O trágico desfecho de uma família – resenha de “Os Últimos Dias dos Romanov”, de Helen Rappaport

RAPPAPORT, Helen. Os últimos dias dos Romanov. Tradução de Luís Henrique Valdetaro, Rio de Janeiro: Record, 2010.

Em 29 de julho de 2007, um dos maiores mistérios da História dava mais um passo rumo à sua solução. Uma cova contendo alguns fragmentos de ossos foi encontrada na floresta Koptyaki (Ecaterimburgo), próximo ao túmulo original da última família imperial da Rússia. Exames de DNA comprovaram que os remanescentes descobertos naquela ocasião pertenciam ao herdeiro trono, Alexei, e a uma de suas irmãs. A evidência contribuiu para desmitificar os muitos boatos de uma possível sobrevivência de algum dos membros da família. O caso, entretanto, ainda não foi encerrado. Novos exames laboratoriais estão sendo realizados com os remanescentes humanos dos Romanov e novas investigações sobre os dias que precederam a execução de Nicolau II, sua esposa e filhos, estão em desenvolvimento, objetivando lançar mais luz sobre um acontecimento que ainda não se esgotou. Peça chave nessa pesquisa pode ser considerado o livro de Helen Rappaport, Os Últimos Dias dos Romanov, publicado pela primeira vez em 2008. A obra narra com riqueza de detalhes os eventos que ocorreram na casa Ipatiev, entre 3 e 17 de julho de 1918, quando um pelotão de fuzilamento colocou um fim permanente na monarquia. Ou pelo menos era nisso que o governo bolchevique acreditava.

Helen Rappaport, autora de “Os últimos dias dos Romanov”

Helen Rappaport é uma renomada historiadora inglesa, conhecida por suas publicações sobre a Revolução Russa e pelas biografias que escreveu de personalidades como Stalin e Lenin. Em 2014, ela publicou The Romanov Sisters, biografia conjunta de Olga, Tatiana, Maria e Anastásia, as filhas de Nicolau II. Contudo, essa não foi a primeira vez que os Romanov se configuraram como objeto de estudo para suas pesquisas. Um ano após a descoberta dos remanescentes humanos dos príncipes ter sido divulgada, Rappaport publicou sua obra máxima. Em Os Últimos Dias dos Romanov, a autora não nos poupa dos mínimos detalhes sobre a execução e o destino dos corpos da família imperial: desde as discussões calorosas em Moscou sobre o que deveria ser feito com eles, passando pelo dia-a-dia na casa Ipatiev, até a fatídica noite do assassinato. O quadro composto por Helen é tão vívido, que em vários momentos tem-se a impressão de que somos observadores intrusos do cotidiano de Nicolau e Alexandra, e testemunhas do massacre que ceifou suas vidas. É como se olhássemos pelo buraco da fechadura uma sucessão de cenas que oscilam entre a monotonia e o desespero. Acompanhamos passo a passo o drama de uma família que ainda mantinha esperanças de sobrevivência.

A obra de Helen Rappaport foi publicada no Brasil em 2010 pela editora Record. Com tradução de Luís Henrique Valdetaro, possuí 16 capítulos, distribuídos em 335 páginas. Cada um dos quais dedicado à narrativa dos eventos diários, transcorridos em Moscou e Ecaterimburgo, entre 3 e 18 de julho de 1918. O estilo de escrita da autora é bastante leve. A obra pode ser facilmente compreendida tanto pelo público leigo quando pelo público especializado. Rappaport compõe o que podemos definir como “biografias literárias”. Ela lança mão de uma série de recursos linguísticos próprios da literatura, para tornar a apreciação do livro o mais confortável. É como se estivéssemos lendo a um romance histórico, embora fartamente documentado. A ausência das notas de rodapé, ou das notas finais na composição da obra contribui para essa impressão. Esse aspecto, apesar de facilitar a leitura, deixou uma carência metodológica no trabalho. Mesmo como uma “Nota Sobre as Fontes”, acrescentada ao final do livro, Rappaport não nos esclarece quais foram os caminhos percorridos por ela para chegar a determinada conclusão (número de arquivo, nome de autor, página de livro consultado, etc.). Informações essas que nos ajudariam a esclarecer algumas dúvidas, adquiridas no percurso da leitura.

Esse aspecto, contudo, parece ter sido corrigido pela autora em sua obra seguinte sobre a família imperial, As Irmãs Romanov[1], que conta com uma boa quantidade de notas de rodapé e notas finais. Sua leitura requer mais tempo e paciência que Os Últimos Dias dos Romanov. Nesta última, observa-se a construção do cerco em torno da família imperial na casa Ipatiev, ou “casa do propósito especial”, como era chamada pelos bolcheviques. Rappaport descreve com detalhes a vigilância exercida sobre Nicolau, Alexandra e seus filhos, de modo a limitar o máximo possível seu acesso ao mundo exterior ou a qualquer objeto que pudesse lhes trazer algum conforto no cativeiro. Como fonte importante para a construção da narrativa sobre os dias finais dos Romanov, a autora utiliza uma gama variada de fontes, como os depoimentos dos guardas, entre eles Yakov Yurovsky, responsável pela segurança na casa Ipatiev, e os diários de Nicolau e Alexandra, que não interromperam essa prática mantida desde o primeiro ano da vida em comum, apesar de correrem o risco de seus escritos serem roubados e utilizados como prova num possível inquérito. Felizmente, são esses documentos que nos fornecem hoje um testemunho valioso do estado de espírito da família, nos dias que precederam sua morte.

Família imperial russa, em 1914.

Com efeito, Os Últimos Dias dos Romanov nos oferece uma série de respostas para perguntas que até hoje geram polêmica entre os pesquisadores, como o porquê de Jorge V do Reino Unido ter retirado a oferta de asilo para seus primos. Abrigar os Romanov na Inglaterra, esclarece Helen Rappaport, deixaria a monarquia britânica numa posição bastante complicada:

Embora tivesse declarado estar “desesperado” quando Nicolau abdicou, [Jorge] ficou, em apenas uma semana, extremamente cansado por ter de lidar com o dilema político de oferecer asilo aos Romanov. Ele temia por sua própria posição como monarca, pois muitos artigos republicanos vinham sendo publicados na imprensa britânica. Com as notícias sobre uma oferta de asilo vazando, ele recebia uma quantidade considerável de cartas que transbordavam ódio diante da possibilidade de a czarina, como suas assumidas simpatias pró-Alemanha, refugiar-se na Grã-Bretanha (RAPPAPORT, 2010, p. 210).

No final, foi a preservação do trono que ditou a conduta a ser assumida por Jorge V quanto à situação dos Romanov. O ódio público contra a czarina era muito grande, uma vez que Alexandra, na opinião de Jorge, “tinha grande responsabilidade pelo caos instaurado na Rússia”. Publicamente, o rei da Inglaterra lavou as mãos no que dizia respeito à segurança de Nicolau e sua família.

As possibilidades de uma transferência segura para os Romanov, ou mesmo de uma fuga, ficaram ainda mais difíceis com a tomada do poder pelos bolcheviques, ocorrida em outubro de 1917. Os partidários da monarquia, porém, não pararam de conspirar para libertar a família imperial do cativeiro. Helen Rappaport observa que mesmo sob pesada vigilância mantida pelos bolcheviques, os Romanov conseguiram manter uma correspondência clandestina com seus supostos “salvadores”. A autora demonstra que as cartas trocadas com esses conspiradores eram interceptadas por Yorovsky, em busca de provas que justificassem a execução dos presos. É possível também que os bilhetes que entravam clandestinamente na casa Ipatiev tenham sido enviados pelos próprio bolcheviques, forjados na expectativa de que a família se comprometesse de alguma forma. Tudo para dar respaldo a uma condenação que desde o princípio estava sendo planejada. Para Rappaport, um julgamento público de Nicolau, como o que foi feito com Luís XVI na Revolução Francesa, não fazia o estilo do novo governo. Julga-lo seria assumir a princípio que ele era inocente, para depois comprovar sua culpa, algo bastante perigoso para Lenin naqueles meses de instabilidade política. Uma mudança de sentimentos contra “Nicolau, o sanguinário” era tudo o que ele não queria.

“Os últimos dias dos Romanov” foi publicado no Brasil em 2010 pela editora Record.

Para que a Revolução sobrevivesse, os Romanov precisavam morrer. Isso estava claro para Lenin. Talvez o ponto máximo da obra de Rappaport seja a comprovação da participação do líder bolchevique na brutal execução da família imperial. Até pouco tempo, sua presença nesse evento era um pouco obscura. Seus subordinados tomaram o máximo de precauções para não relaciona-lo ao crime, destruindo telegramas e omitindo seu nome dos documentos oficiais. Mas mesmo a mais insignificante das pistas pode oferecer subsídios para se concluir que a ordem de execução partiu de Moscou. Graças à combinação dos testemunhos de Yurovsky e de outros envolvidos no assassinato da família imperial, Rappaport conseguiu construir uma narrativa bastante precisa das horas finais dos Romanov: “o que deveria ter sido uma execução limpa e rápida se transformou em um banho de sangue”, disse a autora (p. 263). Ela descreve o massacre nos mínimos detalhes, incluindo o sórdido destino dos corpos das vítimas. Tem-se a impressão de que um filme sobre serial killers está sendo transmitido diante dos olhos do leitor. Nem mesmo o pelotão de fuzilamento teve “estômago” para a carnificina que teve lugar no porão da casa Ipatiev, na madrugada de 17 de julho de 1918.

Até hoje o assassinato dos Romanov choca o leitor mais incauto. É muito difícil, diante dos relatos da vida privada da família imperial, não criar alguma simpatia pelas quatro grã-duquesas, ou mesmo pelo herdeiro hemofílico. No final, ninguém foi poupado. A descrição que Helen Rappaport nos fornece sobre a execução de Nicolau, Alexandra, filhos e dos poucos membros de sua entourage, joga por terra qualquer possibilidade de sobrevivência para qualquer um dos prisioneiros, o que pode ser um balde de água gelada nas expectativas daqueles que ainda sustentam a absurda teoria da fuga de Anastásia, que pereceu junto com suas irmãs. Somos o tempo todo levados por Rappapor a olhar com piedade para o desfecho da família imperial. A autora os descreve como “inocentes”, classifica Alexandra como “a pobre czarina”, entre outros adjetivos bondosos e complacentes. Prática essa que a autora manteve em As Irmãs Romanov. A extrema parcialidade de Helen Rappaport pode ser considerada um dos aspectos mais negativos de sua obra, o que, de forma alguma, inviabiliza sua pesquisa e o relato detalhado que faz dos últimos dias passados na casa Ipatiev. Não é um livro com pretensões de história política, ou que se propõe a julgar os erros e acertos do reinado de Nicolau II. Visa apenas oferecer mais luz a um caso que ainda parece longe de chegar a um ponto final.

Renato Drummond Tapioca Neto

Graduado em História – UESC

Mestre em Memória: Linguagem e Sociedade – UESB

[1] As Irmãs Romanov foi publicado no Brasil em 2016 pela editora Objetiva.

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