de nos dar a mais pequena informação. […] Não conseguindo, tentamos o único meio de que dispúnhamos, propondo aos postilhões que fizessem o resto do percurso com os mesmos cavalos, […] mas os homens recusaram, dizendo que os animais estavam demasiado cansados. […] Contudo, mais tarde, não nos seria possível prosseguir viagem, pois o infame Drouet tivera tempo de sobra para tomar as sua precauções e, desse modo, opor-se à passagem de suas majestades. De fato, Drouet mandara barrar uma ponte por onde teríamos de passar quando saíssemos da cidade. […] Fomos avisados do que se passava pelos guardas do rei, mas estávamos demasiado avançados para recuar, pelo que continuamos o nosso caminho. Logo a seguir, quando passávamos por baixo de uma arcada antes da ponte de Varennes, dois particulares, chamados Leblanc e Poucin, mandaram parar a carruagem e ameaçaram disparar se opuséssemos a mais pequena resistência (TOURZEL, 2014, p. 211-2).

A governanta então entregou os documentos falsos a um representante municipal, o quitandeiro Sauce. Os papeis pareciam perfeitamente em ordem, então ele liberou a passagem. Mas, antes que pudessem prosseguir, Drouet apareceu e impediu sua partida. “Tenho certeza de que a carruagem que detivemos transporta o rei e sua família. Se os deixarem escapar para um país estrangeiro, serão todos culpados de traição”, gritou ele. Assustado, Sauce ofereceu hospitalidade aos passageiros na sua quitanda. Toda a aldeia havia despertado e prestava atenção àquela cena. Em seguida, um cidadão que havia morado muito tempo em Versalhes foi chamado para reconhecer os acusados. Emocionado, o recém-chegado se curvou diante de Luís XVI, que imediatamente abandonou o disfarce de Monsieur Durand e abraçou o súdito, confessando-se: “sim, sou seu rei”. Maria Antonieta ficou extremamente agitada. Afinal, o marido acabara de uma vez por todas com a farsa. Luís disse que “tinha deixado Paris porque as vidas dos membros de sua família estavam sendo ameaçadas todos os dias e ele já não suportava mais viver em meio a espadas e baionetas e viera procurar asilo ente seus leais súditos”. Apesar do comovente apelo, a população de Varennes se mostrou nenhum pouco inclinada a deixa-lo prosseguir viagem, por temerem as consequências que uma atitude como aquela poderia acarretar.

Desesperada, a rainha rogou a madame Sauce para que ela conversasse com seu marido a deixa-los partir. A mulher replicou que, se assim o fizesse, estaria colocando a vida do seu marido em risco e que para ela a existência dele valia mais do que a do rei. Esse impasse permaneceu até aproximadamente uma da manhã, quando alguém do lado de fora da quitanda gritou: “os hussardos!”. Era ninguém menos que a guarda de Choiseul, que deveria ter escoltado a berlinda além de Pont-de-Somme-Vesle. Como o veículo demorou bastante a aparecer, Choiseul havia julgado que a fuga do rei havia malogrado e ordenou que seus homens se retirassem. Na verdade, a berlinda se atrasou, como vimos anteriormente, por ordem do próprio Luís, que retardou a viagem para caminhar e conversar com os aldeões no trajeto. Assim que soubera que o rei chegara a Varennes, Choiseul galopara sem demora em direção ao vilarejo. Ao vê-los, Maria Antonieta se encheu novamente de esperanças. O plano do militar era escolta-los em cavalos por quarenta hussardos até seu destino. Mas, com medo de expor sua família ao perigo, o rei declinou da oferta e resolveu esperar a chegada de Bouillé, para que a berlinda então pudesse seguir a viagem. Por causa dessa decisão, Luís XVI e Maria Antonieta perderam sua derradeira chance de se salvar.

Versão romanceada do pintor Thomas Falcon Marshall (1854), retratando o momento em que Maria Antonieta implora a madame Sauce para que interceda por eles junto ao seu marido.

Naquela madrugada do dia 22 de junho de 1791, Varennes estava dividida entre o medo e a curiosidade. Habitantes das aldeias vizinhas apareceram armados com foices, rifles e porretes para conduzir a família real de volta à capital. “A Paris! A Paris!”, gritavam todos eles, repetindo o brado do dia 6 de outubro de 1789, quando Luís XVI e Maria Antonieta foram obrigados a deixar o palácio de Versalhes. Às seis da manhã, dois emissários da Assembleia entraram a galope em Varennes, conclamando “os cidadãos de bem a levar o rei de volta à Assembleia Nacional”. Arrasado, Luís murmurou que “a França já não tem mais rei”. As tropas de Bouillé não apareceram, para a infelicidade dos fugitivos. Diante dessa situação e com a multidão ficando cada vez mais ameaçadora, a família real se resignou. Abatidos e aborrecidos, eles entraram novamente na berlinda. Houve alguns gritos tímidos de “Viva o rei!”, sufocados por outros mais enérgicos de “Viva a nação!”. Extremamente exaustos, eles iniciaram a viagem de volta a capital, escoltados por uma multidão que deixava atrás de si uma grande nuvem de poeira. Por um fio, a família real esteve perto da liberdade. Agora, seu destino era ainda mais incerto e uma temível provação os aguardava em breve: o retorno ao cativeiro!

Leia a primeira parte, clicando aqui!

Referências Bibliográficas:

FRASER, Antonia. Maria Antonieta: biografia. Tradução de Maria Beatriz de Medina. 4ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2009.

LEVER, Evelyne. Maria Antonieta: a última rainha da França. Tradução de S. Duarte. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

PRICE, Munro. A queda da monarquia francesa: Luís XVI, Maria Antonieta e o barão de Breteuil. Tradução de Julio Castañon Guimarães. – Rio de Janeiro: Record, 2007.

OZOUF, Mona. Varennes: a morte da realeza, 21 de junho de 1791. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. – São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

TOURZEL, duquesa de. Memórias. Tradução de Carlos Vieira da Silva. – Lisboa, Portugal: Alêtheia Editores, 2014.

Um comentário sobre “O tiro que saiu pela tangente: a fuga de Varennes e a queda da monarquia francesa – Parte II

  1. Estava com saudades Renato… Ótimo texto como sempre. Conheci seu blog recentemente mas nunca comentei. Muito bom, seu conteúdo é maravilhoso, continue assim 😉

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