Por: Renato Drummond Tapioca Neto
Em 1 de janeiro de 1744, uma carta com o selo imperial russo chegou ao correio de Zerbst. Estava endereçada a Joana Elizabeth de Holstein-Gottorp. Tal missiva, de caráter “secreto e especial”, era na verdade um convite, vindo de ninguém menos que Isabel Petrovna Romanov, autocrata de todas as Rússias. O que a recém-entronada czarina poderia querer com um principado tão pequeno como o de Anhalt-Zerbst? Tendo assumido o governo através de um golpe palaciano, em dezembro de 1741, após derrubar o czar-menino Ivan VI junto com sua mãe, a regente Anna Leopoldovna, Isabel procurava desesperadamente uma noiva para seu sobrinho. Aos 32 anos e sem filhos, a imperatriz nomeou Carlos Pedro Ulrich, filho de sua falecida irmã Anna Petrovna, como herdeiro. Um sucessor, porém, não bastava para garantir a segurança da dinastia Romanov na Rússia. O czarevich precisava se casar e ter um filho, um legítimo descendente de Pedro, o Grande. Começou então a busca por uma potencial esposa para o jovem e uma princesa de linhagem modesta e sem grande ambição era exatamente o que Isabel priorizava. Ao saber da prima de seu sobrinho, Sofia Frederica, a quem ele havia conhecido alguns anos antes, a czarina ficou bastante interessada.
Evidentemente, Joana ficou sabendo que a imperatriz Isabel procurava pela Europa uma princesa para Pedro Ulrich. Teria ela, portanto, imaginado quais seriam as verdadeiros intenções da czarina ao fazer aquele convite para que ela e sua filha fossem à Rússia? O texto da carta, escrita por Otto Brümmer, grão-mestre de cerimônias da corte do czarevich Pedro, dizia o seguinte:
Sob o comando explícito de Sua Majestade Imperial, venho informar, madame, que a imperatriz deseja que Vossa Alteza, acompanhada da princesa, sua filha mais velha, venha à Rússia o mais breve possível e se dirija, sem perda de tempo, ao local onde estiver a Corte Imperial no momento. Vossa Alteza é inteligente demais para não perceber o verdadeiro significado da impaciência da imperatriz para vê-la aqui, bem como à princesa sua filha, que muitas informações atestam ser adorável (apud MASSIE, 2012, p. 32).

Czarina Isabel I da Rússia, por Iván Argunov.
A missiva, porém, deixava uma condição explícita: Cristiano Augusto, pai de Sofia, não estava autorizado a acompanhar esposa e filha: “Sua Alteza o príncipe não deverá, em nenhuma circunstância, participar da viagem”, complementou Brümmer (apud MASSIE, 2012, p. 32). O protestantismo do patriarca da família, e sua possível objeção à conversão de sua filha à ortodoxia, caso os termos do casamento fossem aceitos, poderia ser um grande conflito. “Minha filha não vai mudar de religião”, disse Cristiano ao saber da proposta da czarina Isabel (apud McGUIRE, 1988, p. 22).
Pouco tempo depois de receber o convite da imperatriz, chegou às mãos de Joana outra carta, escrita pelo rei Frederico II da Prússia. Consciente da proposta de Isabel, Frederico dizia que “sempre tive o desejo de outorgar alguma excepcional boa sorte à [princesa sua filha]; e veio-me o pensamento de que seria possível organizar a união dela com seu primo, o grão-duque Pedro da Rússia” (apud MASSIE, 2012, p. 33). Se Joana tinha alguma dúvida quanto aos planos para o futuro de Sofia, esta rapidamente se dissipou com a carta do rei da Prússia. Depois de 15 anos de um casamento malfadado, a princesa de Holstein-Gottorp finalmente podia saborear seu momento de glória. Afinal de contas, sua filha tinha grandes chances de um dia se tornar imperatriz consorte da Rússia. Cristiano Augusto, por sua vez, devido à sua lealdade para com Frederico, foi obrigado a aceitar a situação. Trancado em seu gabinete, ele então escreveu algumas instruções de como Sofia deveria se comportar na corte russa:
Abaixo de Sua Majestade, a imperatriz, você deve respeitar o grão-duque [Pedro, o futuro marido] acima de tudo como seu Senhor, Pai e Soberano; e além disso, conquistar, com cuidado e ternura, em todas as oportunidades, a confiança e o respeito dele. Seu Senhor e a vontade dele deverão ter preferência sobre todos os prazeres e tesouros do mundo, e nada que o desgoste deve ser feito (apud MASSIE, 2012, p. 34).
E quanto a Sofia, que havia se acostumando a pensar que estava destinada a ser esposa de Pedro? Aos 14 anos, a princesa havia se tornado uma jovem bastante atraente. “A extrema feiura de que eu havia sido dotada estava me abandonando”, escreveu ela anos mais tarde (apud McGUIRE, 1988, p. 21). Possivelmente, a perspectiva de se tornar uma grã-duquesa russa lhe enchia os olhos! Alguns dias depois, Joana escreveu a Frederico que “meu marido, o príncipe, manifestou aprovação” quanto à partida das duas. A princesa estava disposta a viajar com a filha imediatamente, a despeito do inverno intenso, que tornava as estradas lamacentas e quase intransitáveis: “a viagem, que nesta época do ano, é extremamente perigosa, não me atemoriza. Tomei a decisão e estou firmemente convencida de que tudo está acontecendo conforme o mais alto interesse da Providência” (apud MASSIE, 2012, p. 34). Em 10 de janeiro de 1744, Joana e Sofia partiram de Zerbst. Antes de tomar a estrada para a Rússia, porém, rumaram para Berlim, a convite do rei Frederico II.

Frederico II da Prússia, por Antoine Pesne (1739).
Para horror de Frederico, a futura grã-duquesa sequer possuía roupas dignas da realeza. Joana não teve tempo de encomendar roupas novas para a filha, tamanha foi a pressa imposta pela imperatriz Isabel no seu convite. Na mala da jovem constavam apenas três vestidos de uso diários, dúzias de combinações, lenços e seis pares de meias. Um retrato “favorável” de Sofia, porém, foi encomendado para que pudesse ser imediatamente enviado à imperatriz, convencendo-a dos dotes físicos da futura grã-duquesa. A princesa de 14 anos nunca mais esqueceria aquele encontro com um dos maiores líderes militares do século XVIII: “a princípio me mostrei tímida, mas pouco a pouco fui me acostumando a ele, até que no final da tarde estávamos em termos muito cordiais, tanto que os que estavam presentes se assombraram bastante ao ver Frederico conversando com uma garotinha”, escreveu Catarina II em suas Memórias (apud ERICKSON, 2014, p. 37). As razões de Frederico, por trás daquele convite, porém, estavam longe da mera formalidade. Cinte de que as relações diplomáticas entre a Rússia e a Prússia eram minadas pela ação do vice-chanceler russo, Aleksei Besthuzhev, o rei encarregou Joana com uma missão secreta: a de espionar a corte de Isabel e procurar algum meio possível para fragilizar a influência de Besthuzhev sobre a imperatriz.
Joana, por sua vez, aceitou a tarefa com entusiasmo. Em poucos dias, não só se tornara a mãe de uma futura grã-duquesa, como também estava a serviço da coroa prussiana. Ela e sua filha fizeram uma longa e exaustiva viagem de trenó à Rússia. Esse meio de condução, introduzido por Pedro, o Grande, era o mais adequado para se viajar naquela época do ano. Tudo foi providenciado para o conforto das passageiras, que se protegeram do forte inverno em mantas forradas de zibelina, conforme relata Joana. Em 3 de fevereiro elas chegaram ao Palácio de Inverno, em São Petersburgo. A imperatriz Isabel não estava; havia seguido para Moscou duas semanas antes. Ao marido, Joana escreveu a seguinte carta:
Aqui tudo acontece em estilo tão magnífico e respeitoso que me pareceu como se tudo fosse um sonho. Janto sozinha com as damas e os cavalheiros que Sua Majestade Imperial me concedeu, sou servida como uma rainha. Quando entro para jantar, tocam as trombetas aqui dentro e soam lá fora os tambores da guarda, em saudação. Não parece real que tudo isso possa estar acontecendo comigo, pobre de mim, para quem só em poucos lugares algum tambor chegou a ser tocado (apud MASSIE, 2012, p. 43).
Em seu estado de euforia, deslumbrada com aquela situação, Joana se esqueceu (ou preferiu ignorar) de que toda aquela faustosa recepção na verdade não era para ela, e sim para sua filha, Sofia. A Frederico II, ela escreveu uma carta bem diferente, reiterando o compromisso que fizera para com ele dias atrás.
Na noite de 5 de fevereiro, Joana e Sofia partiram para Moscou, chegando lá três dias depois. Em algumas horas, estariam diante da imperatriz e do grão-duque. A aparência imponente de Isabel causaria uma forte impressão nas duas. Alta, de corpo cheio e bem distribuído, pele clara e rosada, um rosto redondo com grandes olhos azuis, testa larga, boca carnuda e com dentes brancos, Isabel era considerada uma mulher belíssima. Trinta anos depois daquele encontro, Catarina ainda podia se lembrar do impacto que foi contemplar a czarina: “era quase impossível, ao vê-la pela primeira vez, não ficar abismado por sua beleza e pela majestade de seu porte” (apud MASSIE, 2012, p. 66). Segundo seu principal biógrafo, “ali, naquela mulher coberta de joias e irradiando poder, ela viu a incorporação do que esperava se tornar” (MASSIE, 2012, p. 66). E quanto ao grã-duque, que ela não via a tantos anos? A aparência de Pedro não podia ser mais desestimulante. Com espinhas no rosto e feição meio disforme, o primo havia se tornado um jovem nada atraente e de comportamento repulsivo. Sofia, porém, disfarçou o desapontamento por trás da máscara da cortesia. Anos mais tarde, ela escreveria que “o grão-duque não me seduzia em nada; o que me atraíra mesmo era ser imperatriz” (apud MICHAEL DE KENT, 2011, p. 23).

Czarevich Carlos Pedro Ulrich, por artista desconhecido (1745).
O brilho da coroa era muito mais convidativo para Sofia do que seu futuro marido. Para se tornar imperatriz consorte, ela estava disposta a entrar naquele casamento com um jovem que ela achava bastante desagradável. “Nos dez primeiros dias, [Pedro] parecia contente em ver minha mãe e a mim. Nesse curto espaço de tempo, percebi que ele pouco ligava para a nação que estava destinado a governar, permanecia um luterano convicto, não gostava do ambiente e era muito infantil”, recordou Catarina II anos mais tarde. Quando a ela, “ficava em silêncio, escutando, o que me ajudou a ganhar sua confiança” (apud MASSIE, 2012, p. 67). Contudo, se quisesse se tornar imperatriz, Sofia precisava primeiramente agradar a Isabel, não a Pedro. Nisso ela se empenhou com bastante convicção. A imperatriz cobriu-a de joias e vestidos novos. A conversão à ortodoxia, porém, foi um processo difícil para ela: “a mudança de religião causa à princesa infinita dor”, disse o embaixador prussiano Mardefeld. “Suas lágrimas jorram em abundância” (apud MASSIE, 2012, p. 69). Ao mesmo tempo, Sofia recebia aulas de russo com o bispo de Pskov, Simon Todorsky. O aprendizado só foi interrompido por causa de uma febre que a jovem contraiu, o que causou consternação em quase toda a corte.
No seu leito de enferma, Sofia era assistida todos os dias pela imperatriz em pessoa. Quando seu estado de saúde piorou e pensou-se que sua vida corria perigo, Joana solicitou um padre luterano para confortar a filha, ao que ela respondeu: “Por quê? Chamem Simon Todorsky. Prefiro falar com ele” (apud MASSIE, 2012, p. 71). Ao ouvir isso, a imperatriz Isabel ficou bastante comovida e logo a cidade ficaria sabendo de que a princesa preferia um padre russo a um luterano, para grande compaixão das pessoas. Na primeira semana se abril a febre começou a ceder e Sofia pode perceber com maior clareza o comportamento das pessoas à sua volta, especialmente da sua mãe: “eu não pude conter um gemido, e minha mãe me repreendeu por isso, preferindo que eu sofresse em silêncio”. Essa atitude de Joana a diminuiu ainda mais ante os olhos de sua filha: “o comportamento de minha mãe durante a doença diminuiu a estima de todos por ela” (apud MASSIE, 2012, p. 71). Em 21 de abril, já recuperada, Sofia fez sua primeira aparição na corte despois da doença, no seu aniversário de 15 anos:
Não consigo imaginar por que todos me acharam uma visão tão edificante […]. Eu estava magra como um esqueleto. Tinha crescido, mas minhas feições estavam exauridas, meus cabelos estavam caindo, e eu estava mortalmente pálida. Estava me achando horrivelmente feia, nem reconhecia meu próprio rosto. Naquele dia, a imperatriz me mandou um pote de ruge e ordenou que eu usasse (apud MASSIE, 2012, p. 72).

Grã-duquesa Ekaterina Alekseyvna, por Georg Christoph Grooth (c. 1745).
No dia seguinte, Sofia retornou às aulas de russo com o podre Todorsky, tendo finalmente concordado em se converter à religião ortodoxa. Enquanto isso, Joana continuava com seu correio clandestino, sem saber que suas cartas a Frederico II estavam sendo interceptadas e decodificadas por Besthuzhev. Quando a tarefa atribuída a ela pelo rei da Prússia foi finalmente descoberta, Joana caiu em desgraça perante Isabel, que não imaginava o momento de se ver finalmente livre dela. Besthuzhev foi então promovido a chanceler e o embaixador prussiano destituído de qualquer influência na corte. Felizmente, a trapaça não atrapalhou a ascensão de Sofia. Em 29 de junho, a princesa ficou oficialmente noiva de Carlos Pedro Ulrich e abraçou a religião russa. “A atitude dela durante toda a cerimônia [de conversão] foi tão cheia de nobreza e dignidade que eu a teria admirado [mesmo] se ela não fosse o que é para mim”, escreveu a mãe da jovem (apud MASSIE, 2012, p. 79). A princesa Sofia Frederica Augusta e sua infância em Zerbst ficavam no passado. A partir de agora, seria chamada de Ekaterina Alekseyvna, nome pelo qual a história se recordaria para sempre dela.
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Referências Bibliográficas:
ERICKSON, Carolly. Catalina la grande. Tradução de Nora Watson. 2ª ed. Buenos Aires: El Ateneo, 2014.
MASSIE, Robert K. Catarina, a Grande: retrato de uma mulher. Tradução de Ângela Lobo de Andrade. – Rio de Janeiro: Rocco, 2012.
MICHEL DE KENT, Princesa. Catarina a Grande. In: Coroadas em terras distantes: triunfo, tragédia, paixão e poder na vida de oito princesas europeias. Tradução de Maria João Batalha Reis. – São Paulo: Ambientes & Costumes, 2011, p. 17-59.
McGUIRE, Leslie. Catarina a Grande. Tradução de Edy Gonçalves de Oliveira. – São Paulo: Nova Cultural, 1988.