WEBER, Caroline. Rainha da moda: como Maria Antonieta se vestiu para a Revolução. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. – Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
“Ser a mulher mais à la mode de todas parecia [a Maria Antonieta] a coisa mais desejável que se poderia imaginar”. Com essas palavras, a condessa de Boigne definiu um dos traços mais significativos da personalidade da última rainha do absolutismo francês: sua inclinação para a moda. Mas teria o amor dela por roupas caras e artigos de luxo contribuído para a sua queda? “Essa fraqueza, indigna de uma grande soberana”, complementa Boigne, “foi a única causa de todos os defeitos exagerados que o povo tão cruelmente lhe atribuiu”. A opinião da condessa não poderia ter sido mais certeira e carrega consigo todo o deslumbramento de uma época sobre a vestimenta da soberana da França. Não obstante, causa igualmente espanto o fato de que a maioria dos biógrafos de Maria Antonieta, no século XIX e no século XX, não tenham avaliado com profundidade o impacto que a moda teve na vida daquela mulher e em sua geração. Esse é o estado da questão levantado por Caroline Weber em seu livro Queen of fashion, publicado no Brasil sob o título de Rainha da Moda: como Maria Antonieta se vestiu para a Revolução.

Caroline Weber, autora de “Rainha da Moda”.
A Revolução Francesa é um marco divisor de águas na história ocidental, mas será que poderíamos diagnosticar um dos focos de sua origem no guarda-roupa real? Pois, enquanto os líderes revolucionários debatiam as injustiças do estado francês em locais clandestinos, Maria Antonieta dava início em Versalhes à sua própria revolução. Tendo sido alvo de inúmeras críticas desde que chegou à França, ela tinha então dois caminhos a seguir, conforme ressalta Caroline Weber: ou admitir seu fracasso e retornar para Viena em desgraça (a maior vergonha para uma princesa), o que estava fora de questão, devido à importância da aliança franco-austríaca, ou encontrar uma forma de se impor à nova corte. O veículo adotado pela delfina foi a moda. “Mediante roupas e acessórios cuidadosamente selecionados, não convencionais, ela cultivou o que mais tarde chamou de ‘aparência de prestígio [político]’, ao mesmo tempo em que enfrentava um contínuo fracasso no front da procriação” (p. 12-13). Weber esclarece que desde os trajes de montaria masculino aos penteados monumentais, os chamados poufs, “as surpreendentes modas que Maria Antonieta lançou revelaram-na como mais do que apenas uma esposa inadequada ou o símbolo de um esforço diplomático fracassado” (p. 13).
Em Rainha da Moda, Caroline Weber procura demonstrar como as roupas usadas pela rainha, que foram criticadas pelos seus contemporâneos devido à sua aparência de frivolidade, eram antes disso um indicio de como uma mulher, privada do exercício do poder político, podia se expressar de forma icônica e irreverente. Para a autora, causa espanto o fato de que a maioria dos historiadores tenham dado tão pouca atenção ao que Maria Antonieta vestiu dos salões dourados de Versalhes até a guilhotina e a grande importância que o público da época atribuiu ao seu vestuário, em cada uma das etapas da sua vida. Weber é especialista em cultura e história francesas do século XVIII e também é autora de Terror and Its Discontents, sobre o período do Terror da Revolução Francesa. Ao longo das 454 páginas e 11 capítulos que compõem a edição em português de Queen of Fashion, publicada no Brasil pela editora Zahar, observamos a preocupação da autora em focalizar justamente naquilo que ela considerou pouco trabalhado pelos biógrafos da rainha da França.
Maria Antonieta é uma das personalidades da história mais biografadas de todos os tempos. É impressionante a quantidade de biografias, memórias e romances que foram escritas sobre ela, desde o seu tempo de vida até os dias de hoje. Sendo assim, quando surge alguma obra no mercado editorial onde ela figura como objeto de estudo, o leitor certamente se perguntará: o que há de novo nesse livro que os outros já não tenham abordado? Contudo, para Weber, existe muito mais a se considerar na trajetória da rainha:
Em uma recente antologia editada por Dena Goodman, um grupo de estudiosos contemporâneos explora como “controvérsias políticas e culturais decisivas tiveram lugar sobre o próprio corpo da rainha. Nessas análises, mostra-se que a sexualidade, a fertilidade e outras características físicas de Maria Antonieta foram tanto pretextos quanto catalisadores para os inflamados debates sobre gênero, classe e poder que sacudiram o Ancien Régime e estimularam a Revolução. Curiosamente, os trajes de Maria Antonieta – e o que significavam para as pessoas à sua volta – recebem pouca atenção no volume de Goodman, exceto em algumas passagens brilhantes de Pierre Saint-Amand (que sugere corretamente que “a história de Maria Antonieta pode ser lida como uma série de eventos e fantasia”) e Mary Sheriff (que analisa um retrato da rainha vestida com um traje particularmente incomum). Afora esses dois estudiosos, Chantal Thomas, cujo magnífico livro The Wicked Queen identifica a importância atribuída à moda por Maria Antonieta como uma das muitas razões que levaram o povo francês a se virar contra ela, foi praticamente a única a considerar as “controvérsias políticas e culturais decisivas” suscitadas pelas audaciosas modas da rainha” (p. 11).
Sendo assim, argumenta a autora, é preciso uma análise mais adequada dessa questão, já que uma reavaliação mais cuidadosa da biografia da rainha demonstra o impacto que seus trajes causaram na sociedade, além das desordens sócio-políticas que resultaram disso.

O vestuário extravagante de Maria Antonieta chocou as cortes da Europa e contribuiu para a sua queda.
A rainha da França era considerada no século XVIII como uma espécie de primeira-dama da Europa. O que ela vestia, comia e fazia era seguido por milhares de mulheres ao longo do continente e além. A moda nesse quesito tinha um papel fundamental, pois era um elemento divisor de classes. Quando Maria Antonieta apareceu vestida em roupas exuberantes, com penteados drasticamente elaborados, mais dignos de uma maîtresse-em-titre, isso chocou a corte e o país. Não obstante, ela introduziu aspectos de vestuário plebeu na realeza, o que foi desaprovado por muitos cortesãos mais velhos, inclusive por sua família em Viena. Conforme ressalta Caroline, “que a esposa de um rei francês modificasse as convenções da aparência real, ou procurasse atenção e aprovação em seus próprios termos era algo praticamente inédito. Mas foi exatamente isso que Maria Antonieta fez, de maneira cada vez mais ousada, após ascender ao trono em 1774” (p. 13). A autora destaca a importância que os estilistas da rainha assumiram dentro de Versalhes, especialmente a modista Rose Bertin e o cabeleireiro Leonard, que foram ironicamente apelidados pelas facções rivais de “o ministério da moda”.
A postura inovadora de Maria Antonieta quanto ao vestuário, contudo, não foi pioneira na história da França. Quase um século antes, Luís XIV usou a moda como um instrumento para criar uma imagem de soberania, graças à adoção de trajes demasiadamente extravagantes. Tal como o Rei Sol, Maria Antonieta investiu bastante em representação. Weber utiliza os conceitos trabalhados por Peter Burke na sua obra A Fabricação do Rei, para demonstrar como Antonieta criou uma imagem irreverente de si, que representasse o novo governo de Luís XVI. O preço que ela pagou por esses modismos, porém, foi bastante alto. Antonieta pode ser considerada como uma das maiores vítimas da moda. Caroline Weber ressalta que “o estilo heterodoxo de Maria Antonieta incitava uma reação violenta entre cortesãos que se opunham vigorosamente à sua ascensão e se irritavam com o modo como ela contestava veneráveis costumes reais” (p. 14). Logo, a fama da rainha gastadeira, que dispendia enormes somas em joias, sapatos e vestidos começou a correr pelas ruas de Paris, que, por sua vez, chamou-a de “Madame Déficit” e propalou essa imagem para as demais cortes da Europa na forma dos inúmeros panfletos, muitos deles impressos na Inglaterra.
Com efeito, se com Luís XIV a moda serviu como instrumento para a promoção de suas pretensões absolutistas, com Antonieta teve o efeito oposto. Para Weber:
O paradoxo resultante da carreira de Maria Antonieta como figura pública foi que, apesar de sua apreensão intuitiva do potencial do vestuário para expressar status e força, ela muitas vezes avaliou mal as reações que sua toalete despertaria nos seus súditos. O fato de que se apresentava para uma dupla audiência – aristocratas e plebeus – significava quase necessariamente que não podia agradar todos ao mesmo tempo. Na maior parte das vezes, porém, sua rebelião na indumentária gerava ou exacerbava queixas em ambos os contingentes, a tal ponto que a nobreza e o populacho, imensamente separados em tantas questões políticas, chegaram a um explosivo consenso em seu ódio a Maria Antonieta (p. 15).
A análise que Caroline Weber faz do vestuário de Maria Antonieta seria quase impecável, não fosse sua extrema parcialidade para com a biografada. Esse aspecto incomodou bastante Veronica Horwell, que em sua resenha da obra para o The Guardian argumentou que a autora dá pouca atenção para as correntes de moda que teriam influenciado a rainha e Rose Bertin, o que, em parte, discordo, especialmente pela análise que autora faz do redingote de corte masculino, uma peça de indumentária germânica que ganhou a adesão da rainha e, a partir dela, de outras cortes da Europa. Com efeito, a extravagância no vestuário não marcou toda a trajetória de Maria Antonieta. Caroline Weber mostra como a maternidade mudou os gostos da rainha que, depois dos 30 anos, passou a usar roupas mais simples, conforme podemos observar nos seus retratos dela pintados por Madame Le Brunn, depois de 1785. Interessante também são as escolhas de roupas da rainha durante o período da Revolução Francesa e a influência indireta que ela exerceu em cocardes ou mesmo nos vestidos de musselina branca, que antes foram criticados nela como indignos de uma rainha da França e depois adotados por muitas mulheres partidárias do republicanismo.

Capa do livro “Rainha da Moda”, publicado no Brasil pela editora Zahar.
Rainha da moda: como Maria Antonieta se vestiu para a Revolução, recebeu, na sua maioria, críticas positivas dos jornais e revistas americanas, como The New Yorker, Washington Post Book World e New York Review of Books. A análise que a autora faz da iconografia ligada a Antonieta também merece ser enfatizada. As imagens estudadas por Caroline Weber oferecem uma importante compreensão da abrangência que o significado dos trajes da rainha teve na imprensa do século XVIII. Apesar da linguagem preferencialmente acadêmica, a obra pode ser apreciada igualmente pelo público leigo e sem dificuldade. Se para Maria Antonieta ser a mulher mais à la mode era a coisa mais importante, Weber demostra como essa vontade ia muito além da mera frivolidade com que muitos costumam encarar os gostos da rainha. Num mundo onde as esposas tinham pouca voz na política, a moda foi a forma que ela escolheu para se impor a uma sociedade hostil. Maria Antonieta foi um símbolo de sua época e seu vestuário foi a forma que ela escolheu para se inscrever como ícone na história mundial.
Renato Drummond Tapioca Neto
Graduado em História – UESC
Mestrando em Memória: Linguagem e Sociedade – UESB