“Uma rainha maquiavélica” – resenha de “Elizabeth I: uma biografia”, da jornalista inglesa Lisa Hilton.

HILTON, Lisa. Elizabeth I: uma biografia. Tradução de Paulo Geiger. – Rio de Janeiro: Zahar, 2016.

Elizabeth I da Inglaterra é uma das monarcas europeias mais icônicas de todos os tempos. Mesmo em caricaturas, ela é facilmente reconhecida pelo público: uma rainha de peruca vermelha, maquiagem branca, joias ostensivas e roupas extravagantes. A imagem da chamada rainha virgem foi construída cuidadosamente por ela em seu tempo de vida e floresceu ao logo dos séculos após sua morte. O fascínio que ela exerce no imaginário popular vai muito além das várias biografias e trabalhos acadêmicos que são feitos sobre o período do seu reinado, abrangendo também o teatro, a televisão e o cinema. Em outras palavras, a quantidade de material produzido sobre a era elisabetana e sua principal personalidade vai além do que qualquer um de nós possa imaginar. Porém, aqui no Brasil, existem poucos títulos de pesquisa publicados acerca da filha de Henrique VIII e Ana Bolena, a maioria dos quais com uma análise bem rasa. Dentre eles, podemos destacar os melhores: A rainha Elizabeth (1940), de Lytton Strachey, A vida de Elizabeth I da Inglaterra (1976), de Jacques Chastenet, e Elizabeth & Mary (2004), de Jane Dunn. Em maio deste ano, a editora Zahar lançou Elizabeth I: uma biografia, escrito pela jornalista inglesa e historiadora da arte, Lisa Hilton.

Lisa Hilton

Lisa Hilton

Formada pelo New College, em Oxford, e tendo estudo história da arte em Paris e Florença, Lisa Hilton é autora de muitos livros de ficção e não-ficção, além de colaborar com jornais como The New Yorker Times, The Times, Vogue, BBC History Magazine, entre outros periódicos. Das suas obras mais conhecidas, ainda não publicadas no Brasil, destacam-se Athenais: the real queen of France (2002), biografia da famosa amante de Luís XIV, madame de Montespan; Queens Consort (2010), sobre as rainhas consorte da Inglaterra medieval, do séculos XII ao XVI; The Horror of Love (2011), que conta a história do relacionamento entre a novelista inglesa e socialite Nancy Mitford com Gaston Palewski; e, por fim, Elizabeth: Renaissance Prince (2015), que chegou recentemente às livrarias do país. A obra, composta de 28 capítulos, apresenta ao leitor a vida da segunda mulher a governar a Inglaterra, ressaltando como ela passou de bastarda a rainha, construindo nesse percurso uma imagem própria de autoridade e realeza que, por sua vez, representasse aquele pequeno reino cercado por monarquias muito mais poderosas. O livro de Hilton, traduzido por Paulo Geiger, possui uma escrita leve e deliciosa, de fácil entendimento e bastante documentada.

Elizabeth Tudor é uma das monarcas inglesas mais biografadas. As circunstâncias de seu nascimento, quando seu pai, o rei Henrique VIII, fundou uma nova igreja e se casou com Ana Bolena, já renderam (e rendem) muitas páginas de livros e artigos em sites e revistas ao redor do mundo. Sendo assim, sempre que alguma obra nova surge no mercado, perguntamos o que de novo ela oferece ao público. Em Elizabeth I, é notável a preocupação da autora em não cair na mera repetição daquilo que já foi dito por outros escritores. Sua obra apresenta fontes até então pouco trabalhadas, como a correspondência trocada entre a rainha e os sultões Murad III e Mehmed III, assim como com o czar Ivan IV da Rússia. Todavia, o que torna o livro singular entre seus pares é a análise da iconografia presente nos quadros e vestes da soberana, além da relação entre o governo de Elizabeth e os preceitos defendidos por Nicolau Maquiavel em O príncipe. A soberana salta aos olhos do leitor como uma personagem calculista, preocupada com sua imagem enquanto figura de proa do reino da Inglaterra e possuidora de uma inteligência bastante aguçada, que a permitiu lidar com reis, embaixadores e diplomatas, jogando com as possibilidades e armas de que dispunha, entre elas o seu sexo.

Conforme ressalta a autora, “Elizabeth ficava feliz em jogar com as convenções relativas ao gênero quando convinha a seu ‘fraco e débil’ corpo de mulher” (2016, p. 13). Lisa destaca como a nova ciência, conjunto de pensamentos e ideais propalados pelo Renascimento, tiveram um profundo impacto na governabilidade da rainha. “A necessidade de [Elizabeth] se adaptar às circunstâncias”, ressalta Hilton, “de se curvar ao que é necessário para melhor controla-lo, essa foi uma lição que ela aprendeu cedo, e da qual sua sobrevivência, literal e política, pode ter dependido” (2016, p. 24). As atitudes de Elizabeth I quanto governante a aproximam muito do estilo político de Maquiavel. A autora ressalta que, mesmo sem termos a evidência de que a soberana possuísse uma cópia de O príncipe, ou que o tivesse lido, não podemos ignorar que tais ideias já eram difundidas na Inglaterra antes mesmo de ela subir ao trono. Seus ministros haviam lido a obra, assim como outros dignitários de sua corte. “Dada a educação amplamente humanista [de Elizabeth], sua fluência no italiano e seu interesse pela filosofia, é altamente provável que ela, assim como a maioria dos seus conselheiros, estivesse familiarizada com as ideias de Maquiavel” (2016, p. 26).

O retrato do Pelicano, atribuído a Nicholas Hilliard.

O retrato do Pelicano, atribuído a Nicholas Hilliard.

As conexões que Lisa Hilton faz entre as medidas políticas de Elizabeth e os preceitos defendidos em O príncipe são bastante interessantes, da mesma forma como a leitura que a autora faz dos retratos alegóricos da rainha, área na qual ela é especializada, como, por exemplo, Elizabeth e as três deusas, do artista holandês Joris Hoefnagel, O retrato do pelicano, atribuído a Nicholas Hilliard, O retrato da armada (pintado em 1588), e o famoso Retrato do arco-íris, de artista desconhecido. Pintado no início do século XVII, a referida tela mostra Elizabeth como uma mulher jovem, a despeito dos seus quase 70 anos. A natureza dos quadros da rainha, conforme ressalta Lisa Hilton, era extremamente política. Esse, acredito, é o ponto mais forte da obra e deve ser aqui destacado. Por lado, Elizabeth I: uma biografia, carece de um cuidado metodológico próprio da historiografia, que a autora não soube dar. Em muitas páginas, Hilton acaba caindo na velha reprodução de estereótipos e interpretações confusas de determinados aspectos da vida de sua biografada, que, por sua vez, acabaram tirando um pouco da preciosidade de sua obra.

Para o leitor leigo, os erros cometidos por Lisa dificilmente serão percebidos. A autora emite alguns juízos de valor ao tratar de determinados personagens, como no caso da rainha Catarina Parr que, segundo Hilton, teria esquecido “sua própria dignidade e seu dever para com a pupila real [Elizabeth]”, por causa “de um amor claramente erótico” por Thomas Seymour (p. 84). Isso não é só equivocado, como também o próprio conceito de amor (ainda mais de “amor erótico”), trabalhado no livro, é anacrônico. Lisa também chega a afirmar que “Elizabeth podia ser exímia ao manejar a agulha, mas intimamente, nunca foi nem um pouco submissa ou feminina” (p. 70). Ora, afirmar que uma mulher vaidosa como a rainha, que se preocupava tanto com sua imagem, que era dada a crises de raiva com suas damas de companhia namoradeiras e que flertava abertamente com seus favoritos, não era feminina, é algo confuso e ambíguo. Tais afirmações, mais apropriadas a um romance histórico, acabaram por prejudicar um pouco a obra. Ao falar de Ana Bolena, por exemplo, a autora se refere ao rascunho de Hans Holbein, exposto na coleção real do Castelo de Windsor, como o único retrato contemporâneo da mãe de Elizabeth, quando essa possibilidade é recusada pelos principais biógrafos de Ana, a exemplo de Eric Ives, que, por sinal, não consta entre as referências bibliográficas de Lisa Hilton.

Contudo, de todas as personagens mais estereotipadas pela autora, talvez a que mais sofreu tenha sido a rainha Maria I. Nas palavras da autora, a primeira rainha reinante da Inglaterra era uma mulher “macambúzia, desapontadora e aparvalhada”, que não possuía o charme e a vivacidade de Elizabeth, “cujas inteligência e espirituosidade não poderiam estar mais em contraste com” a filha de Catarina de Aragão (p. 159). Apesar disso, Hilton reconhece que muito do planejamento de governo de Elizabeth I, nos primeiros anos de seu reinado, foi aproveitado do de sua irmã. A autora defende a ideia de que, no momento que a soberana subiu ao trono, o reinado das mulheres já era algo natural no quadro político europeu, a despeito dos muitos tratados contra “A monstruosidade do governo feminino”, do protestante escocês John Knox. Para a autora, “Knox era um fanático e poderoso vociferador, mas suas ideias de forma alguma representavam a época” (p. 133). Considerado que John era um dos pregadores protestantes mais eloquentes do seu tempo e que suas palavras eram seguidas por muitos, então é errôneo afirmar que seu pensamento não representava, pelo menos, uma parcela da população da época.

Com efeito, acredito que o século XVI, antes de tudo, foi um período no qual as mulheres da realeza começaram a reivindicar certos direitos, seja à coroa ou a bens. Isso tanto é comprovado, que muitos séculos depois as rainhas reinantes ainda enfrentavam (e enfrentam) o preconceito misógino, que as considera incapacitadas para governar. A autora equivocadamente afirma que:

Num ato que transformou em mentira (grifo meu) a ideia de que o modo de ver conservador ainda rejeitava o conceito de uma governante mulher, Felipe da Espanha fez pressão para que sua filha, a infanta Isabel, lhe sucedesse, em vez de Henrique [de Navarra]. O fato de Isabel ser estrangeira, e não seu sexo, foi o motivo da rejeição dos Estados Franceses a esse esquema (HILTON, 2016, p. 334).

Capa do livro "Elizabeth I: uma biografia", publicado no Brasil pela editora Zahar.

Capa do livro “Elizabeth I: uma biografia”, publicado no Brasil pela editora Zahar.

Nesse trecho, Lisa Hilton faz uma alusão à crise de sucessão da coroa francesa com o fim eminente da Dinastia Valois. Ao falar isso, ela desconsidera que desde o século XIV a lei sálica proibia que mulheres viessem a herdar o trono da França. Na época, quem possuía a melhor pretensão sanguínea ao trono, por exemplo, era Margarida de Valois, última filha viva de Henrique II. O fato de Margarida ser mulher foi justamente o que a impediu de governar. Em vez disso, foi escolhido o seu marido, Henrique de Navarra, que era um estrangeiro.

Além disso, Lisa Hilton pouco tem a dizer sobre a participação de dramaturgos como Shakespeare, Ben Jonson, Christopher Marlowe, ou sobre o famoso teatro elisabetano, na governabilidade da rainha, marcante nos seus últimos anos de reinado. As referências a esses detalhes na obra são pequenas. Sendo assim, o conjunto desses deslizes, aliados a outros presentes ao longo das 400 páginas da tradução brasileira, acabaram por macular um livro que, não fosse isso, teria sido um brilhante ensaio cultural sobre a vida da rainha. Do ponto de vista acadêmico, Elizabeth I: uma biografia (2016), deixa a desejar em certos aspectos, conforme exposto nessa breve análise, o que, entretanto, pode ser facilmente desculpado, já que Hilton não é historiadora. Por outro lado, como dito anteriormente, o leitor leigo certamente dará pouca atenção a esses quiproquós. Ela conseguiu compor uma obra bastante acessível ao público, bem documentada, com uma linguagem deleitosa e que apresenta ao leitor a vida e a época de Elizabeth I de forma bastante dinâmica e (por que não?) divertida. Elizabeth aparece aqui como uma mulher mais humana e acessível, ao contrário da imagem de soberana inatingível que, em vida, ela tanto trabalhou para construir.

Renato Drummond Tapioca Neto

Graduado em História – UESC

Mestrando em Memória: Linguagem e Sociedade – UESB

2 comentários sobre ““Uma rainha maquiavélica” – resenha de “Elizabeth I: uma biografia”, da jornalista inglesa Lisa Hilton.

  1. Um livro sem pretensões biográficas, mas que é bem legal é “O Bobo da Rainha” da Philippa Gregory, que mostra através de uma terceira personagem um olhar interessante tanto sobre Elizabeth quanto Mary, foi uma visão romanceada mas não estereotipada por assim dizer, é claro que se tratando da Philippa sempre tem os achismos dela afinal os livros são romances, mas de qualquer forma é um bom livro. Esse livro da Lisa Hilton esta na minha lista, pois mesmo tendo suas falhas creio que deve ser interessante (e eu não conheço muitos livros sobre a Elizabeth I de qualquer forma) e é sempre bom ler com um fato em mente, que nem sempre os livros biográficos tem compromisso com a verdade, mas podem servir como base para conhecer mais personagens que talvez ainda não conhecêssemos, tal como um livro que li recentemente: Rainhas na Sombra da Maria Pilar Queralt Del Hierro, que tem um tom meio de revista de fofocas e erros (do tipo afirmar que Ana era uma mulher feia cheia de verrugas e com seis dedos), mas me trouxe muito personagens que eu ainda não conhecia e me incentivou a pesquisar mais sobre eles 🙂

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    • Com certeza, Carol. Historiador também fantasia, porém baseado em evidências de pesquisa. Já o romancista, não tem compromisso com a veracidade dos fatos. Essa biografia da Lisa é boa. Peca mais pelo reforço de estereótipos e juízos de valor.

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