Por: Enzo Novello
Nunca gostei dos bailes da Rússia: me deixavam estressada, tonta e terrivelmente apreensiva. Isso sem mencionar a torturante dor de cabeça. Detestei o baile do meu casamento, o da minha coroação e até mesmo a grande desta do batizado de Alexei. Em todos eles, senti os olhos críticos da corte cravados em mim, julgando-me, procurando desesperadamente por um deslize, por menor que fosse, para poder me caluniar ainda mais. Havia todo tipo de regras de etiqueta que deveriam ser ortodoxamente seguidas: quem cumprimentar primeiro, quando dançar, quando deveria me sentar, levantar, sorrir… E não só nos bailes, mas em toda a vida social russa. Agiam todos como se vivessem em Versailles, na época de Luís XIV.
Entretanto, eu estava gostando desse. As crianças corriam alegremente pelo salão vazio, brincando como filhos de camponeses, e eu dançava com Nicolau. Rodopiávamos tão graciosamente quanto dois patinadores. Olhava com devoção para meu sorridente marido.
Meu marido, meu Imperador, meu Nicky!
O farfalhar da seda perolada do meu vestido, os risos angelicais dos meus filhos, a alegre valsa tocada pela orquestra… Os sons do nosso “baile particular” deixavam-me deliciosamente relaxada, como nunca me senti desde que pisei na Rússia. Tudo estava tão perfeito quanto deveria ser e como nunca antes foi, quase como os agradáveis bailes que eu costuma frequentar na Inglaterra, quando vivia com minha gentil avó, a Rainha Vitória. Olga, Tatiana e Maria cochicham por trás de seus leques, provavelmente sobre algum belo oficial. Ah, minhas meninas cresceram tão rápido… Há poucos anos elas se vestiam todas da mesma forma e tomavam chá com suas bonecas no jardim do palácio. Do outro lado do vasto salão dourado, ecoam as risadas travessas de Anastásia e Alexei, os adoráveis diabinhos provavelmente estavam aprontando alguma coisa.
—Ah, Nicky, acho que nunca estive tão feliz- em resposta, ele acaricia gentilmente meu rosto.
Mas, de repente, tudo acaba. Tudo fica escuro e o baile some, eu só ouvia os gritos. De início não destingi muito bem o que diziam, sempre tive certa dificuldade com o idioma russo e as brutas palavras mal pronunciadas não ajudavam na compreensão. Na verdade, foram raríssimas às vezes em que precisei realmente falar russo. Na capital, São Petersburgo, o francês era a língua oficial, e Nicky, quando estava a sós comigo, falava só em inglês.
Fui abrindo os olhos devagar, enquanto processava as palavras ríspidas que arrancaram-me de meu agradável sonho. Ao despertar completamente, vi o pequeno quarto repleto de guardas armados, alguns deles gritavam e sacudiam minhas filhas, para que acordassem. Meu coração quase parou por um momento. Eu estava aterrorizada com a visão de minhas filhas, trajando somente camisolas, à mercê daqueles guardas revolucionários cheios de ressentimento.
— Acordem! Acordem!- gritavam.
—Senhores, o que está acontecendo?- meu marido perguntou educadamente.
Nicolau era sempre muito cortês, não importa com que fosse, o que me revoltava. Quando ainda ocupava o trono, era gentil e flexível com seus ministros, incapaz de se impôr. “Seja forte, Nicky, seja rígido como seu pai era. Mostre para eles que você é o Czar da Rússia!”, eu costumava lhe dizer, quase que em vão. Foi assim quando assassinaram meu querido amigo, o padre Grigori, o homem que fez Alexei, meu precioso filho, sobreviver às crises de hemofilia. Nicolau não fez nada, dissuadido por nobres influentes, e deixou a morte de um homem santo impune.
—Vão tirar uma foto de vocês- um dos oficiais rosnou.
—Para provar que ainda estão vivos- outro completou.
Ao darem seu recado, a horda deixou o cômodo microscópico e nós levantamos para nos vestirmos. Ajudei Alexei a descer da cama, que era a única que por lá havia, e o vesti. Acariciei seu rosto pálido e beijei-lhe a testa, antes de ajeitar seu quepe, que era como os dos oficiais da marinha. Depois de ter quatro filhas seguidas, o que fez com que a corte, especialmente minha sogra diabólica, me desprezasse, o nascimento de Alexei foi a maior benção para mim e para o Império.
Mas, por minha culpa, meu filho nascera condenado. A hemofilia é transmitida pela mãe e somente acomete os filhos, nunca as filhas. Qualquer mísero tombo resultava em noites de agonia para o meu bebê, que sofria com dores terríveis e gritava “Mamãe, mamãe, ajude-me!” e eu, sem nada poder fazer, tentava acalmá-lo e distrai-lo, sempre sofrendo com a ideia de que poderia perder meu bebê a qualquer momento. Minhas filhas, que antes tinham camareiras para vesti-las, ajudaram umas as outras a atarem seus espartilhos, nos quais costuramos todas as joias que ainda possuíamos, caso houvesse uma oportunidade para fugirmos daquele lugar terrível. Vestiram seus vestidos surrados e ajeitaram o pouco cabelo que tinham, já que ficaram todas quase carecas na última vez que caíram doentes.
Uma vez prontos, fomos forçados a descer até o porão da horrorosa casa e, por alguma razão, um desconforto foi crescendo dentro de mim, quando as paredes foram ficando mais grossas e o espaço tornou-se mais estreito, fazendo com que andássemos em fila indiana, como criminosos em um presídio. O pressentimento ruim começou a se tornar um verdadeiro pânico.
Tinha a sensação de que descíamos as escadas diretamente para o inferno.
Ao chegar no escuro e úmido cômodo, os guardas nos posicionaram, deixando-nos todos de pé.
—Isso é um absurdo!- falei altivamente- Não teremos nem direito a cadeiras? Esperam que fiquemos de pé?!
Um deles comentou, com tom de deboche, que traria cadeiras para nós, saiu e trouxe três. Alexei, Nicolau e eu nos sentamos; atrás de nós, de pé, estavam minhas belas meninas. Também estavam presentes o bom médico de meu filho, Anna Demidova, minha fiel amiga e dama de companhia, e um criado. Os guardas disseram que iam buscar a câmera e saíram. Ficamos estáticos, ainda grogues e ligeiramente assustados. Do nada, uma palavra surgiu na minha mente: ódio!
Se há uma verdade para ser encarada, é que os russos me odiavam. Para começar, enxergaram minha chegada em seu país como um mau agouro, uma vez que o Czar Alexandre III, meu sogro, faleceu pouco tempo após meu casamento com Nicky. “Ela trouxe a morte para nossas terras”, comentavam.
A mãe de Nicolau também me odiava, aparentemente sem razão. Talvez porque não suportasse a ideia de dividir a devoção do filho. Independente do motivo, ela movimentou a corte contra mim, me ridicularizava e me criticava quase que abertamente. A nobreza me desprezou por ser tímida, reclusa, e por participar de cada vez menos eventos sociais, porque eu me sentia sufocada pela etiqueta insuportavelmente rígida. Quando a Grande Guerra eclodiu e o mundo foi tomado por um sentimento antigermânico, odiaram-me pelo simples fato de ser alemã. Tive até que parar de falar alemão, mesmo em particular, para não ser acusada de espiã.
E então o povo também começou a demonstrar seu ódio, não só por minha família, mas por toda a instituição monárquica. Insuflados por agitadores ressentidos, se levantaram contra o czarismo, contra a nobreza e contra a Igreja. Derrubaram a monarquia, aprisionaram-nos e nos submeteram a todos os tipos de humilhação imagináveis.
Mas eu nunca deixei de amar a Rússia. Amei-a desde que pisei nela, amei-a tanto quanto eu amava Nicolau. Afinal, a Rússia deu-me o maior tesouro de todos: meus filhos. Os guardas voltam para sala, curiosamente sem nenhuma câmera, mas com os olhares carregados de ódio. O responsável pelo nosso cárcere e pelo comando dos guardas, um homem terrivelmente frio e desagradável, puxou um pedaço de papel amassado do bolso e disse, aparentando um prazer sádico:
—Nicolau Alexandrovich Romanov, por crimes cometidos contra a Rússia, o soviete da região dos Urais sentencia você e sua família à morte.
Belo e melancólico conto, que relata o último dia da família Romanov. Sugiro um livro que conta toda a história do último czar russo, chamado “Nicolau e Alexandra”, que relata o governo de Alexandre III, a vida dos czares, a doença de Alexei, e a Revolução Russa, que mudou o mundo por completo. É um livro muitíssimo interessante e fácil de ser lido.
Ademais, o conteúdo do blog é muito bom, e espero que ele cresça cada vez mais. Parabéns!
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Parabéns. Pequeno conto que nos prende até ao fim.
Que cresça ainda mais.
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Muito triste e bonito ao mesmo tempo
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ARússia naquela época, apesar do que diziam os comunistas, crescia se desenvolvia, equiparando-se à produção de aço-ferro à dos EUA e das nações mais industrializadas. Com grandes compositores, poetas, escritores estava com sua cultura e ciência reconhecida emtodo o mundo civilizado. Com certeza iria competir no mundo capitalista em riqueza e poder com a América. Mas esso sonho foi cortado, pela inveja e ressentimento de rebeldes ,anarquistas e terroristas que assolavam a Europa matando dirigentes e reis.O Tsar Nicolau e Alexandra sua esposa e rainha eram dóceis demasiado com os sabotadores e conspiradores que atuavam na Duma (Câmara de deputados) onde os comunistas (bolcheviques) detinham a maioria. Foi fácil a partir daí, com a traição de alguns, derrubarem as instituições, prenderem a família reinante (Romanofs) e depois os assassinarem de forma brutal, imitando a revolução francesa que fez o mesmo. A família imperial brasileira escapou por pouco, sendo embarcada às pressas no meio da noite, quando os insurretos proclamavam a republica. Ato covarde, ingrato com um rei bom e simples, e a princesa regente Isabel, que teve todos os seus bens confiscados,inclusive aqueles dados por seu esposo francês, o Conde D’Eu. Nosso imperador teve que ser ajudado por franceses, sem dinheiro, foi morar num hotel de terceira categoria,onde faleceu três anos depois. Desde então o país nunca mais teve sossego,com revoluções, revoltas militares e desrespeito internacional. Vivemos hoje em nosso país o delírio comunista instalado, com 60 mil brasileiros mortos pela criminalidade crescente.
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