Por: Renato Drummond Tapioca Neto
Em 17 de novembro de 1558, falecia Maria I Tudor, rainha reinante da Inglaterra e rainha consorte da Espanha. Seu casamento com Felipe II, longe de simbolizar uma união entre as duas coroas conforme o exemplo dado por Isabel I de Castela e Fernando II de Aragão, mostrou-se um desastre diplomático. Viúvo pela segunda vez e, portanto, novamente livre para se casar, Felipe logo demonstrou interesse em contrair matrimônio com sua cunhada, Elizabeth, que sucedeu a irmã no trono. Ao longo de seus quatro anos de casamento com Maria, o rei intercedeu diversas vezes em favor da princesa, nos momentos em que a cólera da rainha estava voltada contra a jovem. É possível que Felipe, sentido que sua esposa não seria capaz de gerar um herdeiro para as duas coroas, estivesse propenso a demonstrar simpatia pela cunhada, já que ela seria a próxima na linha sucessória. Quando Maria faleceu, o embaixador espanhol foi então instruído a fazer a corte à nova soberana, assegurando que uma bula papal seria expedida, autorizando aquele casamento com vínculo de parentesco. Horrorizada, Elizabeth I teria afirmado que o corpo de sua irmã mal esfriara na sepultura e seu cunhado já lhe fazia uma proposta como aquela. Em decorrência da negativa, Felipe foi impelido a procurar por outras opções e acabou se voltando para o país inimigo, a França.
Isabel de Valois (1545-1568)

Isabel de Valois, rainha da Espanha, atribuído a Sofonisba Anguissola (1564).
As casas reais da Espanha e da França eram rivais tradicionais. No século XVI, as tensões entre os reinos ficaram bastante acirradas, devido às campanhas expansionistas empreendidas pelo rei francês Francisco I contra o imperador Carlos V, e vice-versa. Durante a década de 1550, Felipe II travou uma série de conflitos militares contra os Valois por causa do seu direito aos países baixos espanhóis. Como a Inglaterra se recusou a lhe prestar apoio, já que a rainha Maria I estava morta, Felipe procurou apaziguar os desentendimentos através da velha política matrimonial. Seu filho e herdeiro, Carlos, então com 14 anos em 1559, contrairia matrimônio com uma das filhas da rainha mãe, Catarina de Médici, Isabel ou Margarida. Como esta última ainda era uma criança, então Isabel, que também tinha 14 anos, foi escolhida. Entretanto, antes que as negociações fossem concluídas, Felipe, recém-enviuvado, decidiu ele mesmo desposar a princesa. Tendo apenas um filho, de saúde mental e física comprometida, o rei precisava assegurar a sucessão. Assim, em 22 de junho de 1559 foi celebrado em Paris o casamento por procuração. Seis meses depois, Isabel pisava em território espanhol, não como princesa das Astúrias, e sim como rainha da Espanha.
O casamento entre Isabel de Valois e Felipe II da Espanha foi um dos triunfos políticos da coroa francesa. Segundo o biógrafo do rei, Henry Kamen, a nova rainha afetou profundamente a vida pessoal e política de Felipe:
Isabel era uma adolescente de cabelos negros e olhos brilhantes, com imensa vivacidade e energia, que mais que compensava sua falta de beleza natural. Ela trouxe de volta para Felipe a energia de sua juventude. Ele lhe dedicava muito tempo e chegava mesmo a discutir seu trabalho com ela. Apesar disso, há alguma dúvida se eles tinham um relacionamento emocional profundo. Todos os relatos otimistas sobre amor emanaram de uma única fonte: os embaixadores franceses que estavam ansiosos para demonstrar a seu governo que o casamento era um sucesso (KAMEN, 2003, 205).
Existem alguns relatos que Felipe matinha relacionamentos extraconjugais enquanto era casado com Isabel, assim como manteve em seus casamentos anteriores. Contudo, a vida doméstica do casal parecia ser bastante harmoniosa aos olhos do observador, o que dava embasamento para as afirmações dos embaixadores franceses de que o rei amava sua rainha. A verdade, entretanto, era que Isabel se ressentia muito das infidelidades do marido e chegou a ficar gravemente doente por causa disso.
Em 1564 Isabel de Valois, aos 18 anos, engravidou pela primeira vez, tendo abortado com apenas três meses de gestação. Em 1565, ela sofreu novo aborto, em consequência de uma febre, contraída após a rainha ter visto Eufrásia de Guzmán das janelas do palácio em Madri, grávida de Felipe. Isabel ficou doente por semanas e o rei se compadeceu bastante do estado da esposa. A afeição entre ambos foi então crescendo. Ainda naquele ano, o embaixador francês Saint-Sulpice observou que Felipe demonstrava por Isabel “verdadeira amizade e perfeita boa vontade, o que a faz tão satisfeita e feliz como jamais poderia ser”. O monarca, inclusive, chegava a compartilhar segredos políticos e ideias com sua consorte, algo que ele não fazia na companhia de outros homens de seu círculo. Parece que essa reaproximação e demonstração de afeto surtiram efeitos positivos no relacionamento do casal, pois no final de 1565 a rainha estava novamente grávida. Segundo o embaixador francês, “durante a noite de trabalho de parto e durante o próprio parto, ele [Felipe] nunca deixou de segurar uma de suas mãos, confortando-a e encorajando-a da melhor maneira que sabia ou podia”. Em 16 de agosto de 1566 nasceu Isabel Clara Eugênia. O desapontamento por não ser um menino foi logo esquecido diante da graciosidade e perfeição do bebê. A infanta Isabel seria uma das filhas favoritas de Felipe II.

Felipe II, por Sofonisba Anguissola (1564).
Contudo, por maior que fosse a alegria que o rei pudesse sentir com a sua filha, o reino ainda precisava de um segundo herdeiro. Em outubro de 1567 nasceu outra menina, batizada de Catalina Michaela. A pressão para que a rainha gerasse um menino era grande. Poucas semanas depois do nascimento de Michaela, Isabel de Valois engravidou mais uma vez. Sua saúde, porém, deteriorou-se muito. Faleceu com apenas 23 anos, em 3 de outubro de 1568, durante o parto prematuro de um bebê do sexo masculino. O rei Ficou bastante arrasado com a perda de sua esposa. A morte da rainha deixou um grande vazio na corte. Sua entourage foi desfeita, assim como foram adotadas medidas econômicas para saldar os seus gastos. Felipe teve que reconhecer que sua mulher era muito consumista, “comprava de forma extravagante e seus gastos com festas e passeios eram impressionantes”, além de encomendar “quantidades infinitas de pratas e joias dos artistas da corte” (KAMEN, 2003, p. 208). Diz-se também que Isabel jamais usava o mesmo vestido duas vezes. Esse comportamento não era algo que o rei estava desposto a tolerar numa próxima consorte. Com a morte de Dom Carlos, Felipe II precisava de um novo herdeiro e urgia a necessidade de um novo casamento, aquele que seria o último de sua carreira marital. Dessa vez, ele decidiu procurar por uma noiva no seio de sua própria família, os Habsburgo.
Ana da Áustria (1549-1580)
Graças ao casamento de Joana I de Castela com o arquiduque Felipe de Habsburgo, em 1496, as casas reais espanhola e austríaca ficaram unidas, tendo ambas sido governadas de 1519 a 1556 por um mesmo soberano, o imperador Carlos I e V. Antes de morrer, Carlos havia desmembrado seu vasto império, dando a coroa da Espanha para seu filho Felipe e a do Sacro-império para seu irmão, Fernando. Em 1569, os Habsburgo dominavam vastos territórios na Europa e além, de modo que um casamento entre os dois ramos da família reforçaria os laços de parentesco preexistentes. Dessa forma, Felipe solicitou a seu primo, o imperador Maximiliano II, a mão de sua filha Ana em matrimônio. Assim como Isabel de Valois, Ana também havia sido cogitada como noiva de Dom Carlos e, da mesma forma que sua predecessora, acabou se casando com o pai dele. Não obstante, a arquiduquesa era filha da infanta Maria, irmã de Felipe, o que fazia dela também sobrinha do rei da Espanha, de modo que foi necessária a emissão de uma bula papal para realizar aquele casamento com elevado grau de parentesco. Essas relações consanguíneas, bastante comuns entre os Habsburgo, tiveram consequências bastante sérias nos seus descendentes, muitos dos quais nasceram com problemas físicos e/ou mentais. O próprio infante Dom Carlos é um exemplo disso. Acredita-se que esse tenha sido um fator primordial para o falecimento de diversos príncipes em tenra idade.
Com efeito, Felipe tinha 22 anos a mais que sua nova rainha consorte, nascida em 1 de novembro de 1549, de modo que tinha idade para ser pai dela. Encantado com a beleza de Ana da Áustria, o rei teria ficado profundamente apaixonado por ela:
Petit e elegante, com uma pele incrivelmente branca, olhos profundamente azuis e cabelo louro esvoaçante, Ana não poderia ser mais diferente que Isabel de Valois. Felipe expressou “minha grande alegria e contentamento, Deus me deu toda a felicidade que eu podia desejar nesta terra”, e falou do “grande amor que existe entre nós”. Um diplomata observou que “o rei a ama profundamente” (KAMEN, 2003, p. 204).

Ana da Áustria, rainha da Espanha, por Alonso Sánchez Coello (c. 1571).
Ana da Áustria também se mostrou mais fecunda que Isabel de Valois, tendo engravidado imediatamente após o casamento. O nascimento do primeiro filho, Fernando, aconteceu em 4 de dezembro de 1571 e foi celebrado com júbilo pela corte. De acordo com Henry Kamen, aquele foi um ano feliz para a monarquia espanhola, que finalmente tinha um novo herdeiro homem para o trono. Ao longo de 10 anos de casamento, a rainha Ana deu à luz a cinco crianças, quatro dos quais, meninos. Ela havia triunfado justamente onde sua antecessora havia falhado. Porém, as consequências daquele casamento entre tio e sobrinha logo se fariam presentes na prole real.
A união de Felipe II com Ana da Áustria havia trazido ao rei uma felicidade que ele jamais experimentara com suas outras esposas. Esse estado de tranquilidade só foi perturbado pelas mortes de dois de seus filhos e, por fim, de sua amada esposa: em 1577, faleceu o herdeiro Fernando, aos 6 anos. O segundo filho, Carlos, morreu em 1575, dois anos após seu nascimento, em Calapagar. Nesse mesmo ano, Ana deu à luz a Diego, que foi proclamado herdeiro do trono (embora tenha falecido sete anos mais tarde). Em 1578, nasceu Felipe, que sucederia ao pai como Felipe III. No ano de 1580, a rainha entrou novamente em trabalho de parto, mas dessa vez ela não sobreviveria para ver sua filha Maria dar seus primeiros passos[1]. A morte, que havia ceifado a vida de Maria Manuela de Portugal e Isabel de Valois, também levou a de Ana, nas mesmas circunstâncias que suas antecessoras. É verdade que Felipe tentou se casar pela quinta vez com a irmã de sua quarta esposa, Elisabeth, viúva do rei Carlos IX da França. Esta, porém, recusou a proposta do rei da Espanha. Dessa forma, findava-se a carreira matrimonial de Felipe II. Ele viveu até 1598, tendo exaurido seu tesouro em diversas campanhas militares, especialmente com a Armada Espanhola, que foi derrotada pela Inglaterra em 1588, sob o comando daquela que um dia ele havia cogitado como sua esposa, Elizabeth I.
Leia a primeira parte clicando aqui!
Referências Bibliográficas:
KAMEN, Henry. Filipe da Espanha. Tradução de Vera Mello Joscelyne. – Rio de Janeiro: Record, 2003.
LEWIS, Jones Johnson. Four Marriages of King Philip II of Spain. 2016 . Acesso em 15 de agosto de 2016.
LOADES, David. As Rainhas Tudor – o poder no feminino em Inglaterra (séculos XV-XVII). Tradução de Paulo Mendes. – Portugal: Caleidoscópio, 2010.
MUTSCHLECHNER, Martin. Philip II: marriages and offspring. – Acesso em 15 de agosto de 2016.
SOLNON, Jean-François. Catarina de Médicis. Tradução de Inês Castro. – Lisboa: Bertrand, 2004.
Notas:
[1] A infanta Maria morreria três anos depois, em 1583.
Que interessante! vem cá, como você sabe tanto sobre tantas pessoas? você viaja a fim de saber mais ou você é formado em história? Porque sério, eu to amando esse blog
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Oi, Camille. Sou licenciado em História e mestrando em Memória. Pesquiso sobre a vida dessas personagens célebres da história mundial a pelo menos 7 anos. O blog existe a 4 anos. Seja bem-vinda ao Rainhas Trágicas!
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Parabéns pelo excepcional trabalho no blog que considero como uma fonte riquíssima do saber… Tem em mim um fã!
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Estava assistindo Isabel de Castela, fiquei curiosa sobre ela e suas filhas. Sou licenciada em história e gosta de fazer essas relações entre as diversas fontes que leio.
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Muito boa essas informações a respeito dessas figuras icônicas de nossa história. Estou fazendo faculdade de Administração Pública, porém a minha grande vontade seria fazer História, mas não consegui pela UFRRJ. Admiro muito o seu trabalho. Parabéns.
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Muito interessante a história, relata muita ambição pelo poder percebe-se também que nessa época a maior função da mulher era procriar.
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