Por: Renato Drummond Tapioca Neto
Em 26 de abril de 1821, a bordo do navio que o levaria de volta à Europa, D. João VI olhava com tristeza para a costa brasileira, onde aportou com sua comitiva em 1808. Em decorrência de uma revolução ocorrida na cidade do Porto, o monarca foi forçado pelas Cortes de Lisboa a regressar para Portugal, deixando assim seu filho e herdeiro, príncipe D. Pedro, como regente do Brasil. Ficavam também no Rio de Janeiro a princesa real Leopoldina e seus dois filhos com Pedro, Maria da Glória e João Carlos, nascido em 6 de março daquele ano. A partir de então, a vida desta pequena família não mais seria a mesma. Eles se mudaram para o edifício principal do palácio de São Cristóvão, antes ocupado pelo rei e, devido às parcas condições financeiras em que ficaram, tiveram que adotar um modo de vida mais simples: a criadagem teve de ser reduzida e gastos considerados supérfluos foram cortados. Ao pai, D. Pedro escreveu que “comecei a fazer bastante economia, principiando por mim. Mudei a minha casa para a Quinta de São Cristóvão a fim de irem para o paço da cidade todos os tribunais, secretarias e tudo quanto estava em casa paga por conta do Estado”. Com isso, o príncipe regente dava um sinal de sua boa vontade, ao abrir mão dos próprios rendimentos a favor do governo.

Princesa real Carolina Leopoldina, pintada por Jean-Baptiste Isabey.
A vida privada do príncipe regente e da princesa ganhava assim uma nova rotina, pois até então D. Pedro não tinha obrigações políticas. Jantava com a esposa à duas da tarde e às quatro cavalgava sozinho ou acompanhado, aproveitando para visitar alguns dos súditos. Pela noite, tocava flauta, enquanto Leopoldina o acompanhava no piano. Dormiam às 21:00. Enquanto o marido cuidava dos negócios, a princesa real tentava ocupar o seu tempo passeando na companhia de um viador e, quando recebia permissão, se juntava ao príncipe na inspeção dos departamentos administrativos e das obras em execução, embora a jovem se sentisse incomodada com os castigos que D. Pedro dava aos que não obedeciam suas ordens, geralmente utilizando o chicote. Ela preferia que tais reprimendas fossem feitas “com mais ternura, porque meu coração é mais suave, mais doce”. O regente assumiu as rédeas do governo com verdadeiro entusiasmo, apesar de possuir uma educação política bastante limitada. Ocupava-se “de coisas insignificantes e julgando poder salvar dessa maneira a nação” (OBERACKER, 1973, p. 215). Por outro lado, com o auxílio do conde dos Arcos, ministro dos Negócios Estrangeiros, realizou algumas reformas significativas, como a supressão de certos impostos.
Dona Leopoldina, com efeito, estimava muito o conde dos Arcos, último vice-rei do Brasil e que passaria a defender a adoção de uma constituição liberal para o país, que trouxesse equilíbrio para os interesses da nobreza e do povo, através de uma assembleia popular. Tal medida, se posta em prática, traria mais autonomia para o reino do Brasil, em detrimento das Cortes de Lisboa. Porém, no final de maio, um corpo militar de expedicionários Portugueses, sob comando Jorge de Avilez, aportou na baía de Guanabara, tendo por objetivo arrancar do príncipe seu juramento aos 37 princípios básicos da constituição portuguesa, promulgada em Lisboa. Como a figura do conde era suspeita para os expedicionários, estes exigiram que D. Pedro o demitisse, para desagrado de Dona Leopoldina. Ao pai, imperador Francisco I da Áustria, ela escreveu o seguinte:
Aqui está uma verdadeira miséria, todos os dias novas cenas de revoltas; os verdadeiros brasileiros são cabeças boas e tranquilas, as tropas portuguesas estão animadas pelo pior espírito e meu esposo, infelizmente, ama os novos princípios e não dá exemplo de firmeza, como seria preciso, pois atemorizar é o único meio de pôr termo à rebelião; receio que tome consciência tarde demais, com seu próprio prejuízo, e só posso ver um futuro negro; Deus sabe o que ainda acontecerá conosco (LEOPOLDINA, 9 de junho de 1821 apud KANN et. al., 2006, p. 381).
Naquele momento, Leopoldina tinha quase aversão aos “novos princípios” de liberdade surgidas com a Revolução Francesa e via com certa desconfiança aqueles que se opunham ao seu pensamento político e religioso tradicional, inculcado na mais tenra infância. Para ela era um verdadeiro suplício ter que almoçar com o marido no quartel-general, na companhia de Jorge e sua esposa. Dizem que a mulher de Avilez teria se tornado amante do príncipe, o que certamente desagradou a Leopoldina, embora ela não reclamasse e agisse como se nada soubesse acerca da nova paixonite de Pedro. Até então, a princesa real não havia deixado de nutrir suas ambições de regressar à Europa, como atesta uma carta que ela enviou à irmã, Maria Luísa, em 2 de julho, mas este sonho precisava ser adiado, pois “o Brasil é, sob todos os aspectos, um país tão maduro e importante, que é incondicionalmente necessário mantê-lo”. A jovem começava a se inclinar cada vez mais para os interesses brasileiros, enquanto o marido permanecia obediente às Cortes. “D. Pedro, imbuído das ‘novas ideias’, achava que nada podia contra a força e não via outro caminho para a salvação da realeza a não ser a conquista da simpatia das cortes” (OBERACKER, 1973, p. 220). Ele desejava atrair a confiança do corpo expedicionário, na esperança de poder voltar para Portugal o quanto antes.

General Jorge de Avilez.
De acordo com Carlos H. Oberacker Jr., possivelmente foi o barão de Mareschal, embaixador de Viena no Rio de Janeiro, quem abriu os olhos de Leopoldina quanto a atual situação do país e qual política deveria ser adotada para conserva-lo. Numa carta datada de 8 de julho a Francisco I, ela dizia que entregava todas as suas correspondências a Mareschal, “pois infelizmente estou sendo mal interpretada, o que me magoa muito, já que tenho bons e autênticos desejos para o bem do Brasil”, porém, “as almas liberais mesquinhas estão todas contra mim e agora estou sendo muito cautelosa, não expressando minhas opiniões”. Por ser filha do chefe da Santa Aliança, era de se esperar que o corpo de expedicionários portugueses desconfiasse das intenções de Leopoldina. Até o mês de agosto de 1821, pairava uma certa calmaria nos ares, prenúncio da tempestade que se avizinhava no país, uma vez que o desejo das Cortes era reconduzir o Brasil ao estado colonial do qual foi tirado com a vinda da família real para cá. Em contrapartida, crescia entre os brasileiros um sentimento de nacionalismo completamente avesso à ideia do retorno ao sistema colonial. Entre estes patriotas, destacava-se um homem que exerceria grande influência sobre a princesa: José Bonifácio de Andrada e Silva.
Oriundo da região de Santos, em São Paulo, Bonifácio reconheceu que “a discreta casca de Leopoldina envolve um núcleo valioso. Ela possui um discernimento claro e íntegro da situação do nosso pais”. O quadro político se agravou em 9 de dezembro, quando chegou um decreto das Cortes de Lisboa, exigindo a dissolução das unidades de exército nacionais. Os oficiais, portanto, deveriam ser exonerados e os praças realocados nas tropas portuguesas. Decretaram contra o país medidas que revogavam muitas das inovações introduzidas por D. João VI, incluindo certas magistraturas. Além disso, queriam o regresso do príncipe para Portugal, onde ele seria instruído por “pessoas dotadas de luzes” e “viajaria por alguns países europeus regidos por Constituições liberais”, recebendo o conhecimento necessário para “ocupar dignamente o trono português” após a morte de seu pai. Muitos amigos de D. Pedro aconselharam-no a contrariar as decisões das Cortes e promover a emancipação política do país sob o seu comando, mas ele ainda permanecia fiel à sua terra natal. Voltaram-se, então, para a única que poderia exercer alguma influência sobre Pedro, sua esposa. “Dizem que as tropas portuguesas o obrigarão a partir”, escreveu ela ao secretário Schäffer. “Tudo então estaria perdido e torna-se absolutamente necessário impedi-lo”.
Muito já se tem falado da educação da primeira Imperatriz do Brasil. Quando criança, Leopoldina foi instruída segundo os preceitos iluministas, ministrados a todos os arquiduques e arquiduquesas Habsburgo desde os tempos do imperador José II. Não obstante, ela cresceu dentro de um quadro político bastante turbulento: o governo republicano francês executou sua tia Maria Antonieta e poucos anos depois Napoleão Bonaparte iria dar início a uma verdadeira campanha militar na Europa, com consequências graves para a casa d’Áustria. Percebendo que a situação política no Brasil caminhava rumo a anarquia, a princesa real teve que agir dentro do quadro de suas possibilidades para evitar que “um futuro negro”, como ela dizia, tomasse conta do país. Para tanto, ela teve que fazer uma revisão de seus próprios conceitos e resolveu adotar uma conduta liberal moderada, no melhor exemplo de José Bonifácio. Aconselhada por este último e pelo barão de Mareshal, ela percebeu que o destino da monarquia brasileira dependia da permanência do seu marido no país e para alcançar este objetivo, utilizou de todos os argumentos possíveis para convencer Pedro, incluindo seu estado de gravidez. Leopoldina disse que não poderia dar à luz dentro de um navio, de modo que conseguiu com que a viagem de regresso fosse retardada mais alguns dias.

José Bonifácio de Andrada e Silva, por Benedito Calixto.
Parece que os esforços da princesa real renderam resultado, pois na mesma carta ao secretário Schäffer, ela diz que “meu marido está mais bem-disposto com relação aos brasileiros do que eu esperava, mas não tão positivamente quanto eu desejaria”. Em primeiro de janeiro de 1822, Antônio Menezes Vasconcellos Drummond entregou a D. Pedro um manifesto da junta provisória de São Paulo, redigido por José Bonifácio em 24 de dezembro, que o instava a “ficar no Brasil, quaisquer quer sejam os projetos das Cortes Constituintes, não só para nosso bem-estar, mas também para a independência e prosperidade do mesmo Portugal”. O príncipe, apesar dos protestos da “Divisão Auxiliar”, se convenceu a adiar a viagem até que tivesse apresentado às Cortes um relatório sobre a situação do país. De acordo o biógrafo de Leopoldina, Heinrich Schüler (baseado nos testemunhos do editor do jornal “O Despertar Brasiliense”, Francisco de Franca, e nos boletins dos clínicos Dr. Mello Franco e Dr. Bernardino Antônio Gomes), no dia 7 José Bonifácio chegou à Quinta da Boa Vista para uma conferência com Pedro. Nesse encontro, D. Leopoldina teria tomado a palavra do marido e, para espanto do príncipe, disse que era desejo dele permanecer no país, em detrimento da exigência das Cortes de Lisboa.
Na opinião de Schüler, foi ela a responsável pela decisão de Pedro de ficar no país, conforme exposto no parágrafo anterior. José Bonifácio teria dito que “uma verdadeira heroína falou a palavra mágica, FICO, libertadora do nosso povo”. Essa versão, porém, carece um pouco mais de comprovação, já que Schüler “não conseguiu se apoiar em nenhuma fonte fidedigna que poderia alicerçar a autenticidade do episódio por ele ilustrado” (PRANTNER, 1998, p. 65). Contudo, numa carta escrita para o secretário Schäffer um dia depois da entrevista ente Pedro e Bonifácio, a princesa disse o seguinte:
Receiam-se aqui muitos distúrbios para o dia de amanhã.
Terá ouvido alguma coisa?
O príncipe está decidido, mas não tanto quanto eu desejaria. Os ministros vão ser substituídos por filhos do país que sejam capazes. O governo será administrado de um modo análogo ao dos Estados Unidos da América do Norte.
Muito me tem custado alcançar isto tudo – só desejaria insuflar uma decisão mais firme (apud KANN et. al., 2006, p. 389).
Tendo sido a primeira a proferir a palavra FICO ou não, o fato é que esse trecho da carta de Dona Leopoldina oferece um testemunho da influência que ela exerceu na decisão do marido de permanecer no Brasil, embora muitos historiadores ainda desconsiderem sua participação neste evento, atribuindo a mudança de pensamento do príncipe regente a José Bonifácio (que representava os paulistanos), ou a José Clemente (que representava os cariocas).

D. Pedro I do Brasil, por Benedito Calixto. .
Às 11 horas de 9 de janeiro de 1822, os membros que compunham o senado municipal desceram a rua do Ouvidor rumo ao paço da cidade, onde o príncipe regente os aguardava. Ao meio dia, D. Pedro recebeu a deputação, que o responsabilizou pelo caos político que iria se instaurar no país caso ele voltasse para Lisboa. Após ouvir atentamente a representação lida por Clemente Pereira, contendo mais de 8.000 assinaturas, o príncipe surpreendeu a todos, proferindo aquelas palavras memoráveis que tornariam o dia de hoje marcante na história do Brasil: “como é para o bem de todos, e felicidade geral da nação, estou pronto: diga ao povo que fico”. O procurador do senado correu para uma das janelas da sala do trono e gritou para o povo ali parado a frase dita pelo príncipe. A reação popular foi jubilosa! Em carta ao secretário Schäffer, Leopoldina disse “que julgo preferível que os brasileiros conscienciosos deixem meu esposo organizar o governo como ele bem entender. No caso contrário, esta particularidade insignificante[1] talvez impedisse que ele aqui ficasse”. Com essa atitude, estava dado o pontapé inicial para a tão sonhada emancipação política do Brasil, que ocorreria alguns meses depois, em 7 de setembro daquele ano.
Referências Bibliográficas:
CASSOTTI, Marsilio. A biografia íntima de Leopoldina: a imperatriz que conseguiu a independência do Brasil. Tradução de Sandra Martha Dolinsky. – São Paulo: Planeta, 2015.
KANN, Bettina; LIMA, Patrícia Souza. D. Leopoldina: cartas de uma imperatriz. – São Paulo: Estação Liberdade, 2006.
OBERACKER Jr., Carlos H. A imperatriz Leopoldina, sua vida e época: ensaio de uma biografia. – Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1973.
PRANTNER, Johanna. Imperatriz Leopoldina do Brasil. Tradução de Hanns Pellischek e Elena Dionê Borgli. – Petrópolis: Vozes, 1997.
SCHÜLER, H. Dona Leopoldina – Erste Kaiserin von Brasilien. – Porto Alegre, 1954.
[1] Grifo meu
Excelente.
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Escrita simples !! Compreêncivel Historia para todos .
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